Etéria de Constantinopla: Peregrinação à Terra Santa

Obra do séc. IV, dividida em duas grandes partes:

1.  Do Mar Vermelho a Constantinopla;

2. Liturgia de Jerusalém (Basílica do Santo Sepulcro).

O texto chegou incompleto aos nossos dias, ocorrendo consideráveis lacunas no início, no meio e no fim do texto.

Ainda assim, a obra é de grande importância histórica, por descrever peregrinações a diversos lugares bíblicos, bem como a liturgia e a catequese em Jerusalém.

(lacuna)…

1. [O Vale Imenso] …e tudo quanto nos mostravam estava de acordo com as Escrituras. Enquanto isso, fomos chegando a um lugar onde aqueles montes, por entre os quais caminhávamos, separam-se formando um vale imenso de se perder de vista, muito plano e belíssimo; além dele, mostra-se o Sinai, a montanha sagrada de Deus. Este sítio onde se abrem as montanhas  liga-se àquele onde se encontram os sepulcros da avidez [Nm. 11,34].

2. Chegando nós a esse lugar, disseram-nos os santos guias que estavam conosco: ?É costume rezarem, aqui, uma prece aqueles que daqui vêem, pela primeira vez, a montanha de Deus?; e assim o fizemos, nós também. Há, talvez, daí até o Sinai, quatro milhas ao todo, através do vale que chamei imenso.

 

II

1. [Descrição do Vale] É, sem dúvida, enorme esse vale, estendendo-se pelo lado do outeiro santo e pode ter, mais ou menos, pelo que pudemos avaliar por nós mesmos e pelo que diziam os guias, dezesseis mil passos de comprimento e, de largura, quatro mil, segundo eles. E nós tínhamos de atravessá-lo para atingir a montanha.

2. Este é o vale imenso e absolutamente plano onde os filhos de Israel se detiveram quando o santo Moisés subiu ao monte do Senhor e lá permaneceu durante quarenta dias e quarenta noites [Ex. 24,18]. Este é o vale no qual fundiram o bezerro [Ex. 32,1-6], e o ponto onde foi fundido pode ser visto ainda, até hoje, pois nele se ergue uma grande pedra solidamente fincada. Este é também o mesmo vale na extremidade do qual se encontra aquele sítio em que Deus, de dentro de uma sarça ardente, falou pela segunda vez ao justo Moisés que apascentava os rebanhos do sogro [Ex 3,1ss].

3. E já que para nós o caminho consistia em subir a montanha de Deus que daqui se vê – porque do lado por onde vínhamos, a subida era mais fácil – e de lá novamente descer até àquela entrada do vale que corresponde ao lugar da sarça – pois por ali era mais fácil a descida do monte sagrado – então decidimos que, depois de vermos tudo quanto desejávamos, descendo da montanha de Deus àquele sítio da sarça, percorreríamos o vale todo pelo meio, no sentido do comprimento, e voltaríamos ao nosso caminho com os guias que nos mostravam, através desse vale, cada um dos lugares de que falam as Escrituras. E assim foi feito.

4. Para nós, portanto, que vínhamos daquele ponto onde rezáramos ao chegar de Faran, esse foi o caminho: atravessamos pelo meio a entrada do vale e assim nos aproximamos da montanha de Deus.

5. [O Monte Sinai] Esse monte parece o único em toda a região, porém, nela penetrando, vê-se que há muitos outros e o conjunto é que se denomina ?montanha de Deus?; distingue-se, entre todos, aquele em cujo cimo fica o lugar onde desceu a glória de Deus, como está escrito [Ex 19,18ss; 24,16].

6. E ainda que todos estes, ao redor, sejam tão altos que eu penso, mesmo, jamais ter visto semelhante ainda assim o do meio, no qual desceu a majestade de Deus, é tão maior do que os outros que, quando o escalamos, todos os montes, sem exceção, que nos tinham parecido elevados, ficaram bem abaixo de nós como se fossem outeirinhos muito pequenos.

7. É realmente admirável e, creio, não seria possível sem a graça de Deus, o fato de que o monte do meio – o Sinai, propriamente dito, no qual desceu a majestade do Senhor, sendo embora mais alto do que todos – ainda assim não possa ser visto a menos que se chegue até à sua própria base, antes de o escalar; quando, realizado esse desejo, se torna a descê-lo, ele se vê então de frente, o que antes da subida era impossível. Eu já sabia disso, porém, antes de chegarmos à montanha de Deus, por referências dos nossos irmãos e, depois que lá cheguei, vi, claramente, que era assim mesmo.

 

III

1. [A Escalada] No sábado à tarde, portanto, caminhamos para o monte e chegamos a algumas ermidas; acolheram-nos com bondade os monges que ali viviam, dispensando-nos a maior cortesia; havia, também, uma igreja e um sacerdote. Ali, pois, permanecemos aquela noite e, domingo, ao nascer do dia, começamos a subir cada um dos montes com o mesmo sacerdote e com os monges que ali moravam. Esses montes são escalados com imenso esforço já que se não pode subi-los contornando-os suavemente, em espiral, como se diz, mas é preciso galgá-los de uma vez, em linha reta, como se fossem paredes e, em linha reta, é preciso descê-los, um após o outro, até chegar à raiz do que se encontra no meio, que é o Sinai, propriamente dito.

2. Assim, pela vontade de Cristo nosso Deus, e com a ajuda das orações dos santos que nos acompanhavam e também com grande fadiga – porque eu era obrigada a subir a pé, uma vez que não se podia absolutamente subir de liteira (=empregando uma mula) – todavia esse mesmo sofrimentos eu não sentia, e se não o sentia é porque via realizar-se, com a ajuda de Deus, o meu desejo – chegamos à hora quarta (=dez horas), ao cimo da montanha sagrada de Deus, o Sinai, onde a Lei fora entregue, isto é, ao lugar onde descera a glória de Deus, no dia em que o monte fumegara [Ex. 19,18].

3. [O Alto do Monte Sinai] Há, agora, nesse lugar, uma igreja, não muito grande, já que o próprio local, isto é, o cimo do monte, também não é muito grande; a igreja é, porém, por si mesma, de grande beleza.

4. Atingindo nós, então, pela vontade de Deus, esse cume e chegando até a entrada da igreja, eis que correu ao nosso encontro, vindo do seu mosteiro, o presbítero por ela responsável, velho íntegro, monge desde a juventude e, como aqui dizem, asceta; em suma, um homem digno de ali estar. Também acorreram outros sacerdotes, e nem deixaram de vir também todos os monges que ali moravam, perto daquela montanha; isto é, pelo menos os que não foram impedidos pela fraqueza ou pela idade.

5. Na verdade, porém, na própria crista do monte do meio, ninguém mora, e nada há ali senão a igreja, isolada, e a gruta onde esteve o santo Moisés [Ex. 33,22].

6. Logo que saímos da igreja, depois de lermos, no próprio local, todo o passo correspondente do livro de Moisés, depois de fazermos a Oblação, segundo o costume, e de comungarmos, os presbíteros do lugar nos deram eulógias, isto é, frutas naturais dali mesmo do monte. Embora a montanha santa do Sinai seja toda de pedra, a tal ponto que nem tenha um arbusto, ainda assim, embaixo, junto ao sopé desses montes, isto é, em volta do que está no meio, ou em volta dos que o rodeiam, há um bocadinho de terra; os santos monges, eles próprios, plantando constantemente arvorezinhas e construindo pomarzinhos e lavouras, colhem, mesmo ao pé de seus mosteiros, como se os colhessem da terra do próprio monte, alguns frutos que, contudo, resultam do trabalho de suas próprias mãos.

7. Então, depois de comungarmos e de aqueles santos nos darem as eulógias e sairmos pela porta da igreja, pedi-lhes nos mostrassem todos os lugares, um por um. Imediatamente, aqueles homens santos se dignaram mostrar-nos tudo. Levaram-nos, efetivamente, à gruta onde estiveram Moisés quando, pela segunda vez, subira à montanha de Deus [Ex. 34,1ss], para receber novamente as tábuas depois de quebrar as primeiras por causa do povo pecador [Ex. 32,19]; também se dignaram mostrar-nos todos os outros sítios que desejávamos ver e os que eles mesmos conheciam melhor.

8. Quero que saibais também, senhoras, minhas veneráveis irmãs, que do lugar onde estávamos – rodeando a igreja, no alto desse monte do centro – víamos, muito abaixo de nós, aqueles morros que, com tanta dificuldade, escaláramos primeiro; comparados com o do meio, onde nos encontrávamos, pareciam outeirinhos; eram tão grandes, contudo, como eu pensava nunca antes ter visto outros maiores a não ser este mesmo do centro que de muito os excedia. O Egito e a Palestina, o mar Vermelho e o mar Partênico que leva à Alexandria, e também o território dos sarracenos, imenso, viámos, de lá, tão abaixo de nós que é difícil crer; e, no entanto, os santos nos mostravam cada um desses lugares.

 

IV

1. [A Descida] Depois de satisfazer o desejo pelo qual nos apressáramos em subir, começamos a descer do cimo do monte de Deus, ao qual subíramos por um outro monte que a ele se une, que se chama Horeb e onde há uma igreja.

2. Este é o Horeb onde esteve o justo Elias, o profeta, fugindo do rei Acab e onde lhe falou Deus, dizendo: ?Que fazes tu aqui, Elias??, como está escrito nos livros dos Reis [1Rs 19,9]. Realmente, a gruta onde se escondeu o santo Elias ainda hoje se vê diante da porta da igreja que existe aí; também se vê o altar de pedra que construiu o próprio santo Elias para oferecer a Deus o sacrifício; e assim, dignavam-se os santos mostrar-nos tudo.

3. Fizemos uma Oblação e uma oração fervorosa e lemos o mesmo passo no livro dos Reis; isso, na verdade, era de suma importância para nós:…

(lacuna)

…eu desejava sempre que, onde quer que chegássemos, lêssemos, no Livro, o trecho correspondente.

4. Depois de fazermos a oblação, dirigimo-nos ainda a um outro sítio, não longe de nós e que nos mostravam os sacerdotes e monges, quero dizer, o lugar onde se mantivera o justo Aarão com os setenta anciãos, enquanto o santo Moisés fora receber do Senhor a Lei para os filhos de Israel [Ex. 24,9-14]. Aí, não havendo, embora, nenhum abrigo, há, contudo, uma pedra imensa, terminando numa superfície plana onde, segundo dizem, permaneceram os santos; no meio, há como que um altar feito de pedras. Lemos, então, o passo do livro de Moisés e dissemos um Salmo adequado ao lugar; e, depois de rezarmos, tornamos a descer.

5. [A Volta] Eis que era quase a hora oitava (=duas horas), talvez, e ainda nos restavam três milhas para sairmos completamente daqueles montes onde tínhamos entrado na véspera à tarde; mas, porque precisávamos percorrer todos os lugares santos e ver todos os ermitérios que houvesse, não devíamos sair pelo mesmo caminho pelo qual entráramos, segundo contei, mas pela extremidade do vale que acima descrevi; refiro-me ao vale que se estende até a base da montanha de Deus.

6. E devíamos sair pela extremidade do vale porque havia ali numerosas habitações de homens santos e uma igreja no lugar da sarça, que ainda, até hoje, vive e brota.

7. [Desata a Correia do teu Calçado] Assim, pois, descendo do monte de Deus, chegamos à sarça mais ou menos à hora décima (=quatro horas). Esta é a sarça que mencionei, do meio da qual, em fogo, Deus falou à Moisés [Ex. 3,1ss] e que está exatamente no lugar onde há numerosos ermitérios e a igreja, na extremidade do vale. Há, ante esse igreja, um jardim agradabilíssimo, com água ótima e abundante, e é nesse jardim que se encontra a sarça.

8. Vê-se também aí, bem junto, o lugar onde estava o santo Moisés [Ex. 3,5] quando lhe disse Deus: ?Desata a correia do teu calçado? etc. Ao chegarmos a esse local era já a hora décima e, porque era tarde, não mais pudemos fazer a Oblação. Rezamos, porém, a oração na igreja e igualmente no horto, junto à sarça; lemos também o passo adequado no livro de Moisés, como era nosso costume, e também, porque era tarde, merendamos ali mesmo no jardim, diante da sarça, com os santos; pela mesma razão aí acampamos. No dia seguinte, acordando bem cedo, pedimos aos sacerdotes que aí mesmo se fizesse a Oblação, o que se fez.

 

V

1. O nosso caminho consistia em atravessar, pelo meio, no sentido do comprimento, o vale a que anteriormente me referi, onde haviam permanecido os filhos de Israel enquanto Moisés subira ao monte de Deus e tornara a descer; voltando nós, pois, pelo vale todo, mostravam-nos os santos, sempre, cada lugar.

2. Bem na extremidade do vale onde acampamos e vimos a sarça de dentro da qual falara Deus ao santo Moisés, do meio do fogo, vimos também o lugar onde Moisés estivera de pé, diante da sarça, ao dizer-lhe Deus: ?Desata a correia do teu calçado, pois o lugar onde estás é terra santa? [Ex. 3,5].

3. [O Bezerro de Ouro] Afastando-se nós então do arbusto, foram nos mostrando eles todos os outros sítios. Mostraram-nos o lugar do acampamento dos filhos de Israel durante aqueles dias em que Moisés estivera no monte. Mostraram-nos também o local onde se construiu o bezerro, porque aí se ergue ainda, até hoje, uma grande pedra.

4. E agora nós, à medida que caminhávamos, víamos do outro lado, contemplando o vale todo, o alto do morro de onde o santo Moisés vira os filhos de Israel dançando, naqueles dias em que construíram o bezerro. Mostraram-nos ainda o lugar em que descera o santo Moisés com Josué, filho de Nave, uma pedra enorme contra a qual, irado, quebrara ele as tábuas que ele trazia [Ex. 32,19].

5. [O Acampamento dos Filhos de Israel] Mostraram-nos também de que maneira, nesse vale, todos eles tiveram sua casa, e os alicerces dessas casas ainda, até hoje, realmente, aparecem dispostos em círculos de pedra, assim como foram. Igualmente nos mostraram o lugar onde, ao voltar do monte, o santo Moisés ordenara aos filhos de Israel que passassem ?de porta em porta? [Ex. 32,27].

6. E também o lugar onde, por ordem do próprio Moisés, foi queimado o bezerro que para eles fizera Aarão [Ex. 32,20]; e a torrente da qual beberam o santo Moisés e os filhos de Israel, como está escrito no Êxodo [Ex. 17,5-6].

7. Mostraram-nos ainda o lugar onde setenta homens receberam, de Moisés, o espírito divino [Nm. 11,25]; e o sítio onde os filhos de Israel foram vítimas da cobiça dos alimentos [Nm. 11,4]. Do mesmo modo, mostraram-nos o sítio que se chama ?incêndio? porque se queimara uma parte do acampamento [Nm 11,1-3] e, rezando o justo Moisés, o fogo cessara.

8. E também o lugar onde choveram, para eles, maná e codornizes [Ex. 16,13-14; Nm. 11,31]. Assim, pois, minuciosamente, tudo quanto, segundo os livros santos de Moisés, se passara nesse lugar, isto é, no vale que eu disse estender-se até a base do monte de Deus – o santo Sinai – tudo nos foi mostrado. Descrevê-lo pormenorizadamente seria demais, mesmo porque nem se poderiam lembrar tantas minúcias, mas lendo Vossa Bondade os livros santos de Moisés, compreenderá melhor os fatos que ali aconteceram.

9. Este é o vale onde foi celebrada a Páscoa um ano após terem partido da terra do Egito os filhos de Israel [Nm. 9,1-5] que aí se demoraram algum tempo, enquanto o santo Moisés subiu ao monte de Deus e de lá desceu, uma primeira e uma segunda vez; de novo aí permaneceram enquanto construíram o tabernáculo e tudo o que nos foi mostrado no monte de Deus; pois vimos também o ponto em que fora erguido por Moisés o primitivo tabernáculo e onde foram executados todos os atos que Deus lhe ordenara executasse na montanha [Ex. 40,16-33].

10a. Vimos ainda os sepulcros da avidez na extremidade do vale, no lugar por onde tornamos ao nosso caminho, quero dizer, onde, saindo do grande vale, reentramos na estrada pela qual viéramos, entre os montes que eu, acima, descrevi.

10b. [Os Monges] Nesse mesmo dia, fomos ter com outros monges muito santos que, porém, pela sua idade e fraqueza, não podiam ir à montanha de Deus para fazer a Oblação, mas se dignaram acolher com a maior bondade a nossa chegada a seus mosteiros.

11. E assim, depois de vermos todos os lugares santos que desejávamos, e ainda todos os sítios onde os filhos de Israel tinham aportado, indo para a montanha de Deus, ou dela voltando, e depois de vermos também os santos homens que aí moravam, em nome de Deus, voltamos a Faran.

12. E ainda que eu deva, sempre, dar graças a Deus em todas as coisas, nada direi sobre as tão numerosas e tão grandes com que dignou cumular-me, a mim, indigna e não merecedora, para que eu visitasse todos os lugares que eu não merecia conhecer, e todos aqueles santos, a quem eu nem consigo agradecer suficientemente pois se dignaram receber, de bom grado, em seus mosteiros, a minha pequenez ou, pelo menos, guiar-me por todos os lugares que eu, sempre, segundo as Escrituras Santas, procurava. Muitos desses santos que moravam no monte de Deus ou próximo da montanha e que eram, fisicamente, mais vigorosos, dignaram-se reconduzir-nos a Faran.

 

VI

1. [De Faran a Clisma] Chegando a Faran, distante trinta e cinco milhas da montanha de Deus, foi-nos necessário aí permanecer por dois dias para recuperar-nos. No terceiro dia, apressados, voltamos àquele albergue no deserto de Faran onde, como contei, pousáramos na ida. Dali, no dia seguinte, fazendo a nossa provisão de água e caminhando ainda um pouco entre os montes, atingimos um acampamento à beira-mar, no ponto onde já se sai das montanhas e se empreende, novamente, caminhada bem junto ao mar; junto ao mar, porém, da seguinte forma: ora a onda bate, inesperadamente, nos pés dos animais, ora andamos a cem ou duzentos passos, algumas vezes a mais de quinhentos passos do mar, pelo deserto; estrada, na verdade, absolutamente não há, mas tão somente desertos de areia.

2. Os faranitas, que por aí costumam a passar com seus camelos, colocam, de espaço a espaço, sinais pelos quais possam guiar-se e assim viajam durante o dia. De noite, os camelos é que prestam atenção aos sinais; resumindo: graças a eles, os faranitas circulam, durante a noite, nessa região, com exatidão maior e maior segurança do que qualquer homem pode fazê-lo nos sítios onde haja uma estrada aberta.

3. Regressando, portanto, saímos de entre os montes no mesmo lugar onde, indo, por eles entráramos, e chegamos de novo ao mar. Também os filhos de Israel, voltando do monte de Deus – Sinai – até aí, seguiram o caminho pelo qual tinham ido, até o ponto onde nós saímos de entre os montes e reencontramos o mar Vermelho; daí volvemos à rota pela qual viéramos enquanto que os filhos de Israel, como está escrito nos livros do santo Moisés, seguiram seu próprio rumo [Nm. 10,12; 33,1-49].

4. [A Terra de Gessen] Nós, porém, pela mesma via e pelas mesmas paradas pelas quais fôramos, voltamos a Clisma; aí chegando, precisamos descansar, pois grande fora nossa viagem pelo deserto arenoso.

 

VII

1. Embora, na verdade, eu já conhecesse a terra de Gessen, por onde passara ao ir ao Egito pela primeira vez, desejei, contido, ver todos os lugares que os filhos de Israel, saindo de Ramsés, tocaram até chegar ao mar Vermelho, a esse local que agora se chama Clisma por causa do forte que aí se encontra. Foi meu desejo, pois, que nos dirigíssemos de Clisma até a terra de Gessen, quero dizer, até uma cidade que se chama Arábia e se situa dentro da terra de Gessen: chama-se esse território ?Terra de Arábia? – terra de Gessen – e, sendo parte do Egito, é, no entanto, muito melhor do que todo o resto do Egito [Gn. 45,10.18.20; 47,6].

2. Há, pois, de Clisma – isto é, do mar Vermelho – até a cidade de Arábia, quatro pousadas através do deserto: tanto é de fato pelo deserto, que há, em cada acampamento, um posto com soldados e oficiais que nos acompanharam, sempre, de um forte a outro. E, no caminho, os santos que conosco estavam, clérigos e monges, mostravam-nos todos os sítios que eu, sempre de acordo com as Escrituras, pedia; alguns ficavam à esquerda, outros à direita do nosso caminho; uns, ainda, longe da estrada, outros próximo.

3. Creia-me Vossa Bondade, tanto quanto pude compreender, os filhos de Israel de tal forma erraram que, tanto quanto andavam para a direita, voltavam para a esquerda, tanto quanto iam para a frente, voltavam para trás; assim percorreram esse caminho até chegarem ao mar Vermelho [Ex. 14,1-3].

4. Mostraram-nos, defronte, Epáulis e fomos a Magdol, onde há, presentemente, um forte com um oficial e soldados que ele aí comanda consoante a disciplina romana. E acompanharam-nos eles, segundo o costume, daí até o outro posto; mostraram-nos Baal-Sefon e para lá nos dirigimos. É uma planície além do mar Vermelho, junto ao flanco da montanha que acima descrevi, onde, vendo os egípcios que os perseguiam, os filhos de Israel ?clamaram ao Senhor? [Ex. 14,10].

5. Vimos, ainda, Etam, que fica junto do deserto como está escrito [Ex. 13,20], e também Sucot, pequena encosta no meio do vale, junto da qual os filhos de Israel assentaram acampamento [Ex. 12,37]; este é o lugar onde foi recebida a lei da Páscoa [Ex. 12, 43ss].

6. Também a cidade de Piton, que edificaram os filhos de Israel [Ex. 1,11], foi-nos mostrada nesse caminho, entrando nós no território do Egito e deixando já as terras dos sarracenos. A cidade de Piton é agora um forte.

7. Herópolis, cidade no tempo em que José correu ao encontro do pai, Jacó, segundo se lê no Gênesis [Gn. 46,29], é agora um povoado bastante grande, porém, e que chamamos aldeia. Tem essa aldeia uma igreja, vários martyria (=santuários dedicados aos mártires) e numerosos ermitérios de monges santos; para vê-los, tivemos que descer até lá, conforme o nosso hábito.

8. Chama-se, agora, Hero essa aldeia; e Hero, a quinze milhas da terra de Gessen, dentro do território egípcio, é lugar muito agradável por ser banhado por um esteiro do Nilo.

9. [A Cidade de Arábia na Terra de Gessen-Ramsés] Assim, partindo nós de Hero, chegamos à cidade chamada Arábia, situada na terra de Gessen, razão pela qual está escrito que o faraó disse a José: ?Na melhor terra do Egito, na terra de Gessen, na terra de Arábia, estabelece teu pai e teus irmãos? [Gn. 47,6].

 

VIII

1. Da cidade de Arábia até Ramsés há quatro mil passos e, para chegar ao acampamento de Arábia, atravessamos, pelo meio, Ramsés, cidade que é agora um terreno plano e não tem uma só casa. Parece, na verdade, pelo seu contorno, ter sido uma imensa e ter tido inúmeras construções, pois inúmeras são as suas ruínas, caídas como estão e como até hoje se vêem.

2. Atualmente nada mais há no local a não ser uma enorme pedra de Tebas na qual foram esculpidas duas estátuas ingentes que seriam dos santos Moisés e Aarão, em cuja honra teriam sido aí colocadas pelos filhos de Israel.

3. Há também um sicômoro plantado, segundo se diz, pelos patriarcas; já, agora, está velhíssimo e por conseguinte munito engelhado, embora, na verdade, ainda dê frutos. Todos os que padecem de alguma doença dele se aproximam e tomam-lhe uns ramos pequenos que lhes fazem bem.

4. Isto soubemos pelo santo bispo de Arábia, que nos disse, inclusive, o nome da árvore: chamam-na, em grego, ?dendros alethiae?, o que para nós quer dizer ?árvore da verdade?. Este santo bispo dignou-se vir a Ramsés, ao nosso encontro; é um homem já idoso, verdadeiramente piedoso e afável, antigo monge que recebe com bondade os peregrinos e é altamente versado nas Escrituras de Deus.

5. Dignando-se, pois, abalar-se e vir encontrar-nos, mostrou-nos tudo, minuciosamente, e contou-nos a história das estátuas a que me referi, e também a do sicômoro. Contou-nos, ainda, o santo bispo que o faraó, ao ver que tinham fugido os filhos de Israel, antes de se pôr em campo a persegui-los, teria invadido Ramsés com todo o seu exército e a teria incendiado toda, enorme como era; só depois teria partido em perseguição aos filhos de Israel.

 

IX

1. Casualmente sucedeu – e foi para nós muito grato – que o dia em que chegamos ao acampamento de Arábia fosse véspera do feliz dia da Epifania e devessem ser feitas as vigílias na igreja. Assim, pois, aí nos reteve, por dois dias, o santo bispo – santo e homem de Deus, verdadeiramente – já bastante conhecido por mim, do tempo em que eu estivera na Tebaída.

2. Esse santo bispo é um antigo monge criado, desde pequeno, em um mosteiro e, por isso, é tão erudito nas Escrituras e tão irrepreensível em toda a sua vida, como afirmei.

3. A partir daí, dispensamos os soldados que nos haviam auxiliado em nome dos príncipes romanos, enquanto andáramos por regiões perigosas; agora, porém, visto que a estrada que atravessa a cidade de Arábia, isto é, a que conduz da Tebaída a Pelúsio, é pública através do Egito, não mais se fazia necessário molestá-los.

4. Partindo daí, seguimos pela terra de Gessen, sempre entre videiras que dão vinho e videiras que dão bálsamo, e entre pomares e campos muito cultivados e jardins lindíssimos.  Percorremos todo o caminho pela margem do rio Nilo, atravessando terras copiosíssimas que tinham sido, outrora, propriedades dos filhos de Israel. Para encurtar palavras, creio jamais ter visto mais belo território do que a terra de Gessen.

5. Partindo da cidade de Arábia e viajando durante dois dias pela terra de Gessen, chegamos à cidade de Tânis, onde nasceu o justo Moisés; esta cidade de Tânis é que foi outrora a metrópole do faraó [Is. 19,11.13; 30,3; Nm. 13,22-23].

6. E ainda que, como afirmei, tivesse conhecido a região quando estivera em Alexandria e na Tebaída, todavia, porque eu queria conhecer a fundo os lugares por onde tinham andado os filhos de Israel dirigindo-se de Ramsés ao monte santo de Deus – Sinai – foi-me necessário voltar, ainda uma vez, à terra de Gessen e a Tânis; depois, partindo de Tânis e seguindo por um caminho que já conhecida, cheguei a Pelúsio.

7. [Volta à Palestina] Daí, tornando a partir e passando por todos os acampamentos do Egito pelos quais viéramos, cheguei aos limites da Palestina e, em  nome de Cristo, nosso Deus, fazendo novas paragens através da Palestina, voltei a Élia, isto é, Jerusalém.

 

X

1. Assim também, decorrido bastante tempo, e pela vontade de Deus, meu desejo foi dirigir-me, ainda uma vez, à Arábia, isto é, ao monte Nebo, ao lugar a que ordenou Deus a Moisés que subisse, dizendo-lhe: ?Sobe ao monte de Abarim, ao monte Nebo que fica na terra de Moab, defronte de Jericó, e vê a terra de Canaã que Eu dou aos filhos de Israel como propriedade, e morre nesse monte em que tiveres subido? [Dt. 32,49-50].

2. E Jesus, nosso Deus, que não abandonará os que n?Ele confiarem, dignou-se novamente proteger-me nesta nova realização do meu desejo.

3. [O Jordão. Jericó. O Monte Nebo] Partindo de Jerusalém com os santos, isto é, com o presbítero e os diáconos de Jerusalém, e com alguns irmãos – monges, quero dizer – chegamos ao trecho do Jordão que os filhos de Israel atravessaram quando o santo Josué, filho de Nave, os fez passar o Jordão, como está escrito no livro de Josué, filho de Nave [Js. 3-4]. Mostraram-nos o lugar um pouquinho mais elevado, onde os filhos de Rúben e Gad e a metade da tribo de Manassés erigiram um altar, na margem onde se encontra Jericó [Js. 22,10-34].

4. Atravessando, pois, o rio, chegamos à cidade que se chama Lívias e se situa na planície onde, então, os filhos de Israel tinham fixado o seu acampamento. Ainda hoje se vêem as bases do acampamento dos filhos de Israel e das habitações onde moraram. Essa planície, na verdade, parece não ter fim, estendendo-se até a raiz das montanhas, além do Jordão. Esse é o lugar do qual está escrito: ?E os filhos de Israel choraram Moisés no Abarim, em Moab e no Jordão, defronte de Jericó, durante quarenta dias? [Dt. 34,8].

5. Esse é também o lugar onde, após a morte de Moisés [Dt. 34,9], Josué, filho de Nave, foi imediatamente cumulado do espírito de ciência porquanto Moisés impusera sobre ele suas mãos, como está escrito [Dt. 31,23].

6. Esse é o lugar onde Moisés escreveu o livro do Deuteronômio [Dt. 31,22-24]; esse é também o exato lugar onde Moisés proferiu, aos ouvidos de toda a assembléia de Israel, até a última, todas as palavras do cântico que está no livro do Deuteronômio [Dt. 31,30; 32,1-43]. Esse é o mesmo lugar onde o santo Moisés, homem de Deus, abençoou cada uma das tribos de Israel, uma após outra, antes de sua morte [Dt. 33,1-29].

7. Nós, portanto, em chegando à planície, dirigimo-nod a esse sítio e aí dissemos uma oração; lemos ainda um passo do Deuteronômio e também o cântico de Moisés e as bênçãos que proferiu sobre os filhos de Israel. Rezamos novamente após a leitura e, dando graças a Deus, dali nos afastamos. Era sempre o nosso costume que, onde quer que conseguíssemos aproximar-nos dos lugares procurados, aí rezássemos, em primeiro lugar, uma oração; lêssemos, em seguida, as palavras da Bíblia; disséssemos um Salmo de acordo com a circunstância e outra oração. Esse hábito, pela vontade de Deus, mantivemos sempre, onde quer que pudemos atingir os lugares procurados.

8. Assim, pois, a fim de concluir a empresa encetada e chegar ao monte Nebo, começamos a apressar-nos. Instruiu-nos, durante a caminhada, um sacerdote da localidade, isto é, de Lívias. Com os nossos rogos conseguimos trazê-lo conosco do acampamento porque conhecia melhor a região. Disse ele: ?Se quiserdes ver a água que flui da pedra, a água que deu Moisés aos filhos de Israel quando tiveram sede [Ex. 17,6; Nm. 20,8-11], podereis vê-la se, entretanto, aceitardes a pena de nos afastarmos da estrada, perto da sexta milha?.

9. Logo que o disse, tomou-nos um grande desejo de ir até lá e, desviando-nos da estrada, seguimo-lo. Há, nesse local, uma igreja pequena, ao pé de um monte que não é o Nebo, mas um outro, mais para o interior, não longe do primeiro; muitos monges aí vivem; são verdadeiramente santos e aqui se chamam ascetas.

 

XI

1. Pois esses monges santos dignaram-se receber-nos com grande bondade, e até nos permitiram entrar para saudá-los. Entrando, rezamos com eles e se dignaram oferecer-nos eulógias, como costumam oferecer àqueles que bondosamente recebem.

2. Ali, a meio caminho entre a igreja e os mosteiros, flui, da pedra, abundante água, bela, sem dúvida, e límpida, de excelente sabor. Nós, então, perguntamos também aos santos monges que ali moravam, que água era aquela, de tal natureza e de tal sabor, ao que responderam: ?Esta é a água que deu Moisés aos filhos de Israel, neste deserto? [Ex. 17,7].

3. Rezamos ali, pois, segundo o nosso costume, uma oração e lemos a leitura correspondente nos livros de Moisés; dissemos ainda um Salmo e, juntamente com os santos clérigos e monges que tinha vindo conosco, prosseguimos na direção do monte. Muitos desses monges que aí viviam, junto a essa água, podendo suportar o esforço, dignaram-se escalar conosco o monte Nebo.

4. E, partindo desse local onde nos encontrávamos, chegamos ao sopé do monte Nebo, que é muito alto; embora se pudesse subir a maior parte dele em lombo de mula, havia um pequeno trecho, porém, muito áspero, que era necessário subir a pé, com esforço. E assim se fez.

 

XII

1. [O Cimo do Monte Nebo. A Sepultura de Moisés] Chegamos ao cimo do monte, onde há agora uma igreja, não muito grande. No interior dessa igreja, ali onde se encontra o púlpito, vi um lugar pouca coisa mais alto, com a extensão que costumam ter as sepulturas.

2. Perguntei então aos santos de que se tratava e eles responderam: ?Aqui foi colocado, pelos anjos, o santo Moisés, visto que, como está escrito [Dt. 34,6], nenhum homem lhe conhece a sepultura, pois foi sepultado pelos anjos. Na verdade, a sepultura dele, onde ele realmente tenha sido colocado, até hoje não se conhece; e, tal como nos mostraram os primeiros que aqui vieram, o lugar onde teria sido colocado, assim nós vo-lo damos a conhecer, e esses primeiros diziam que o mesmo lhes tinha sido transmitido pelos mais antigos?.

3. [O Panorama] Rezamos, portanto, sem demora, uma oração e tudo quanto costumávamos fazer, sucessivamente, em cada um dos lugares santos, ainda aí o fizemos; e saímos da igreja. Disseram-nos, então, os que conheciam o lugar, os sacerdotes e os santos monges: ?Se quiserdes ver os lugares descritos nos livros de Moisés, dirigi-vos à porta da igreja e, desse cume, reparai bem no que se pode ver daqui; nós vos diremos, um a um, que lugares são todos esses que aparecem?.

4. Nós, então, muito contentes, saímos. De fato, da porta da igreja vimos o local onde o Jordão entra no mar Morto; esse ponto parecia bem abaixo de nós, do lugar onde estávamos. Vimos, também, defronte, , não somente Lívias, aquém do Jordão, mas também Jericó, além do Jordão, tanto sobressaía o lugar elevado em que nos colocáramos, à entrada da igreja.

5. Via-se, também, de lá, grande parte da Palestina, que é a Terra da Promissão, e também a terra do Jordão, até onde os olhos podiam alcançar. Do lado esquerdo, vimos todas as terras dos sodomitas e também Segor – das cinco, a única que ainda hoje subsiste [Gn. 14,2-3; 19,20-22; Dt. 34,3].

6. Há realmente aí um monumento enquanto que nada mais aparece das outras cidades, a não ser um monte de ruínas, pois foram reduzidas a cinzas. Mostraram-nos, ainda, o lugar da estátua da mulher de Ló, lugar do qual também se trata nas Escrituras [Gn. 19,26].

7. Mas crede-me, Veneráveis Senhoras, não mais se vê a coluna e só se mostra o seu lugar; a coluna, dizem, ter sido inteiramente coberta pelo mar Morto. Embora, incontestavelmente, tenhamos visto o lugar, não vimos nenhuma coluna e, por essa razão, não posso enganar-vos a este respeito. Disse-nos o bispo daí, isto é, de Segor, haver já alguns anos que a coluna não aparecia. O lugar onde se ergueu e que agora a água encobriu inteiramente fica, talvez, cinco milhas além de Segor.

8. Igualmente nos aproximamos do lado direito da igreja, pelo lado de fora, e daí nos mostraram, defronte, duas cidades: Hesebon, que pertenceu a Seon, rei dos amorreus e que agora se chama Exebon; e outra, de Og, rei de Basan, agora chamada Sasdra [Nm. 21,26; Dt. 29,6 / Nm. 21,33; Dt. 3,10]. Daí também nos mostraram, defronte, Fegor [Nm. 23,28; Dt. 4,46], outrora cidade do reino de Edon.

9. Todas essas cidades que víamos estavam situadas sobre montanhas; abaixo, porém, um pouco abaixo, percebíamos um lugar mais plano. Disseram-nos, então, que naqueles dias em que o santo Moisés e os filhos de Israel lutaram contra essas cidades, aí teriam estabelecido o seu acampamento; viam-se, na verdade, sinais de um acampamento.

10. Do lado da montanha, que eu disse ser o esquerdo, e que ficava acima do mar Morto, mostraram-nos uma elevação muito escarpada, que anteriormente se chamara ?Agrispecula?. Este é o monte no qual Balac, filho de Sefor [Nm. 22,2.4-5], colocou o adivinho Balaão para amaldiçoar os filhos de Israel, o que, como está escrito, Deus não permitiu [Nm. 23,14ss].

11. Assim, pois, tendo visto o que desejávamos e voltando, em nome de Deus, por Jericó e por todo o caminho por onde viéramos, regressamos a Jerusalém.

 

XIII

1. [Ausitis. A Cidade de Melquisedec] Depois de algum tempo, quis eu também chegar à terra de Ausítis, a fim de visitar a sepultura do santo Jó e aí rezar [Jó 1,1]; eu via chegarem a Jerusalém para ver os lugares santos e neles orar muitos santos monges que, referindo pormenores dessa região, me aumentaram o desejo de me impor a fadiga de me dirigir, ainda, até ali – se, todavia, se pode falar em fadiga quando alguém vê realizar-se o seu desejo.

2. Parti, portanto, de Jerusalém com os santos que se dignaram acompanhar-me na minha viagem, e o faziam também pela oração. Tomando o caminho de Jerusalém até Cárneas, passei por oito acampamentos; Cárneas, que outrora se chamou Denaba, na terra de Ausítis, nas fronteiras da Iduméia e da Arábia, chama-se, agora, cidade de Jó [Gn. 36,32; Jó 1,1]. Seguindo por esse caminho, vi, à margem do rio Jordão, um vale magnífico e bastante ameno, abundante em vinhas e árvores, pois os cursos d?água são ali numerosos e a água excelente.

3. Há nesse vale uma grande povoação que agora se chama Sedima. E, no centro dessa mesma povoação, situada no meio da planície, há um outeiro não muito elevado, da altura que costumam ter as tumbas grandes; ali, no topo, há uma igreja e, embaixo, em volta desse montículo, aparecem uns alicerces, grandes e antigos. Também na povoação há bastante ruínas.

4. Ao ver um lugar tão agradável, perguntei que lugar tão ameno era aquele; disseram-me, então: ?Esta é a cidade do rei Melquisedec, outrora chamada Salém, de onde chamar-se agora Sedima, corruptela do nome primitivo. A construção que vedes no alto desse outeiro, situado no meio do povoado, é uma igreja que, agora, se chama em grego…

…(lacuna)

…de Melquisedec, e é o lugar onde Melquisedec ofereceu a Deus hóstias puras, isto é, pão e vinho, assim como está escrito que o fez [Gn. 14,18].

 

XIV

1. Ouvindo isto, descemos dos animais e eis que o santo presbítero desse lugar se dignou vir ao nosso encontro e, com ele, os clérigos; e eles, imediatamente, encarregando-se de nós, conduziram-nos à igreja. Em aí chegando, logo, segundo o nosso costume, rezamos, primeiro, uma oração; em seguida, lemos o trecho do livro do justo Moisés, recitamos um Salmo de acordo com o lugar, e descemos, depois de rezar ainda uma oração.

2. Depois de descermos, falou conosco o santo presbítero, já idoso e muito versado nas Escrituras e que, antigo monge, estava encarregado dessa região; de sua vida – como logo depois soubemos – numerosos bispos davam elevado testemunho, dizendo que era digno de estar à testa desse lugar, onde o santo Melquisedec fora o primeiro a oferecer a Deus sacrifícios puros, quando da chegada do santo Abraão. Descendo nós, pois, como eu disse, da igreja para o povoado, disse-nos esse padre santo: ?Estes alicerces que vedes ao redor deste outeiro são os do palácio do rei Melquisedec. Ainda hoje, se alguém, querendo fazer para si uma casa junto deles, toca nas fundações, encontra algumas vezes, pedacinhos pequenos de prata e bronze?.

3. ?E esta estrada que vedes passar entre o rio Jordão e o povoado é a estrada pela qual regressou, tornando a Sodoma, o santo Abraão, após matar Codorlaomer [Gn. 14,1], rei dos gentios, e pela qual correu ao seu encontro Melquisedec, rei de Salém?.

 

XV

1. [O Jardim de São João] Então, lembrando-me eu de que estava escrito ter São João batizado em Enom, perto de Salim [Jo 3,23], perguntei-lhe a que distância ficava esse lugar. Respondeu-me o santo presbítero: ?A duzentos passos e, se o desejais, eu vos conduzo até ali agora mesmo, a pé. Esta água tão abundante e tão pura que vedes neste povoado vem dessa fonte?.

2. Agradeci-lhe e pedi-lhe que nos conduzisse à fonte, no que consentiu. Imediatamente, então, fomos com ele, a pé, por todo um vale agradabilíssimo, até chegar a um pomar ridente, no centro do qual nos mostrou uma fonte de água excelente e muito pura que, de um jato, formava um perfeito rio. Havia diante da fonte como que um lago onde teria São João Batista praticado o seu ministério.

3. Disse-nos, então, o santo presbítero: ?Ainda hoje, este jardim se chama, em grego, ?cepos tu agiu Iohanni?, isto é, como dizeis em latim, ?hortus sancti Iohannis? (=jardim de São João). Muitos irmãos, monges santos vindos de diversos lugares, aí acampam, a fim de purificar-se?.

4. Ainda aí, nessa fonte, como em toda parte, rezamos uma oração, lemos a leitura e dissemos o Salmo correspondentes e tudo quanto costumávamos fazer sempre que chegávamos aos lugares santos, ali o fizemos.

5. Disse-nos também o santo presbítero que sempre, até hoje, em cada Páscoa, todos aqueles que devem ser batizados ali, na igreja que se chama ?casa de Melquisedec?, nessa fonte são batizados e voltam lentamente, ao romper da aurora, carregando tochas, com os clérigos e os monges, cantando salmos e antífonas; e assim, da fonte até a igreja do santo Melquisedec, são conduzidos todos os recém-batizados.

6. Nós, então, recebendo do sacerdote eulógias do pomar de São João Batista e, igualmente, dos santos monges que ali no pomar tinham seus ermitérios, e dando sempre graças a Deus, retomamos o caminho que seguíamos.

 

XVI

1. [Tisbe. A Cidade do Justo Elias] Assim, então, seguindo pelo vale do Jordão, pela própria margem do rio, caminho que seria o nosso durante algum tempo, subitamente vimos a cidade do justo profeta Elias, isto é, Tisbe, da qual recebeu ele o nome de Elias Tesbita [1Rs. 17,1]. Até hoje vê-se ali uma gruta onde permaneceu o satno e também a sepultura do santo Jefté, cujo nome se lê nos livros dos Juízes [Jz. 12,7].

2. E dando ali graças a Deus conforme o nosso costume, prosseguimos o nosso caminho. Seguindo por ele, vimos à nossa esquerda um vale muito aprazível, enorme, lançando no Jordão uma torrente imensa: e nesse vale a habitação de um irmão que aí vive, agora, como monge.

3. Eu, então, que sou bastante curiosa, perguntei que vale seria esse onde um monge santo erguera para si um ermitério; na verdade, julguei não poder deixar de haver um motivo. Disseram-me, então, os santos que conosco viajavam e que eram conhecedores da região: ?Este é o vale Corra, onde morou o santo Elias Tesbita nos tempos do rei Acab [1Rs. 17,3-6] e onde houve fome e onde um corvo, mandado por Deus, lhe trazia o alimento; e ele bebia água desta torrente, pois esta torrente, que vedes percorrer o vale em direção ao Jordão, é o Corra?.

4. [O Túmulo de Jó] E pois, dando não menos graças a Deus, que se dignava mostrar-nos, a nós que o não merecíamos, tudo quanto desejávamos ver, retomamos, como todos os dias, o nosso caminho. E, viajando dia após dia, apareceu-nos, inesperadamente, do lado esquerdo, de onde víamos, defronte, a região da Fenícia – um monte muito grande e enormemente alto, que se estendia ao cumprido…

…(lacuna)…

5. …?Monge santo e asceta que precisou, depois de tantos anos em que vivia no deserto, abalar-se e descer à cidade de Cárneas, para dizer aos bispos e clérigos desse tempo, de acordo com o que lhe fora revelado, que cavassem no lugar determinado. Assim o fizeram?

6. ?E, cavando eles no ponto que lhes fora indicado, encontraram uma gruta na qual penetraram, talvez, cem passos, quando, inesperadamente, enquanto cavavam, apareceu uma lápide; e quando a puseram inteiramente a descoberto, encontraram, esculpido no testo: ?Iob?. A Jó, então, ergueram neste lugar esta igreja que vedes, de maneira, contudo, que a pedra com o corpo não fosse removida para outro lugar, mas permanecesse aí onde o corpo havia sido encontrado, e que o corpo jazesse sob o altar. Não foi, porém, terminada ainda, até hoje, a igreja construída por não sei que tribuno?.

7. [Novo Regresso a Jerusalém] Nós, portanto, na manhã seguinte, pedimos ao bispo que fizesse a Oblação, o que se dignou fazer e, abençoando-nos ele, partimos. Após a comunhão, dando sempre graças a Deus, regressamos a Jerusalém, percorrendo todas as paragens pelas quais viéramos três anos antes.

 

XVII

1. [Mesopotâmia] A seguir, em nome de Deus, passado algum tempo, decorridos três anos completos desde que eu chegara a Jerusalém, depois de ver todos os lugares santos a que me dirigira para rezar, senti o desejo de voltar à minha pátria; quis, ainda, porém, pela vontade de Deus, chegar até a Mesopotâmia da Síria para ver os monges santos que aí, segundo diziam, eram numerosos e levavam vida tão santa que dificilmente se pode descrever. Queria também rezar no Martyrium do apóstolo São Tomé, onde o seu corpo inteiro fora colocado, perto de Edessa; para lá, depois que subisse ao céu, manda-lo-ia Jesus, nosso Deus, que o prometera na carta enviada ao rei Abgar pelo mensageiro Ananias, carta que está guardada com grande respeito na cidade de Edessa, onde se encontra o Martyrium.

2. Creia-me Vossa Bondade: não há um só cristão que venha aos lugares santos, isto é, a Jerusalém, e se não dirija para lá, a fim de rezar; e esse lugar fica na vigésima quinta parada depois de Jerusalém.

3. E já que a Mesopotâmia é muito perto de Antioquia, foi muito conveniente para mim, pela vontade de Deus, uma vez que voltava a Constantinopla e o caminho era por Antioquia, ir daí à Mesopotâmia. E foi o que fiz, pela vontade de Deus.

 

XVIII

1. E, em nome de Cristo, nosso Deus, parti de Antioquia em direção à Mesopotâmia, passando por acampamento ou cidades da província da Celessíria, que é a de Antioquia; daí, caminhando para o território da província Augustofratense, cheguei à cidade de Hierápolis, capital dessa província Augustofratense. E, porque a cidade é muito bonita, opulenta e rica, aí fiz uma parada, mesmo porque não ficava longe o território da Mesopotâmia.

2. Assim, pois, partindo de Hierápolis, em nome de Deus, cheguei, na décima quinta milha, ao rio Eufrates, do qual está muito bem escrito que é o ?o grande rio Eufrates? [Gn. 15,18]; é enorme e quase medonho, correndo com grande ímpeto, assemelhando-se ao Ródano, exceto pelo fato de ser ainda maior.

3. E porque era necessário atravessá-lo de barco, e barco grande, demorei-me aí, talvez, mais de meio dia; depois, em nome de Deus, atravessando o Eufrates, entrei no território da Mesopotâmia da Síria.

 

XIX

1. [Edessa. O Túmulo de São Tomé] Seguindo ainda por mais algumas etapas, cheguei a uma cidade cujo nome lemos nas Escrituras: Batânis, que ainda até hoje existe e conta com uma igreja e um bispo verdadeiramente santo, monge e confessor, e alguns martyria. Há na cidade, além disso, verdadeira multidão de homens, e soldados aí acantonados com o seu tribuno.

2. Partindo daí, chegamos, em nome de Cristo, nosso Deus, a Edessa; e, chegando, fomos imediatamente à igreja e ao Martyrium de São Tomé. Depois de rezarmos, conforme o nosso hábito, as nossas orações e de executarmos todos os atos que costumávamos [a fazer] nos lugares santos, lemos, também, alguns passos concernentes ao mesmo São Tomé.

3. A igreja é grande e muito bela, nova e verdadeiramente digna de ser a casa de Deus; e porque havia muitas coisas que eu queria ver, tive de fazer aí uma parada de três dias.

4. Vi, na cidade, numerosos martyria e também monges santos, morando uns próximo dos martyria, outros longe da cidade, tendo seus ermitério em lugares mais afastados.

5. O santo bispo da cidade, homem verdadeiramente religioso, monge e confessor, disse-me, acolhendo-me de boa vontade: ?Vejo, filha, que pela religião te impuseste tão grande labor que, dos confins da terra, chegaste a estas paragens; se, pois, isso te der prazer, nós te mostraremos todos os lugarres que são, aqui, agradáveis de ver para os cristãos?. Então, pois, dando graças a Deus em primeiro lugar, e também a ele, pedi-lhe muitíssimo se dignasse fazer o que dizia.

6. [O Rei Abgar. As Fontes do seu Palácio] Conduziu-me, primeiramente, ao palácio do rei Abgar, de quem me mostrou, aí, uma estátua muito fiel segundo diziam, de mármore tão brilhante que parecia de margarita; e o semblante da estátua evidenciava o ter sido Abgar homem realmente muito sábio e honrado. Disse-me o santo bispo: ?Eis o rei Abgar que, antes de ter visto o Senhor, acreditou ser ele verdadeiramente o Filho de Deus?. Havia, ao lado, outra estátua, de Magno, segundo me disse, filho de Abgar, de igual mármore e tendo igualmente algo de belo no rosto.

7. Ato contínuo, penetramos no interior do palácio; havia aí fontes cheias de peixes. Até hoje nunca vi semelhantes, nem tão grandes, nem de águas tão puras ou de tão agradável sabor! A cidade não tem absolutamente outra água, agora, a não ser a que sai do palácio e é como que um imenso rio de prata.

8. Contou-me, então, o santo bispo a história dessa água, dizendo: ?Algum tempo depois que o rei Abgar escrevera ao Senhor e o Senhor respondera a Abgar pelo correio Ananias, como está escrito na própria carta, um bocado de tempo depois, chegaram os persas e cercaram a cidade?.

9. ?Mas Abgar, sem demora, trazendo a carta do Senhor à porta da cidade, rezou, publicamente, com todo o seu exército. E disse a seguir: ?Senhor Jesus: tu nos havias prometido que nenhum inimigo marcharia sobre esta cidade, e eis que agora os persas nos atacam?. Logo que o disse, tendo nas mãos erguidas a carta aberta, fizeram-se, inesperadamente, grandes trevas; fora da cidade, porém, ante os olhos dos persas que, de tão próximos, encontravam-se já a menos de três milhas da cidade. Assim, repentinamente, tão transtornados foram pelas trevas, que mal puderam acampar e cercar a cidade toda, na terceira milha?.

10. ?De tal forma se perturbaram os persas que não mais puderam ver por que lado entrar na cidade; mantiveram-na, contudo, guardada por um cerco, à distância de três milhas; guardaram-na, assim, durante alguns meses?.

11. ?Depois, como vissem que de modo nenhum podiam entrar na cidade, quiseram matar pela sede os que nela se encontravam; pois este outeiro que vês, filha, sobre esta cidade, naquele tempo fornecia-lhe água. Vendo-o, desviaram-na os persas e fizeram-na correr defronte do local onde haviam acampado?.

12. ?Pois, no mesmo dia e na mesma hora em que os persas desviaram a água, estas fontes que vês neste lugar, por ordem de Deus, imediatamente brotaram de um jato e, desse dia até hoje, aqui permanecem, com a graça de Deus. Além disso, a água que os persas desviaram secou na hora, de tal sorte que não tiveram o que beber, nem por um só dia, os que cercavam a cidade; e, como se pode ver ainda hoje, nunca mais, até agora, qualquer líquido, de qualquer natureza, aí apareceu?.

13. ?Por conseguinte, pela vontade de Deus que o havia prometido, foi-lhes necessário voltar imediatamente à sua terra, isto é, à Pérsia. Depois, todas as vezes que os inimigos quiseram atacar e subjugar esta cidade, foi a carta exibida e lida à porta e, imediatamente, pela vontade de Deus, foram eles expulsos?.

14. Contou-nos também o santo bispo que, no lugar onde essas fontes apareceram, havia antes uma planície, no meio da cidade, subjacente ao palácio de Abgar. ?Porque o palácio de Abgar estava situado como que num lugar mais elevado, como ainda agora parece, tu o vês. Pois esse era o costume, naquele tempo: que todos os palácios se construíssem, sempre, em lugares altos?.

15. ?Mas, pouco depois que estas fontes irromperam neste lugar, então Abgar ergueu para o filho – Magno, cuja estátua vês colocada ao lado da do pai – este palácio, de tal forma que as fontes ficaram encerradas no interior do mesmo?.

16. [As Cartas do Rei Abgar] Depois de contar-me tudo isto, disse-me o santo bispo: ?Vamos agora à porta pela qual entrou o correio Ananias com a carta que mencionei?; e, chegando nós à porta, o bispo, de pé, rezou, leu-nos as cartas e, abençoando-nos mais uma vez, disse nova oração.

17. Ainda isto nos contou esse santo: que, desde o dia em que o correio Ananias entrou por essa porta com a carta do Senhor, até hoje está a porta guardada, para que ninguém, ou impuro ou de luto, possa passar e nem o corpo de algum morto seja por ela retirado.

18. Mostrou-nos ainda o santo bispo o túmulo de Abgar e de toda a família: belo mas construído à moda antiga. E conduziu-nos ao palácio superior que primeiro possuíra o rei Abgar; e todos os demais lugares que havia, mostrou-nos.

19. Foi ainda, para mim, motivo de alegria receber, desse santo bispo, as duas cartas que aí nos lera, quer a de Abgar ao Senhor, quer a do Senhor a Abgar. E ainda que eu tenha exemplares delas na minha pátria, ainda assim me parece mais agrável recebê-las dele, aqui, não houvesse o texto chegado até nós, na pátria, incompleto, pois é, de fato, maior este que aqui recebi. E se Jesus, nosso Deus, o ordenar e eu voltar à minha pátria, vós também o lereis, senhoras da minha alma.

 

XX

1. [Carras] Depois de aí passar três dias, precisei prosseguir até Carras, que é como agora se diz, pois nas Santas Escrituras chama-se Carra ao lugar para onde se dirigiu o santo Abraão, como está escrito no Gênesis, quando lhe disse o Senhor: ?Sai da tua terra e da casa de teu pai e vai a Carra? [Gn. 12,1].

2. Chegando eu a Carras, fui, imediatamente, à igreja situada dentro da cidade; vi também, logo depois, o bispo do lugar, verdadeiro santo e homem de Deus, monge e confessor que, sem demora, se dignou mostrar-nos todos os locais que aí desejávamos ver.

3. Pois conduziu-nos incontinenti a uma igreja fora da cidade, no sítio onde se erguera a casa do justo Abraão, da qual tem as mesmas fundações e a mesma pedra, como dizia o bispo santo. Entrando nós na igreja, rezamos uma oração e lemos o passo correspondente do Gênesis; dissemos ainda um Salmo e outra oração e, abençoando-nos o bispo, saímos.

4. Igualmente se dignou conduzir-nos ao poço de onde a santa Rebeca trazia água [Gn. 24,15-20] e disse-nos o santo bispo: ?Eis o poço do qual a santa Rebeca dessedentou os camelos de Eleazar, servo do santo Abraão?. Dignava-se ele, assim, mostrar-nos tudo.

5. [A Festa de Santo Elpídio. Naor e Batuel] Na igreja que eu disse estar fora da cidade, senhoras, veneráveis irmãs, onde se erguera primitivamente a casa de Abraão, há, agora, um Martyrium que é o de um santo monge, Elpídio. E o que muito nos agradou foi aí chegarmos na véspera do aniversário do martírio desse santo Elpídio, dia nove das calendas de maio (=23 de abril), dia em que, de todos os lados e de todo o território da Mesopotâmia, deviam descer todos os monges até Carras, mesmo os mais velhos, que viviam na solidão: os chamados ascetas. Esse dia é grandemente festejado, aí, em memória do santo Abraão, cuja casa se ergueu no mesmo sítio onde ora se ergue a igreja na qual se encontra o corpo do santo mártir.

6. Assim, pois, sucedeu-nos, inesperada e agradavelmente, ver aí os santos e os monges da Mesopotâmia, verdadeiros homens de Deus, e também aqueles cuja fama e vida eram muito conhecidas e que eu não esperava, absolutamente, poder ver; não porque fosse impossível a Deus conceder-me também isso – a Ele que se dignava tudo conceder-me – mas porque eu ouvira dizer que, a não ser no dia da Páscoa e nesse dia, sendo eles de natureza tal que grandes e numerosos são os seus méritos, nunca desciam dos seus recantos; e também porque eu não sabia em que mês era esse dia do martírio a que me refiro. Assim, foi pela vontade de Deus que aconteceu aí chegarmos nesse dia que eu nem esperava.

7. Aí permanecemos dois dias para a festa do martírio e para ver os santos, que se dignaram receber-me de muito bom grado, para saudar-me e conversar comigo, o que eu não merecia. Imediatamente após o dia do martírio, não mais aí foram vistos, mas dirigiram-se, na mesma noite, para o deserto, cada um deles para o seu próprio mosteiro.

8. Na cidades, além dos poucos clérigos e santos monges que aí moram, não encontrei absolutamente um só cristão, mas tão somente pagãos. E assim como nós, com grande reverência, honramos, em memória do justo Abraão, o lugar onde foi, outrora, a sua casa, assim também os pagãos, a mil passos, talvez, da cidade, honram com grande veneração o lugar onde se encontram as sepulturas de Naor e Batuel.

9. E porque o bispo da cidade é altamente versado nas Escrituras, interroguei-o, dizendo: ?Peço-te, senhor, que me digas o que eu desejaria ouvir?. E ele: ?Dize, filha, o que queres e eu te responderei, se o souber?. Disse eu, então: ?Sei, pelas Escrituras, que o santo Abraão vom o pai Taré e Sara, a mulher e Ló, o filho do irmão, veio para este lugar [Gn. 11,31]; porém, não li quando por aqui passaram Naor e Batuel; só isto sei que, pouco depois, o servo de Abraão veio a Carras, em busca de Rebeca, filha de Batuel, filho de Naor, para Isaac, filho do seu senhor, Abraão? [Gn. 22,23; 24,2ss].

10. Ao que respondeu o santo bispo: ?Na verdade, filha, está escrito, como dizes, no Gênesis, que o santo Abraão por aqui passou com os seus; porém, não dizem as Escrituras canônicas quando passaram Naor com os seus e Batuel. Mas, evidentemente, passaram também eles, pouco depois, e suas sepulturas aí estão, a mil passos da cidade, pouco mais ou menos. E as Escrituras, de fato, atestam que aqui veio o servo do justo Abraão a fim de buscar a santa Rebeca e ainda o santo Jacó uma vez, quando recebeu as filhas do sírio Labão? [Gn 11,31; 24,1ss; 28,2ss].

11. Perguntei-lhe, então, onde ficava o poço do qual o santo Jacó teria dessedentado o rebanho que apascentava Raquel, filha do sírio Labão; e disse-me o bispo: ?A seis milhas daqui fica esse lugar, ao lado de um povoado que era, então, a propriedade do sírio Labão; uma vez que queres ir até lá, iremos contigo e te mostraremos o sítio; há, ali, muitos monges, verdadeiramente santos e ascetas, e uma igreja consagrada?.

12. [Nísibis e Ur] Perguntei ainda ao santo bispo em que lugar da Caldéia tinham vivido, a princípio, Taré e os seus [Gn. 11,28]; disse-me, então, esse santo bispo: ?O lugar sobre o qual perguntas, filha, situa-se no interior da Pérsia, no décimo acampamento a partir daqui. Pois daqui até Nísibis há cinco lanços e daí até Ur, antiga cidade dos caldeus, outros cinco; mas agora já não há, aí, acesso para os romanos, porquanto os persas dominam tudo; além disso, é chamada especialmente Oriental essa região que fica nos limites dos romanos, dos persas e dos caldeus?.

13. E muitas coisas se dignou contar-me, assim como se dignaram, também, os outrous santos bispos e santos monges; sempre, todavia, coisas das Escrituras de Deus ou atos dos homens santos, quer dizer, dos monges, ou o que fizeram de maravilhoso os que já se foram, ou o que fazem, todos os dias, os que ainda vivem: os ascetas. Pois não quero que Vossa Bondade julgue ter havido, alguma vez, outros assuntos para os monges que não fossem a respeito das Escrituras de Deus ou das obras dos monges mais velhos.

 

XXI

1. [O Poço de Jacó. A Propriedade do Sírio Labão] Dois dias depois que eu aí cheguei, conduziu-nos o bispo ao poço onde o santo Jacó dera de beber ao rebanho da santa Raquel; esse poço está situado a seis milhas de Carras e, em sua honra, foi construída, ao lado, uma igreja consagrada, bem grande e linda. Chegando nós ao poço, disse o bispo uma oração e leu ainda o passo correspondente do Gênesis [Gn. 29,10]; após um Salmo adequado ao lugar e nova oração, abençoou-nos.

2. Vimos também, aí, junto ao poço, no chão, a pedra enorme que o santo Jacó afastara do poço [Gn. 29,3.10] e que ainda hoje exibem.

3. Aí nas imediações do poço ninguém mora a não ser os clérigos da igreja e os monges que têm, ao lado, o seu retiro e cuja vida, realmente inaudita, nos descreveu o bispo. Assim, após rezarmos na igreja, dirigi-me com o bispoaos santos monges, em seus ermitérios, agradecendo a Deus e a eles que se dignaram, em seus retiros, onde quer que eu entrasse, acolher-me de bom grado e dirigir-me a mim, com palavras dignas de sua boca. Dignaram-se dar-me, e a todos quantos estavam comigo, eulógias, como é costume darem os monges àqueles que, de boa vontade, acolhem em seus mosteiros.

4.  E como esse lugar se situa em uma grande planície, mostrou-me o santo bispo, defronte, um enorme povoado, muito provavelmente a quinhentos passos do poço e através da qual passamos. Segundo o bispo, foi este povoado, outrora, a propriedade do sírio Labão e se chama Fadana. Mostraram-me, aí, a sepultura do sírio Labão, sogro de Jacó, e também o lugar de onde roubara Raquel os ídolos do pai [Gn. 31,19.30.34].

5. Assim, pois, em nome de Deus, após ver tudo e dizendo adeus ao santo bispo e aos santos monges que se tinham dignado acompanhar-nos até aí, voltamos pelo mesmo caminho e pelas mesmas paradas pelos quais viéramos de Antioquia.

 

XXII

1. [De Antioquia a Cilícia e à Isáuria] De volta à Antioquia, passei aí uma semana, a preparar tudo o que me era necessário para a viagem. Partindo, a seguir, de Antioquia e passando por alguns acampamentos, cheguei à província chamada Cilícia, cuja capital é Tarso e onde eu já estivera quando fora a Jerusalém.

2. Como se encontra, no terceiro acampamento a partir de Tarso, quer dizer, em Isáuria, o Martyrium de Santa Tecla, tive grando prazer em para aí me dirigir, sobretudo pelo fato de ser tão perto.

 

XXIII

1. [Seleucia da Isáuria. O Martyrium de Santa Tecla] Partindo de Tarso, cheguei a uma cidade à beira-mar denominada Pompeiópolis, ainda na Cilícia; e daí, entrando já no território da Isáuria, descansei na cidade de Corico; no terceiro dia, cheguei à cidade de Seleucia da Isáuria. Chegando, fui ter com o bispo, verdadeiro santo, antigo monge; vi, também, aí, nessa cidade, uma igreja belíssima.

2. E já que daí a Santa Tecla, que se situa além da cidade, em uma colina espalmada, há, talvez, mil e quinhentos passos, preferir prosseguir até lá, a fim de fazer a parada que estava pretendendo. Junto ao santuário não há nada além de inúmeros mosteiros de homens e mulheres.

3. Foi aí que encontrei uma grande amiga, de cuja vida todos no Oriente davam testemunho, santa diaconisa chamada Martana, que eu conhecera em Jerusalém, aonde ela fora rezar; dirigia conventos de ascetas ou virgens. Acaso poderei descrever qual tinha sido a sua ou a minha alegria quando me viu?

4. Voltando ao assunto, há numerosos mosteiro pela colina e, no meio, um muro enorme cerca a igreja onde se encontra o Martyrium, bastante belo, sem dúvida. Foi o muro construído para proteger a igreja contra os isáurios, muito maus e freqüentemente salteadores, e impedi-los de tentar algo nas imediações do mosteiro anexo à igreja.

5. Aí chegando, pela graça de Deus, depois de rezar no Martyrium e de ler, também, todas as obras de Santa Tecla, dei infinitas graças a Cristo, nosso Deus, que se dignou conceder-me, a mim, indigna e não merecedora, a realização de todos os meus desejos.

6. Assim, depois de aí passar dois dias, de ver os santos monges e ascetas, tanto homens como mulheres que aí havia, e de rezar e comungar, tornei ao meu caminho em Tarso, onde fiz uma pausa de três dias e de onde, em nome de Deus, parti para a minha viagem. Chegando, no mesmo dia, ao acampamento chamado Mansocrenas, na base do monte Tauro, pernoitei.

7. [Da Cilícia a Constantinopla] Daí, no dia seguinte, subindo o monte Tauro e percorrendo, por um caminho já conhecido, todas as províncias que atravessara na ida – Capadócia, Galácia, Bitínia – cheguei à Calcedônia, onde parei, por causa do Martyrium celebérrimo de Santa Eufêmia, que aí se encontra e que eu já vira uma vez.

8. No dia seguinte, portanto, atravessando o mar, cheguei à Constantinopla, dando graças a Cristo, nosso Deus, que se dignara conceder a mim, que sou indigna e não merecedora, esta grande graça que é não só o desejo de viajar, mas ainda a possibilidade de percorrer todos os lugarres que eu desejara, e de voltar de novo a Constantinopla.

9. E, chegando, em todas as igrejas e apostoli (=santuários dedicados aos apóstolos), e também em todos os martyria, que são numerosos, não cessei de dar graças a Jesus, nosso Deus, que assim se dignara mostrar-me a sua misericórdia.

10. [Novos Planos] Daí, senhora, minha luz, dedicando à Vossa Bondade esta narrativa, era já meu propósito, em nome de Cristo, nosso Deus, dirigir-me à Ásia – a Éfeso – para rezar no Martyriumdo santo e bem-aventurado apóstolo João. Se, depois disso ainda estiver viva e ainda puder conhecer alguns outros sítios, eu mesma, se Deus se dignar permitir, os descreverei a Vossa Bondade; ou, ao menos, se decidir outra coisa, vo-lo comunicarei por escrito. Vós, senhoras, minha luz, dignai-vos lembrar-vos de mim, quer eu esteja neste corpo ou fora dele [2Cor. 12,2-3].

2. Liturgia de Jerusalém (Basílica do Santo Sepulcro)

 

XIV

 

1. [Ofícios da Semana] E também, para que Vossa Bondade saiba que atos se praticam aqui, dia a dia, nos lugares santos e porque será agradável conhecê-los, devo descrevê-los. Abrem-se, cada dia, antes dos galos cantarem, todas as portas da Anástasis (=gruta na Basílica do Santo Sepulcro) aos monazontes (=monges) e parthenae (=virgens) – como aqui dizem – e não apenas a estes, mas também aos leigos, homens e mulheres, que, entretanto, desejem fazer a primeira vigília. Desse momento até o dia claro, dizem-se hinos, responde-se aos Salmos e antífonas e, a cada hino, reza-se uma oração. Dois ou três presbíteros e diáconos alternam, todos os dias, com os monges e, a cada hino ou antífona, dizem as orações.

2. E, começando a clarear o dia, têm início os hinos matinais. Eis que chega o bispo com o clero, entra imediatamente na gruta e, atravessando a balaustrada que a cerca, diz, em primeiro lugar, uma oração por todos; a seguir, ele mesmo recorda os nomes daqueles por quem deseja orar e abençoa os catecúmenos. Reza ainda uma oração e abençoa os fiéis; após o que, saindo o bispo de trás do gradil, todos dele se aproximam a beijar-lhe a mão; ele um a um os abençoa, e termina o ofício. É o dia.

3. Igualmente à sexta hora (=meio-dia), descem todos, ainda uma vez, à Anástasis e dizem Salmos e antífonas enquanto alguém vai buscar o bispo; este, chegando, não se senta, mas atravessaincontinenti a balaustrana na Anástasis, isto é, entra na gruta onde esteve pela manhã e daí, tal como então, após dizer uma prece, abençoa os fiéis; ao sair de trás do gradil, ainda uma vez, aproximam-se todos a fim de beijar-lhe a mão. E à hora nona (=três horas), procede-se tal como à hora sexta.

4. Por outro lado, à décima hora (=quatro horas), há o que aqui chamam licinicon e que nós chamamos Lucernare: reúne-se, como antes, toda a multidão na Anástasis, ascendem-se todas as tochas e círios e a claridade é imensa. A luz não é trazida de fora, mas como que lançada do interior da gruta, isto é, de trás do gradil onde brilha sempre, noite e dia, uma lamparina; recitam-se os SalmosLucernares e antífonas, por longo tempo. Chama-se então o bispo, que desce à basílica e se assenta em um lugar elevado; sentam-se, também, os sacerdotes em seus lugares e se dizem hinos e antífonas.

5. E, uma vez que disseram até o fim, como de hábito, levanta-se o bispo e se mantém de pé ante o gradil, isto é, diante da gruta e, segundo o costume, um dos diáconos evoca os nomes de todos. Dizendo ele os nomes, um por um, numerosas crianças, de pé, respondem: ?Kyrie eleison?, que nós dizemos: ?Miserere Domine? (=?Tem piedade, Senhor?); e incontáveis são as suas vozes.

6. Terminando o diácono, o bispo diz, em primeiro lugar, uma oração e reza por todos, e assim também rezam todos a um tempo, tanto os fiéis quanto os catecúmenos. Toma novamente a palavra o diácono: que cada um dos catecúmenos que aí se encontram incline a cabeça; o bispo, de pé, os abençoa. Reza uma segunda oração e de novo ergue a voz o diácono e ordena que cada um dos fiéis presentes abaixe a cabeça; abençoa-os igualmente o bispo e, assim, termina o ofício na Anástasis. Todos, um a um, aproximam-se do bispo a fim de beijar-lhe a mão.

7. É o bispo, a seguir, conduzido da Anástasis à Crux (=elevação onde se encontrava uma cruz), e se entoam hinos e vai todo o povo com ele; aí chegando, reza uma primeira oração e outra vez abençoa os catecúmenos; uma segunda oração e abençoa os fiéis. Terminado este ato, o bispo e toda a multidão dirigem-se ao post Crucem (=pequena capela existente por detrás da Crux) onde tem lugar cerimônia semelhante: procede-se tal como se procedeu no ante Crucem (=pátio existente entre a Anástasis e a Crux); igualmente aproximam-se todos do bispo a beijar-lhe a mão, como fizeram na Anástasis; assim, no ante Crucem e no post Crucem. Também numerosos lustres de vidro pendem por toda parte, tanto diante da Anástasiscomo no ante Crucem e no post Crucem. Estas cerimônias terminam ao cair da noite e assim se realizam, diariamente, nos seis dias da semana, junto à Crux e na Anástasis.

8. [Sétimo Dia] No sétimo dia, isto é, no domingo, antes do cantar dos galos, reúne-se, tal como ocorre na Páscoa, a maior multidão possível nesse jugar, na basílica situada junto à Anástasis, do lado de fora, entretanto, onde há luzes para a cerimônia; porque todos, temendo não chegar antes do canto dos galos, chegam mais cedo e aí se assentam; e entoam hinos e antífonas e dizem orações a cada hino e a cada antífona. Sacerdotes e diáconos estão sempre prontos, nesse local, para as vigílias, por causa da multidão que aí se reúne; pois, segundo o costume, não se abrem os lugares santos antes dos galos cantarem.

9. Porém, logo que cante o primeiro galo, imediatamente desce o bispo e entra na gruta situada na Anástasis; abrem-se todas as portas e na Anástasis, onde brilham já incontáveis luzes, entra a multidão; logo que o faz, um dos presbíteros diz um Salmo a que todos respondem e se reza uma prece; a seguir, diz o Salmo um dos diáconos e se reza outra oração; e um clérigo diz um terceiro Salmo e se diz uma terceira oração, na intenção de todos.

10. Após os três Salmos e as três orações, eis que são trazidos os turíbulos à gruta da Anástasis e toda a basílica transborda de aromas. Então, o bispo, de pé, além do gradil, toma o Evangelho, aproxima-se da porta e lê, ele mesmo, a Ressurreição do Senhor. Iniciada a leitura, tais são os gritos e gemidos de todos os homens, e tais as suas lágrimas, que o mais insensível é sacudido pelo choro por causa dos sofrimentos que curtiu o Senhor por nós.

11. Depois de ler o Evangelho, retira-se o bispo e com ele segue todo o povo, e é conduzido com hinos à Crux. Dizem aí outro Salmo e rezam outra oração. O bispo torna a abençoar os fiéis e os dispensa. E, saindo ele, todos se aproximam a beijar-lhe a mão.

12. Logo depois, recolhe-se o bispo à sua casa e voltam todos os monges à Anástasis onde recitam salmos e antífonas até o raiar do dia; a cada Salmo ou antífona rezam uma prece; revezando-se, os sacerdotes e diáconos celebram diariamente as vigílias na Anástasis com o povo. Dos leigos, homens e mulheres, todos os que o desejam, aí permanecem até o nascer do dia e, os que não o desejarem, regressam à casa e voltam a dormir.

 

XXV

1. Ao amanhecer, porque é domingo, dirigem-se à igreja maior, construída por Constantino e situada no Gólgota, atrás da Cruz; e se procede segundo a Tradição: tal como em toda a parte, comemora-se o domingo. É costume aqui que, dos presbíteros que aí se encontram, preguem todos aqueles que assim o desejem; e depois deles, pregue o bispo; e tais pregações tem lugar todos os domingos, a fim de instruir o povo nas Escrituras e no amor de Deus; estes sermões se estendem grandemente e, por isso, antes da quarta hora (dez horas), ou, talvez, da quinta hora (=onze horas), não é possível deixar a igreja.

2. Uma vez terminado o ofício e deixada a igreja, os monges acompanham o bispo, como em toda a parte se faz, e o conduzem, entoando hinos, até a Anástasis. Aproximando-se o bispo, ao som dos hinos, abrem-se, inteiramente, as portas da basílica Anástasis e entra o povo, ou melhor, entram os fiéis, mas não os catecúmenos.

3. Entrando o povo, entra o bispo e, sem demora, atravessa o gradil do Martyrium da gruta. Dão-se primeiro Graças a Deus (=Eucaristia) e, em seguida, reza-se uma oração por todos; logo, tomando a palavra, ordena o diácono a todos os presentes que inclinem a cabeça e assim os abençoa o bispo, de pé, atrás da balaustrada; a seguir, sai.

4. E, saindo o bispo, vêm todos a beijar-lhe a mão. Assim é que quase até a quinta ou sexta hora (=onze horas, meio-dia) se prolonga o ofício. Também ao Lucernare  procede às cerimônias segundo o costume de todos os dias. este hábito se conserva igual, dia após dia, durante todo o ano, exceto nos dias solenes, cujas cerimônias adiante registraremos.

5. E o que é realmente notável é que se escolhem sempre, para cantar, Salmos e antífonas apropriados, tanto os que se dizem à noite como os que, ao contrário, se dizem pela manhã, e ainda os que se dizem durante o dia, à sexta hora, à nona hora ou ao Lucernare. São, sempre, de tal forma adequados e tão bem escolhidos que dizem respeito, sempre, à cerimônia a que se destinam.

6a. E ainda que, durante todo o ano, sempre se vá, aos domingos, à igreja maior, isto é, à que se encontra no Gólgota, atrás da Cruz e que foi construída por Constantino, há entretanto um domingo, que é o qüinqüagésimo dia, e corresponde ao domingo de Pentecostes, em que se dirigem todos a Sion (=santuário do cenáculo, no Monte das Oliveiras), tal como vereis descrito adiante. Embora cheguem a Sion antes da hora terceira (=nove horas), celebra-se, primeiramente, a Missa na igreja maior…

(lacuna)…

6b. [Festa do Nascimento do Senhor] ?Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor? etc. [Mt. 21,9]. E visto que por causa dos monges, que vão a pé, é necessário seguir vagarosamente, chega-se a Jerusalém à hora em que cada homem começa a poder ver a face do seu companheiro, isto é, quando, sendo quase dia, não é dia contudo.

7. Logo que aí chegam, entra o bispo, imediatamente, na Anástasis onde brilham, já, sobremodo, as luzes; e com ele entram todos. Dizem, então, um Salmo, fazem uma prece e, primeiro os catecúmenos, a seguir os fiéis, são abençoados pelo bispo. Retira-se este e cada qual se dirige à sua casa, a fim de descansar. Os monges, porém, aí permanecem até o dia claro e recitam hinos.

8. Ora, tendo o povo descansado, principalmente a hora segunda (=oito horas), agrupam-se todos na igreja maior, situada no Gólgota. Supérfluo seria descrever os ornamentos das igrejas nesse dia, quer na Anástasis, quer na Cruz ou em Belém, onde, além do ouro, das gemas e da seda, nada mais se vê; as tapeçarias, se as virdes, são inteiramente de seda e bordadas em ouro; se vires as cortinas, são igualmente de seda e igualmente guarnecidas de ouro; e os ornamentos sacros de toda espécie que se mostram nesse dia são de ouro incrustado de pedras preciosas; e o número ou o peso dos círios, dos candelabros, das lâmpadas de azeite ou dos diversos objetos do culto, pode ser, acaso, calculado ou registrado?

9. E que posso eu dizer da ornamentação dessas construções de Constantino que, assistido pela mãe, até onde lhe permitiram os recursos do seu reino, decorou com ouro, mosaico e mármore precioso tanto a igreja maior quanto a Anástasis, a Cruz e os outros lugares santos de Jerusalém?

10. Bem, voltando ao assunto, celebra-se, no primeiro dia, a Missa na igreja maior, situada no Gólgota; e tanto os sermões que se pregam quanto os textos que se lêem e os hinos que se recitam, tudo é condizente com esse dia. Após o término do ofício na igreja, voltam, entoando hinos, à Anástasis, como é o costume e o povo é dispensado, aproximadamente, à sexta hora (=meio-dia).

11. Ao Lucernare procede-se também nesse dia exatamente segundo o costume cotidiano. No dia seguinte, volta-se novamente à igreja do Gólgota e também assim no terceiro dia; por três dias, portanto, até a sexta hora (=meio-dia), vibra toda esta alegria na igreja construída por Constantino. No quarto dia é no [monte] Eleona, isto é, na igreja do Monte das Oliveiras, extraordinariamente bela, que se realizam a mesma ornamentação e as mesmas celebrações. No quinto dia, é no Lazarium (=igreja onde se comemora a ressurreição de Lázaro), distante, aproximadamente, mil e quinhentos passos de Jerusalém; no sexto dia, em Sion, na Anástasis; no oitavo, junto à Cruz. Assim, pois, durante oito dias, todo este júbilo e todo este esplendor se encontram em todos os lugares santos que acima descrevi.

12. E, em Belém, diariamente, durante os oito dias, a mesma beleza e o mesmo regozijo são cultivados pelos sacerdotes e por todo o clero da região e pelos monges aí incorporados. Pois, a partir do momento em que todos, à noite, voltam a Jerusalém com o bispo, os monges do lugar, todos eles, aí permanecem e velam a noite inteira na igreja de Belém, recitando hinos e antífonas porque o bispo deve passar essas noites em Jerusalém. E, por causa da solenidade e da alegria desse dia, reúnem-se incalculáveis multidões em Jerusalém: vêm, de todos os lados, não só monges mas também leigos, homens e mulheres.

 

XXVI

1. [Festa de Jesus no Templo] Na verdade, o quadragésimo dia após a Epifania é aqui celebrado com suma honra. Há, nesse dia, uma procissão na Anástasis e todos dela participam; tal como na Páscoa, tudo decorre segundo a Tradição e com grande júbilo. Pregam todos os sacerdotes e também o bispo, expondo, sempre, o passo do Evangelho no qual se lê que, no quadragésimo dia, José e Maria levaram o Senhor ao templo onde o viram Simeão e a profetisa Ana, filha de Fanuel, e se mencionam as palavras que proferiram ao ver o Senhor e a oferenda que fizeram os pais [Lc. 2,21-38]. Depois de executadas, segundo o rito, as cerimônias do costume, celebra-se a Santa Missa e termina o ofício.

 

XXVII

1. [Quaresma] Chegando os dias da Páscoa, são assim celebrados: como, entre nós, se guardam os quarenta dias que precedem a Páscoa; respeitam-se, aqui, oito semanas. Guardam-se oito semanas porque não se jejua aos sábados e domingos, exceto em umúnico sábado: o das vígilias pascais, no qual se deve jejuar; além desse dia, portanto, absolutamente nunca se jejua aqui, aos sábados, o ano todo. Assim, pois, descontando das oito semanas os oito domingos e sete sábados – já que é necessário jejuar num sábado como acima referi – sobram quarenta e um dias nos quais se jejua, e que aqui se chama ?Eortae?, isto é, ?Quaresma?.

2. [Ofícios Diários] E todos os dias de cada uma dessas semanas decorrem da seguinte forma: no domingo, ao primeiro canto do galo, lê o bispo, na Anástasis, o passo do Evangelho referente à ressurreição do Senhor, como sempre faz aos domingos, o ano inteiro. Igualmente, até o clarear do dia, celebram-se, na Anástasis e na Crux, os mesmos ofícios que é costume celebrar aos domingos, o ano todo.

3. Em seguida, pela manhã, como sempre aos domingos, vai-se à igreja maior, chamada Martyrium, situada no Gólgota, atrás da Cruz, e cumpre-se o rito que é costume cumprir aos domingos. E, igualmente, terminado o ofício na igreja, volta-se, em procissão, à Anástasis, entoando hinos como todos os domingos; enquanto se realizam esses atos, aproxima-se a hora quinta (=onze horas). Também o Lucernare se faz à mesma hora de sempre, tanto na Anástasis e na Crux como em todos os lugares santos. No domingo, porém, não se realiza o culto da hora nona (=três horas).

4. Na segunda-feira, igualmente, ao primeiro canto do galo, vai-se à Anástasis, como todo o ano, e se faz o mesmo de sempre, até de manhã. À terceira hora, volta-se à Anástasis e se faz, ainda, o que é costume fazer à sexta hora durante o ano inteiro, já que nos dias da Quaresma junta-se a cerimônia da sexta hora à da terceira. Também à sexta e à nona horas e ao Lucernare procede-se tal como é costume, durante o ano todo, proceder nesses lugares santos.

5. Na terça-feira tudo se faz como na segunda-feira. Também na quarta-feira vão, noite ainda, à Anástasis e procedem como sempre, até de manhã. Igualmente à terceira e à sexta hora. À nona hora (=três horas), porém, vão ao Sion porque o ano inteiro, às quartas e às sextas-feiras, à nona hora, costumam sempre ir a Sion, visto que nessas regiões, exceto se os dias dos mártires coincidem, a quarta e a sexta são sempre dias de jejum, mesmo para os catecúmenos. Mas, se por acaso, durante a Quaresma, coincidir o dia dos mártires com a quarta ou a sexta-feira, então não vão a Sion à nona hora.

6. Realmente, durante a Quaresma, como acima referi, às quartas-feiras à nona hora, dirigem-se todos a Sion, como é o costume durante o ano inteiro e fazem tudo quanto manda a tradição que se faça a essa hora, exceto a Oblação, pois, para que o povo aprenda sempre a lei, o bispo e um sacerdote pregam assiduamente. Terminado o ofício, o povo, entoando cânticos, acompanha o bispo daí àAnástasis; assim, ao chegarem à Anástasis, é já a hora do Lucernare; entoam hinos e antífonas, rezam as orações e termina a cerimônia do acender das luzes na Anástasis e junto à Crux.

7. A cerimônio crepuscular, nesses dias da Quaresma, termina sempre mais tarde do que durante o resto do ano. Na quinta-feira, tudo se faz como na segunda-feira e na terça. Já as cerimônias da sexta-feira são semelhantes às da quarta-feira: vão, igualmente, a Sion à nona hora e também, daí até a Anástasis, é acompanhado o bispo ao canto dos hinos. Mas, na sexta-feira, celebram as vigílias, na Anástasis, desde a hora em que chegam de Sion entoando hinos, até de manhã, isto é, da hora crepuscular até a manhã seguinte, isto é, a manhã de sábado. Faz-se bem cedo a Oblação na Anástasis, de forma a terminar o ofício antes do nascer do sol.

8. Durante toda a noite, alternam-se Salmos e responsos, antífonas e leituras diversas, e tudo isto se prolonga até de manhã. A missa, isto é, a Oblação que se faz no sábado na Anástasis, celebra-se antes do nascer do sol para que o ofício esteja terminado quando o sol começar a surgir. Assim é que se comemoram todas as semanas da Quaresma.

9. [Jejum] O que eu disse, que a Missa no sábado é oficiada bem cedo, isto é, antes do nascer do sol, tem por finalidade libertar mais cedo os que aqui se chamam hebdomadarii. Pois tal é o costume dos jejuns, aqui, durante a Quaresma: esses que se chamam hebdomadarii, isto é, que jejuam semanas, comem no domingo ao terminar o ofício, na quinta hora (=onze horas); e, almoçando no domingo, nada mais comem a não ser no sábado pela manhã, logo depois de comungar na Anástasis. É por causa deles, portanto, para desobrigá-los mais cedo, que se celebra o ofício antes de raiar o sábado na Anástasis. O que afirmei, que é por causa deles que se oferece o sacrifício ao amanhecer, não significa que sejam os únicos a comungar, porque, de fato, comungam todos os que desejam fazê-lo, nesse dia, na Anástasis.

 

XXVIII

1. É o seguinte o costume dos jejuns aqui, durante a Quaresma: alguns, depois de comer no domingo, após a missa, isto é, na quinta ou na sexta hora, já não comem durante toda a semana, a não ser no sábado seguinte, após a Missa da Anástasis: são os que jejuam a semana inteira.

2. No sábado, depois de comer pela manhã, já não comem à tarde, mas, no dia seguinte, que é domingo, almoçam ao sair da igreja, à hora quinta (=onze horas) ou mais tarde; depois não comem até o sábado seguinte, como contei acima.

3. É realmente costume aqui, que todos os ascetas como são chamados, homens e mulheres, não só durante os dias da Quaresma, porém durante o ano todo, quando podem comer, não o façam senão uma vez por dia. Se, porém, alguns desses ascetas não podem fazer as semanas inteiras de jejum, que descrevi acima, durante toda a Quaresma, jantam na quinta-feira; aquele que não consegue nem isto, faz, durante toda a Quaresma, jejuns de dois dias; e aqueles que nem isto podem, comem todas as noites.

4. E ninguém determina o quanto é preciso fazer, mas cada um faz o que pode; nem será louvado o que tiver feito muito, nem censurado o que tiver feito pouco. Eis, pois, aqui, o costume. E seu alimento é, nos dias da Quaresma, o seguinte: não comem pão, que não deve ser sequer provado, nem azeite, nem o que quer que venha das árvores, mas tão somente água e um pouco de mingau de farinha; durante toda a Quarema é assim que se faz, como dissemos.

 

XXIX

1. E no final dessas semanas, as vigílias na Anástasisvão desde o crepúsculo, quando vêm de Sion entoando Salmos, até a manhã de sábado, quando se faz a Oblação na Anástasis. E na segunda semana, e na terceira, e na quarta, e na quinta e na sexta semanas, seguem o mesmo ritual da primeira semana da Quarema.

2. [7ª Semana: Igreja de Lázaro] Chegando a sétima semana, isto é, quando, contando com esta, faltam apenas duas semanas para a Páscoa, tudo fazem, cada dia, como nas semanas precedentes, exceto que as vigílias que durante aquelas semanas fazem na Anástasis, na sexta-feira da sétima semana se fazem em Sion, da mesma forma como as fizeram na Anástasis nas semanas anteriores. E dizem, em todas as vigílias, Salmos e antífonas sempre adequados, tanto ao lugar quanto ao dia.

3. E, ao aproximar-se a manhã, rompendo o sábado, faz o bispo a consagração e a Oblação da manhã de sábado. Terminado o ofício, tomando a palavra, diz o arquidiácono: ?Estejamos todos, hoje, à hora sétima, no Lazarium?. E assim, pois, aproximando-se a hora sétima, vão todos ao Lazarium. E o Lazarium, isto é, a Betânia, fica, talvez, a menos de duas milhas da cidade.

4. Quem vai de Jerusalém ao Lazarium vê, a mais ou menos quinhentos passos daí, na estrada, o lugar onde Maria, irmã de Lázaro, correu ao encontro do Senhor. E chegando o bispo, dele se aproximam todos os monges e entra o povo e se entoa um hino e uma antífona e se lê o trecho do Evangelho no qual a irmã de Lázaro corre ao encontro do Senhor [Jo. 11,29]. Após a prece, uma vez que todos tenham sido abençoados, seguem em direção ao Lazarium, cantando hinos.

5. Chegando a multidão ao Lazarium, tão grande é que, não só o próprio local mas todos os campos ao redor, ficam cheios de gente. E de novo dizem hinos e antífonas de acordo com o dia e o lugar, assim como são apropriadas ao dia quaisquer leituras que se façam. Terminado o ofício, anuncia-se a Páscoa, isto é, sobe um sacerdote ao local mais alto e lê o seguinte episódio narrado no Evangelho: ?Chegando Jesus a Betânia seis dias antes da Páscoa? etc. [Jo. 12,1]. Lido o texto e anunciada a Páscoa, termina a cerimônia.

6. E assim se age nesse dia porque está escrito no Evangelho que seis dias antes da Páscoa isso aconteceu na Betânia: desde o sábado, realmente, até a quinta-feira na qual, após a Ceia, à noite, foi preso o Senhor, decorreram seis dias. Voltam todos, então, à cidade, diretamente à Anástasis e aí, segundo o costume, celebra-se o Lucernare.

 

XXX

1. [Semana Santa: Domingo de Ramos] No dia seguinte, isto é, no domingo em que se entra na semana pascal aqui chamada ?septimana maior?, celebram-se, desde o primeiro cantar dos galos até de manhã, as cerimônias costumeiras na Anástasis e junto à Cruz, o que quer dizer que vão, como sempre, à igreja maior, chamada Martyrium por estar situada no Gólgota, isto é, atrás da Cruz onde o Senhor padeceu; daí o nome de ?Martyrium?.

2. Depois de celebrarrem o culto, segundo o costume na igreja maior, antes, porém, de se dispersar o povo, toma a palavra o arquidiácono e diz, primeiro: ?Durante toda esta semana, a partir de amanhã à nona hora, reunamo-nos no Martyrium, isto é, na igreja maior?. A seguir, falando novamente, diz: ?Hoje, à setima hora, devemos estar presente no [monte] Eleona?.

3. Saindo da igreja maior, isto é, do Martyrium, acompanham o bispo à Anástasis, entoando hinos. Na Anástasis, terminadas as cerimônias que é costume realizar aos domingos após a dispensa noMartyrium, cada um, imediatamente, retirando-se à sua casa, apressa-se a comer para que, chegando a sétima hora, todos se encontrem na igreja de Eleona, isto é, no Monte das Oliveiras, onde se situa a gruta na qual pregava o Senhor.

 

XXXI

1. À sétima hora, portanto, todo o povo, e também o bispo, sobe à igreja do Monte das Oliveiras, isto é, o Eleona; recitam hinos e antífonas adequados a esse dia e lugar e igualmente leituras. Por volta da hora nona (=três horas), entoando hinos, sobem ao ?Imbomon?, isto é, ao sítio de onde subiu o Senhor aos céus, e aí se sentam, pois todo o povo, estando sempre presente o bispo, é convidado a sentar-se e só os diáconos permanecem o tempo inteiro de pé. Também aí recitam hinos e antífonas apropriadas ao lugar e ao dia e, igualmente, leituras intercaladas e orações.

2. Aproximando-se a undécima hora (=cinco horas), lêem o passo do Evangelho segundo o qual as crianças correram ao encontro do Senhor com ramos e palmas dizendo: ?Bendito seja o que vem em nome do Senhor? [Mt. 21,8-9]. Levantam-se, imediatamente, o bispo e todo o povo e, do alto do Monte das Oliveiras, descem todos a pé. E caminha todo o povo à frente do bispo, entoando hinos e antífonas e repetindo sempre ?Bendito seja o que vem em nome do Senhor?.

3. E todas as crianças da região, até mesmo as que, pela pouca idade, não podem andar pelos seus próprios pés e que os pais carregam ao colo, todas levam ramos, umas de palmas, outras de oliveiras; e acompanham o bispo tal como foi acompanhado o Senhor [Mt. 21,8].

4. Do alto do monte até a cidade e daí até a Anástasis, através de toda a cidade, o caminho todo perfazem-no todos a pé, mesmo as senhoras e os chefes; todos, cantando, acompanham o bispo lentamente, mui lentamente, para que se não canse o povo; e, continuando sempre, chegam, já tarde, à Anástasis. E, embora cheguem tarde, celebram contudo o Lucernare, fazem uma nova oração junto à Crux e dispersam-se.

 

XXXII

1. [De Segunda a Quarta-Feira] No dia seguinte, isto é, na segunda-feira, realizam-se as cerimônias habituais, desde o primeiro cantar do galo até de manhã, na Anástasis; também à tericeira e à sexta hora têm lugar as mesmas celebrações de toda a Quaresma. À nona hora, reúnem-se todos na igreja maior, isto é, no Martyrium e aí, até a primeira hora da noite (=sete horas), o tempo inteiro, recitam hinos, antífonas e leituras apropriadas ao dia e ao local, intercalando orações.

2. Procede-se também ao Lucernare ao chegar o momento; por isso é já noite quando termina a cerimônia no Martyrium. Dispensado o povo, ao som das vozes que entoam hinos, é o bispo acompanhado à Anástasis, diz-se um hino, faz-se uma prece, abençoam-se os catecúmenos e os fiéis e termina o ofício.

 

XXXIII

1. Também na terça-feira, tudo se faz como na segunda-feira. Apenas isto se acrescenta na terça-feira: tarde, à noite, depois que termina a cerimônia no Martyrium e se vai à Anástasis, uma vez terminada, também aí, a cerimônia, todos, a essa hora, à noite, vão à igreja no monte Eleona.

2. E, chegando a essa igreja, entra o bispo na gruta na qual costumava o Senhor instruir os seus discípulos e toma o livro dos Evangelhos e, de pé, ele, o bispo, lê as palavras do Senhor que estão escritas no evangelho segundo São Mateus: ?Cuidai para que ninguém vos seduza? [Mt. 24,4]; e toda essa alocução o bispo a lê do princípio ao fim. E, tendo-a lido inteira, rezam todos uma oração; os catecúmenos são abençoados assim como os fiéis e o povo é dispensado. Termina a cerimônia e cada um volta do monte à sua casa, já bem tarde da noite.

 

XXXIV

1. Assim também na quarta-feira tudo se passa, o dia todo, a partir do primeiro canto do galo, tal como na segunda-feira e na terça, mas, após o término do ofício, à noite, no Martyrium, e uma vez que tenha sido acompanhado o bispo com hinos à Anástasis, imediatamente entra ele na gruta da Anástasis e permanece de pé, atrás do gradil, enquanto um sacerdote, também de pé, mas diante do gradil, toma o evangelho e lê o trecho em que Judas Iscariotes vai ao encontro dos judeus e estipula o quanto lhe darão para trair o Senhor [Mt. 26,14]. Nem bem termina a leitura, tão grande é o clamor e o gemido de todo o povo que, nesse instante, não há quem não seja levado à lágrimas. Reza-se, logo depois, uma oração, abençoam-se os catecúmenos, a seguir os fiéis e termina a cerimônia.

 

XXXV

1. [Quinta-Feira Santa] Também na quinta-feira se conduzem as práticas a partir do primeiro canto do galo, como sempre, até de manhã, na Anástasis, e também na terceira hora e na sexta. E, à oitava hora (=duas horas), segundo o costume, reúne-se todo o povo no Martyrium, um pouco mais cedo, aliás, porque é preciso que o ofício termine mais rapidamente; reunido o povo todo, faz-se o que deve ser feito. A Oblação é, nesse dia, oferecida no Martyrium e aí mesmo termina o culto, mais ou menos à décima hora (=quatro horas). Antes, porém, de dispensar o povo, diz o diácono: ?À primeira hora da noite, venhamos todos juntos à igreja do Eleona, visto que hoje à noite nos espera a maior fadiga?.

2. Assim, pois, uma vez terminado o ofício no Martyrium, voltam ao post Crucem, recitam aí um só hino, fazem uma prece, oferece o bispo a Oblação e todos comungam. Na verdade, exceto nesse único dia, durante todo o ano, jamais se consagra no post Crucem; nunca, a não ser nesse único dia. Terminada, pois, aí, a cerimônia, entra-se na Anástasis, faz-se uma prece, abençoam-se, segundo o costume, os catecúmenos assim como os fiéis e termina o ofício. Cada um se apressa a voltar à sua casa a fim de comer, porque assim que tenham comido, vão todos ao Eleona, à igreja na qual há a gruta onde esteve o Senhor com os seus apóstolos, nesse dia.

3. E aí, até mais ou menos à quinta hora da noite (=onze horas), permanecem recitando hinos ou antífonas concernentes ao dia e ao local, e também leituras, intercalando orações; lêem-se também os passos do Evangelho nos quais o Senhor fala com os seus discípulos nesse mesmo dia, sentado nessa mesma gruta que aí há, nessa igreja.

4. E daí, já na sexta hora da noite aproximadamente (=meia-noite), sobem ao Imbomon entoando hinos, ao lugar do qual o Senhor subiu aos céus. E aí, novamente, recitam leituras, hinos e antífonas concernentes ao dia; e também quaisquer orações que rezem, ou que pronuncie o bispo, são sempre apropriadas ao dia e ao lugar.

 

XXXVI

1. [Sexta-Feira Santa. O Santo Lenho] Assim, pois, ao ter início o canto dos galos, descem do Imbomon, entoando hinos, e se aproximam do lugar onde o Senhor rezou, como está escrito no Evangelho: ?E se aproximou à distância de um arremesso de pedra e orou? etc. [Lc. 22,41]; e há nesse local uma bela igreja. Entra o bispo e com ele todo o povo, rezam uma oração condizente com o lugar e o dia, recitam aí também um hino adequado e lêem o trecho do Evangelho em que o Senhor diz aos seus discípulos: ?Vigiai para que não entreis em tentação? [Mc. 14,38]; e todo esse passo é lido e se ergue uma nova prece.

2. Logo, entoando cânticos, descem com o bispo, até mesmo a menor das crianças, a pé, até o Getsêmani; por causa da grande afluência de gente cansada pelas vigílias e esgotada pelos jejuns cotidianos, e porque há um monte muito alto que é preciso descer, seguem passo a passo, entoando hinos, em direção ao Getsêmani. E mais de duzentos círios de igreja iluminam o povo.

3. Chegando ao Getsêmani, dizem inicialmente uma oração apropriada e recitam um hino; lêem também o passo do Evangelho no qual é preso o Senhor. Mal termina a leitura, tão grande é o clamor e o gemito de todo o povo, chorando, que, ao longe, na cidade talvez, é ouvido o lamento de todo esse povo. Após o que, entoando hinos, voltam à cidade a pé, e chegam às suas portas no momento em que cada homem começa a reconhecer os outros homens; desde esse instante, todos, sem exceção, maiores e menores, ricos e pobres, todos se encontram presentes na cidade; de maneira muito especial, ninguém, nesse dia, abandona as vigílias, até de manhã. E acompanham o bispo do Getsêmani até a porta e daí por toda a cidade, até a Crux.

4. Ora, quando se chega ao ante Crucem, o dia está se tornando já quase claro. Aí, novamente, se lê o passo do evangelho no qual o Senhor é trazido a Pilatos [Mt. 27,2]; e tudo quanto consta ter dito Pilatos ao Senhor e aos judeus, tudo se lê [Mt. 27,11ss; Mc. 15,1-5; Lc. 23,1-5; Jo. 18,28-38].

5. A seguir, confortando-o, dirige-se o bispo ao povo que por toda a noite sofreu e há de ainda sofrer nesse dia: que se não deixe abater, mas tenha esperança em Deus, que lhe há de conceder recompensa maior pela sua fadiga. E assim a todos anima, como pode, e diz-lhes: ?Entrementes, ide todos, agora, a vossas casas; descansai um pouco e, aproximadamente à segunda hora do dia(=oito horas), estai todos aqui presentes para que, desse momento até à sexta hora, possais ver o santo lenho da cruz, confiando todos nós em que ele há de ser útil à nossa salvação; porquanto, a partir da hora sexta (=meio-dia), novamente é necessário que aqui nos reunamos todos neste lugar, isto é no ante Crucem, para que, até à noite, nos dediquemos às leituras e às orações?.

 

XXXVII

1. Após o que, portanto, afasta-se o povo da Crux, ainda antes do nascer do sol, e todos, imediatamente, cheios de ânimo, vão a Sion rezar diante da coluna contra a qual foi flagelado o Senhor. AO voltar, descansam um pouco em casa e logo estão todos prontos. E então, coloca-se a cátedra episcopal no Gólgota, atrás da Cruz que agora lá se ergue; sentando-se o bispo, coloca-se diante dele uma mesa coberta de linho; de pé, em torno da mesa, permanecem os diáconos; um estojo de prata dourada no qual se encontra o lenho santo da Cruz é trazido, aberto e exposto, colocando-se sobre a mesa tanto o lenho da Cruz quanto o seu título.

2. E, uma vez colocados sobre a mesa, o bispo, sentado, aperta com as suas mãos as extremidades do santo lenho e os diáconos, que se mantêm de pé, ao redor, observam. O lenho é assim guardado porque é costume que todo o povo se aproxime, tanto os fiéis quanto os catecúmenos, um a um, e, inclinando-se para a mesa, beijem o santo lenho e passem. E porque dizem ter alguém, não sei quando, cravado os dentes no santo lenho, roubando-lhe um pedaço, por isso é assim guardado agora pelos diáconos que se postam em volta, para que ninguém, chegando, ouse fazê-lo de novo.

3. Assim, pois, todo o povo passa; inclinando-se todos, um de cada vez, tocando primeiro com a testa e depois com os olhos a Cruz e o título, e beijando a Cruz, afastam-se; ninguém, porém, estende a mão para tocá-la. Ora, depois que todos beijam a Cruz e passam, um diácono, de pé, segura o anel de Salomão e a ânfora da qual se ungiam os reis. Beija-se a ânfora e contempla-se o anel. Até a sexta hora passa todo o povo, entrando por uma porta, saindo por outra, visto que isto se dá no lugar onde, na véspera, isto é, na quinta-feira, se fez a Oblação.

4. E, aproximando-se a sexta hora, caminham em direção à Cruz, quer chova, quer faça calor, porque o lugar fica ao ar livre; é como que um pátio bem grande e extraordinariamente belo, situado entre a Crux e a Anástasis. Aí, pois, é que se reúne o povo todo, de tal forma que nem se pode abrir caminho.

5. Coloca-se a cátedra episcopal diante da Cruze, da sexta até a nona hora, nada se faz senão leituras, da seguinte maneira: lê-se, primeiro, tudo quanto, nos Salmos, diz respeito à Paixão; lêem-se, a seguir, nos Apóstolos – nas Epístolas ou nos Atos dos Apóstolos – todos os passos em que se referiram à Paixão do Senhor; e também nos Evangelhos se lêem os trechos da Paixão. Lêem-se, em seguida, nos Profetas, os passos onde predisseram que o Senhor haveria de sofrer, e novamente os Evangelhos, nos trechos referentes à Paixão.

6. Assim, desde a hora sexta até a hora nona, fazem-se continuamente leituras ou se recitam hinos para mostrar a todo povo que tudo quanto os profetas predisseram da Paixão do Senhor realmente aconteceu, como se vê mui claramente tanto pelos Evangelhos quanto, ainda, pelos escritos dos Apóstolos. E assim, durante as três horas, ensina-se ao povo que nada se fez que não tenha sido primeiro anunciado e nada se anunciou que se não tenha completamente realizado. E sempre se intercalam preces, e essas preces são próprias para o dia.

7. A cada uma das leituras e preces, tal é o sofrimento e tais são os lamentos de todo o povo, que chegam a causar espanto; não há ninguém, nem grande nem pequeno que, nesse dia, durante essas três horas, não se aflija enormemente; e é impossível calcular tamanha aflição, pelo muito que o Senhor padeceu por nós. Aproximando-se a nona hora, lê-se então o passo do evangelho de São João onde o Senhor expirou [Jo. 19,28-30]; após a leitura, reza-se uma oração e termina o ofício.

8. Ora, logo que termina a cerimônia no ante Crucem, dirigem-se todos, imediatamente, à igreja maior, ao Martyrium e fazem o que, durante toda essa semana, a partir da hora nona, se habituraram a fazer, até a noite. Terminando aí o ofício, dirigem-se todos à Anástasis e, aí chegando, lêem o passo do Evangelho no qual José [de Arimatéia] pede a Pilatos o corpo do Senhor e o coloca em um sepulcro novo [Jo. 19,38]. Após a leitura desse texto, fazem uma prece; abençoam-se os catecúmenos e dispensa-se o povo.

9. E nesse dia não se convoca o povo para a vigília na Anástasis, visto que se sabe o quanto está fatigado; mas, na verdade, é costume continuar aí a vigília. Assim, aqueles dentre o povo que o desejam, ou melhor, aqueles que o podem, velam e aqueles que não o podem, não o faqzem. Por outro lado, os clérigos permanecem de vigília, isto é, pelo menos os mais fortes ou mais jovens. E, durante toda a noite, recitam-se hinos e antífonas, até de manhã. Além disso, a maior parte da multidão permanece de vigília, uns desde o cair da noite; outros, desde a meia-noite, segundo podem.

 

XXXVIII

1. [Sábado de Aleluia] E, no dia seguinte, que é sábado, procede-se segundo o costume, tanto à terceira como à sexta hora; à nona hora, porém, já não se faz como todos os sábados, mas preparam-se as vigílias pascais na igreja maior, isto é, no Martyrium. E as vigílias pascais fazem-se tal como as fazemos nós, exceto pelo que segue: os neófitos, batizados e vestidos logo que saem da fonte batismas, são conduzidos, primeiramente, à Anástasis junto com o bispo.

2. Atravessando este o gradil da Anástasis, dizem um hino e, a seguir, reza o bispo uma oração por eles e com eles se dirige à Igreja maior, na qual, de acordo com a tradição, todo o povo se mantém de vigília. Realizadas aí as cerimônias que são rituais também entre nós, após a Oblação, dispensa-se o povo. E após o ofício das vigílias na igreja maior, vem-se imediatamente entoando hinos, àAnástasis, onde, pela segunda vez, se lê o passo do evangelho referente à Ressurreição [Mt. 28,1-20; Mc. 16,1-20; Lc. 24,1-52; Jo. 20,1ss], faz-se uma prece e o bispo torna a oferecer o sacrifício; mas tudo se faz num instante por amor ao povo, para que se não demore por mais tempo; e logo ele é dispensado. A essa hora terminam as vigílias desse dia e essa hora é a mesma que entre nós.

 

XXXIX

1. [Páscoa] E esses dias de Páscoa são comemorados tarde tal como entre nós e se realizam ofícios, segundo o rito, durante os oito dias pascais, tal como se faz em qualquer lugar pela Páscoa, até a Oitava. A ornamentação e os adornos são aqui os mesmos nos oito dias da Páscoa e da Epifania, tanto na igreja maior quanto na Anástasis e na Cruz (=Gólgota), ou no Eleona e em Belém, e noLazarium e em toda parte, porque é Páscoa.

2. E, nesse primeiro dia, domingo, vai-se à igreja maior, isto é, ao Martyrium; e também na segunda e na terça-feira, de modo que sempre, entretanto, após o culto, se venha do Martyrium àAnástasis, entoando hinos. Na quarta-feira vai-se ao Eleona e na quinta à Anástasis; na sexta ao Sion, no sábado ao ante Crucem e no domingo, isto é, no oitavo dia, novamente à igreja maior, quero dizer, ao Martyrium.

3. E, nesses oito dias pascais, diariamente, após o almoço, o bispo, acompanhado de todo o clero e de todos os neófitos – estes são os que foram batizados – e de todos os ascetas, homens e mulheres, e também de todos aqueles que o queiram, dentre o povo, sobe ao Eleona. Recitam-se hinos, rezam-se orações, tanto na igreja situada no Eleona, onde se encontra a gruta na qual instruía o Senhor os seus discípulos, como também no Imbomon, isto é, no sítio do qual subiu o Senhor aos céus.

4. E depois que disseram os Salmos e fizeram a prece, descem daí até a Anástasis, entoando hinos, ao cair da tarde; isto fazem durante os oito dias. E, no domingo da Páscoa, após o Lucernare, o povo todo conduz o bispo da Anástasis a Sion, entoado hinos.

5. Aí chegando, recitam hinos apropriados ao dia e ao lugar, dizem uma oração e lêem o passo do evangelho segundo o qual, o Senhor, nesse dia, entrou com as portas fechadas nesse mesmo lugar onde agora se ergue, em Sion, a igreja e veio ter com os seus discípulos no momento em que um dos discípulos, Tomé, não estava presente; e voltando este, e dizendo-lhe os outros apóstolos que tinham visto o Senhor, respondeu-lhes ele: ?Não creio a menos que veja? [Jo. 20,19-25]. Após a leitura desse texto, fazem uma nova prece, abençoam-se os catecúmenos e os fiéis, e voltam, já tarde, mais ou menos à segunda hora da noite, todos às suas casas.

 

XL

1. [Primeiro Domingo após a Páscoa] Na oitava da Páscoa, isto é,  no domingo imediatamente após a sexta hora, o povo todo sobe com o bispo ao Eleona; dirigem-se primeiro à igreja, por algum tempo aí permanecem recitando hinos, dizendo antífonas relativas ao dia e ao lugar e orações igualmente referentes ao dia e ao lugar. A seguir, entoando hinos, sobem daí ao Imbomon, onde procedem da mesma forma. E aproximando-se a hora, todo o povo e todos os ascetas acompanham o bispo, recitando hinos, até a Anástasis; e aí chegam à hora do Lucernare.

2. Celebra-se, pois, o Lucernare tanto na Anástasis quanto na Crux e daí, todo o povo, sem exceção, conduz o bispo a Sion. Chegando, dizem também hinos atinentes ao lugar e ao dia; lêem, pela segunda vez, o passo do evangelho segundo o qual, no oitavo dia após a Páscoa, entrou o Senhor no lugar onde se encontravam os seus discípulos e repreendeu Tomé por ter sido incrédulo [Jo. 20,26-29]. E então, apenas termine a leitura de todo esse trecho, ergue-se uma prece e, depois de serem abençoados tanto os catecúmenos quanto os fiéis, de acordo com a tradição, voltam todos às suas casas, tal como no domingo da Páscoa, à segunda hora da noite.

 

XLI

1. E, da Páscoa até a Qüinqüagésima, isto é, Pentecostes, ninguém, aqui, absolutamente jejua, nem mesmo os ascetas. E nesses dias, assim como o ano todo, procede-se às comemorações tradicionais na Anástasis, do primeiro canto do galo até de manhã, e também à sexta hora e ao crepúsculo. E aos domingos, celebra-se o culto, segundo o hábito, no Martyrium, na igreja maior, e daí vão todos àAnástasis, entoando hinos. E na quarta-feira e na sexta-feira, visto que mesmo nesses dias ninguém, absolutamente, jejua, dirigem-se a Sion, mas pela manhã; e as cerimônias se realizam segundo o costume.

 

XLII

1. [Ascenção do Senhor] E no quadragésimo dia após a Páscoa, isto é, na quinta-feira, aliás na véspera, quarta-feira, todos, após a sexta hora, vão a Belém por causa das vigílias que aí devem ser celebradas. E as vigílias, em Belém, se realizam na igreja onde se acha a gruta na qual nasceu o Senhor. No dia seguinte, pois, quinta-feira, quadragésimo dia após a Páscoa, é celebrada a Missa conforme o ritual e tanto os sacerdotes quanro o bispo pregam e suas prédicas são condizentes com o dia e o lugar; a seguir, já tarde, entretanto, voltam todos a Jerusalém.

 

XLIII

1. [Pentecostes] E no qüinqüagésimo dia após a Páscoa, que é um domingo, dia em que maior é a fadiga para o povo, iniciam-se as comemorações, como sempre, a partir do primeiro canto do galo; vela-se na Anástasis, para que o bispo leia o texto que sempre lê aos domingos e é o que se refere à Ressurreição do Senhor; a seguir, tudo se passa, na Anástasis, como de costume, o ano inteiro.

2. Ao nascer do dia, dirige-se o povo todo à igreja maior, isto é, ao Martyrium, e também aí, tudo quanto é costume fazer-se, faz-se; pregam os sacerdotes e a seguir o bispo; tudo se faz conforme a lei, isto é, a Oblação segue o rito observado aos domingos. Mas nesse dia, apressa-se a dispensa no Martyrium para que se dê antes da hora terceira. E após a Missa no Martyrium, todos, sem exceção, entoando hinos, conduzem o bispo a Sion, de modo, porém, a estar em Sion à terceira hora, exatamente.

3. Aí lêem o trecho dos Atos dos Apóstolos que narra como desceu o Espírito sobre eles para que, em todas as línguas, todos entendessem o que diziam [At. 2,1-12]; a seguir, de acordo com o rito, celebra-se a missa. E os presbíteros lêem, aí, esse passo dos Atos dos Apóstolos porque, segundo se lê, esse é o lugar em Sion, há agora aí outra igreja, onde, outrora, após a Paixão do Senhor, estava reunida a multidão com os apóstolos quando o fato se deu, tal como acima o descrevemos. Segue-se a Missa de acordo com o rito, faz-se a Oblação, e, no instante em que se dispensa o povo, toma a palavra o arquidiácono e diz: ?Hoje, imediatamente após a sexta hora, todos devemos estar presentes no Eleona, na igreja do Imbomon?.

4. Recolhe-se o povo todo, portanto, cada qual à sua casa, para descansar; e, imediatamente após o almoço, vão ao Monte das Oliveiras, isto é, ao Eleona, todos na medida de suas forças, de maneira tal, porém, que nem um só cristão permanece na cidade e não há um só que para lá não se dirija.

5. E, chegando eles ao Monte das Oliveiras, isto é, ao Eleona, vào primeiro ao Imbomon, que é a elevação de onde subiu o Senhor aos céus, e aí sentam-se o bispo, os sacerdotes e o povo; e fazem leituras e dizem, intercalando-os, hinos e recitam antífonas atinentes a esse dia e lugar; também as orações que intercalam contêm, sempre, expressões que convêm ao dia e lugar; lêem ainda o passo do evangelho referente à Ascenção do Senhor [Mc. 16,19; Lc. 24,50-51] e, nos Atos dos Apóstolos, o trecho que fala da Ascenção do Senhor aos céus, após a Ressurreição [At. 1,4-11].

6. E são, depois disto, abençoados os catecúmenos e os fiéis; à nona hora desce e, cantando hinos, vão à igreja do Eleona, isto é, à gruta onde o Senhor se detinha e instruía os seus apóstolos. Quando chegam, já passa da hora décima (=quatro horas); comemoram aí o Lucernare, fazem uma prece, os catecúmenos são abençoados e, depois, os fiéis. E logo descem daí, com hinos, todos sem exceção, em companhia do bispo, recitando hinos e antífonas relativos a esse dia; assim vêm, passo a passo, até o Martyrium.

7. É noite quando chegam às portas da cidade e a procissão segue à luz de, talvez, duzentos círios de igreja, por causa do povo; e visto que da porta da cidade há um bom pedaço até a igreja maior, isto é, o Martyrium, chegam bem tarde, à segunda hora da noite, talvez, porque é devagar, bem devagar que vão o tempo todo, por causa do povo, a fim de que, mesmo indo a pé, não se canse. E, ao se abrirem as portas grandes que dão para o mercado, entra o povo todo no Martyrium, com o bispo, entoando hinos. Uma vez na igreja, dizem hinos, fazem uma prece, abençoam-se os catecúmenos e depois os fiéis; daí, de novo, com hinos, dirigem-se à Anástasis.

8. Igualmente, chegando à Anástasis, recitam hinos e antífonas, fazem uma oração, abençoam-se os catecúmenos e depois os fiéis; o mesmo se faz também junto à Crux. E, de novo, daí, o povo cristão, em peso, entoando hinos, acompanha o bispo a Sion.

9. Chegando, fazem leituras apropriadas; dizem Salmos e antífonas, rezam uma oração, abençoam-se os catecúmenos e depois os fiéis, e dispensa-se o povo. Após a dispensa, aproximam-se todos do bispo, a fim de beijar-lhe a mão, e, a seguir, voltam todos a casa à meia-noite, talvez. Suportam, pois, a maior fadiga nesse dia, visto que, desde o primeiro cantar do galo, velam na Anástasis, e, a seguir, durante o dia inteiro, não descansam nunca; e, de tal forma se estendem todas as celebrações que, só à meia-noite, após o término do ofício em Sion, é que voltam para casa.

 

XLIV

1. E, já no dia seguinte a Pentecostes, jejuam todos como é o costume, tal como fazem o ano inteiro, cada qual segundo pode, exceto aos sábados e domingos, dias em que nunca se jejua nestas regiões. Também, depois, nos outros dias, tudo fazem, em todos os pormenores, como no ano inteiro, o que quer dizer que, sempre, a partir do primeiro canto dos galos, fazem a vigília na Anástasis.

2. E, se é um domingo, ao primeiro cantar do galo, antes de mais nada, o bispo lê o Evangelho, conforme a tradição, no interior da Anástasis: o texto da Ressurreição do Senhor, que sempre lê aos domingos; a seguir, dizem hinos e antífonas até o raiar do dia, na Anástasis; se, porém, não é domingo, dizem somente hinos e antífonas, na Anástasis, do primeiro canto do galo até a luz do dia.

3. Os ascetas estão todos presentes; do povo, comparecem os que podem, como podem; e os clérigos apresentam-se, por turnos, diariamente, e o fazem ao primeiro canto do galo, enquanto que o bispo vem sempre ao amanhecer, a fim de encerrar o ofício matinal com todos os clérigos, exceto aos domingos, quando lhe é necessário chegar ao primeiro canto do galo, a fim de ler, na Anástasis, o Evangelho. Ainda uma vez, à sexta hora, procede-se ao culto tradicional na Anástasis, e igualmente à nona hora e ao Lucernare, obedecendo a ttradição, como é hábito que se faça durante o ano inteiro. E na quarta e na sexta-feira, sempre à nona hora, o ofício é em Sion, segundo o costume.

 

XLV

1. [O Batismo: Inscrição do Nome] E devo escrever, também, de que maneira se doutrinam os que são batizados pela Páscoa, pois aquele que dá o seu nome o dá antes do primeiro dia da Quaresma, isto é, antes de se iniciarem as oito semanas nas quais afirmei que aqui se comemora a Quaresma; e o presbítero anota os nomes de todos.

2. Tendo o sacerdote anotado, pois, todos os nomes, então, no primeiro dia da Quaresma, isto é, no dia em que têm início as oito semanas, coloca-se a cátedra episcopal no meio da igreja maior, quero dizer, no Martyrium, sentam-se de um e de outro lado os presbíteros, em cadeiras, permanecendo de pé os clérigos; são então chamados, um a um, os batizandos: se são homens, vêm com o padrinho e, se são mulheres, vêm com a madrinha.

3. O bispo, então, interroga um a um os acompanhantes do que entrou, dizendo: ?Tem este vida virtuosa, e honra os pais, e não é um ébrio ou um impostor??. Interroga acerca de cada um dos vícios que são graves em um homem.

4. E se o batizando for julgado irrepreensível a respeito de tudo quanto foi perguntado, o bispo, na presença das testemunhas, registra-lhe, com a própria mão, o nome. Se, porém, é acusado de algo, ordena-lhe que saia, dizendo-lhe que se corrija e, quando tiver corrigido, que se apresente, então, ao Batismo. Assim interroga, tanto sobre os homens quanto sobre as mulheres. E se algum deles é estrangeiro, a menos que tenha uma testemunha que o conheça, não conseguirá tão facilmente o Batismo.

 

XLVI

1. [Catequese: a Entrega do Símbolo] E também, senhoras minhas irmãs, para que não julgueis que se age arbitrariamente, devo escrever qual é o costume aqui: durante esses quarenta dias de jejum, os que se preparam para o Batismo são, primeiramente, exorcizados, de manhã cedo, pelos clérigos, assim que termina o ofício matinal na Anástasis. Coloca-se, logo a seguir, no Martyrium, na igreja maior, a cátedra episcopal e sentam-se, ao redor, junto ao bispo, todos os que devem sr batizados, tanto homens quanto mulheres; também aí se encontram os padrinhos e madrinhas e, ainda, os que, dentre o povo, desejam ouvir; todos entram e se sentam, conquanto que sejam fiéis.

2. O catecúmeno, porém, aí não entra enquanto o bispo assim ensina a lei: começando do Gênesis, durante os quarenta dias, percorre inteiramente as Escrituras, explicando-as, primeiro literalmente, e explicando-as, a seguir, espiritualmente. E também a respeito da Ressurreição e igualmente a respeito da fé, tudo é ensinado nesses dias; e isto se chama ?catequese?.

3. E logo, decorridas cinco semanas desde o início da instrução, então recebem o Símbolo cuja natureza, igualmente, tal como o significado de todas as Escrituras, lhes é explicado, palavra por palavra, primeiro do ponto de vista literal e, depois, do ponto de vista espiritual: eis como se lhes explica o Símbolo. Assim, nestas regiões, todos os fiéis seguem as Escrituras quando se lêem na igreja, porque todos são nelas instruídos no decorrer dos quarenta dias, durante três horas, isto é, desde a primeira hora até a hora terceira.

4. E Deus sabe, senhoras minhas irmãs, que as vozes dos fiéis que entram para ouvir a catequese mais alto se fazem ouvir ao que aí é dito ou explicado pelo bispo do que a tudo quanto explica ao sentar-se e pregar na igreja. Terminada a catequese, imediatamente, à terceira hora, entoando hinos, conduzem o bispo daí à Anástasis e, pela mesma teerceira hora, dispensa-se o povo; assim são instruídos três horas por dia, durante sete semanas. Na oitava semana da Quaresma, isto é, na que se chama ?septimana maior?, [isto é,] grande semana,já não há tempo para doutriná-los porque é necessário cumprir tudo quanto acima foi dito.

5. [A Repetição do Símbolo] Decorridas, pois, sete semanas, resta apenas a semana pascal que, aqui, chamam ?septimana maior?, grande semana. Já, então, o bispo chega de manhã à igreja maior, ao Martyrium. No fundo da ábside, atrás do altar, coloca-se a cátedra episcopal e os batizandos se aproximam, um a um, cada homem com o padrinho e cada mulher com a madrinha, e repetem o Símbolo ao bispo.

6. Após isto, o bispo, dirigindo a todos a palavra, diz: ?Durante estas sete semanas, fostes instruídos inteiramente acerca de toda a lei das Escrituras e ouvistes também a respeito da fé; também a respeito da ressurreição da carne e de todo o significado do Símbolo ouvistes o que, embora catecúmenos, pudestes ouvir; mas as palavras concernentes a um mistério mais profundo, o próprio Batismo, porque sois ainda catecúmenos, não podeis ouvi-las; e, para que não julgueis que algo se faz sem razão, ouvi-las-eis após o término do ofício na Igreja, na Anástasis, durante os oito dias pascas quando, em nome de Deus, houverdes sido batizados; porque sois ainda catecúmenos, não vos podem ser revelados os mistérios secretos de Deus?.

 

XLVII

1. [Os Mistérios] E, mais tarde, nos dias da Páscoa, durante os oito dias, quero dizer, da Páscoa até a Oitava, terminado o ofício na igreja, quando o povo se dirige à Anástasis entoando hinos, imediatamente se diz uma oração, abençoam-se os fiéis e o bispo, que permanece apoiado de encontro ao interior do gradil da gruta da Anástasis, explica tudo quanto se faz no Batismo.

2. Nesse momento, nenhum catecúmeno se aproxima da basílica, mas tão somente os neófitos e também os fiéis que desejam ouvir a respeito dos mistérior aí se encontram: e as portas se fecham para que nenhum catecúmeno possa entrar. E, examinando o bispo todos esses aspectos e expondo-os, tão alto fazem ouvir os presentes as suas palavras de louvor que, de longe, fora da igreja, se lhes ouvem os gritos. De tal forma, realmente, ele desfia os mistérios que ninguém pode deixar de comover-se ante o que, assim exposto, ouve.

3. E, visto que nessa região uma parte do povo conhece o grego e o siríaco, outra parte, ainda, apenas o siríaco, e visto que o bispo, conhecendo, embora, o siríaco, fala sempre, contudo, o grego e nunca o siríaco, há, por essa razão, sempre presente um sacerdote que, exprimindo-se o bispo em grego, traduz para o siríaco, afim de que todos entendam o que é explicado.

4. E também quaisquer leituras que se façam na igreja, visto que é necessário lê-las em grego, há sempre alguém que as traduz para o siríaco por causa do povo, a fim de que, sempre, possa ele aprender; e, para não contristar os que são latinos e não sabem nem o siríaco e nem o grego, também a eles se explicam os textos, porque há outros irmãos e irmãs que são greco-latinos e lhes dão as explicações em latim.

5. E, sobretudo, é, aqui, muito agradável e, sem dúvida, digno de admiração que, sempre, tanto os hinos quanto as antífonas e leituras, e também as orações que diz o bispo, encerrem expressões que os tornam, sempre, adequados e convenientes ao dia comemorado e ao lugar no qual se comemora.

 

XLVIII

1. [Festa das Encênias] Os dias que se chamam ?encenarium? comemoram a consagração a Deus da igreja santificada que fica no Gólgota e chamam ?Martyrium? e também a da augusta igreja situada na ?Anástasis?, isto é, no lugar onde o Senhor ressuscitou, após a Paixão, e que foi consagrada a Deus no mesmo dia. Celebram-se, portanto, com suma honra, as Encênias dessas igrejas santas, visto que, na mesma data de sua consagração, foi encontrada a Cruz do Senhor.

2. Instituiu-se, por essa razão, que as supraditas santas igrejas, devendo ser consagradas pela primeira vez, o fossem nesse dia em que a Cruz do Senhor havia sido descoberta, para que as comemorações se fizessem ao mesmo tempo, com grande alegria, no mesmo dia. E consta das Santas Escrituras que o dia das Encênias é o dia em que o justo Salomão, terminando a Casa de Deus que edificara, postou-se ante o altar de Deus e orou, assim como está escrito nos livros dos Paralipômenos (2Cr. 6,12ss; 1Rs. 8,22-53).

 

XLIX

1. Chegando, pois, a data das Encênias, é comemorada durante oito dias; e, muitos dias antes, começam a reunir-se, vindo de toda parte, multidões de monges e ascetas, não apenas de diversas províncias, isto é, tanto da Mesopotâmia quanto da Síria e do Egito, ou então da Tebaída, onde há muitos monges, mas também de todos os outros lugares e regiões; não há ninguém, na verdade, que se não apresente nesse dia, em Jerusalém, a fim de participar de tão grande júblilo e tão gloriosos dias. Os leigos, tanto homens quanto mulheres, de todas as províncias, fiéis no seu coração, por amor a esse dia consagrado, reúnem-se, igualmente, em Jerusalém, nesses dias.

2. Os bispos, por menos numerosos que sejam, ultrapassam quarenta ou cinqüenta em Jerusalém, durante esses dias e, com eles, chegam muitos dos seus clérigos. Enfim, julga ter cometido o maior pecado aquele que não tenha comparecido a esses dias de tão grande solenidade, a não ser que algum impedimento real o afaste do seu bom propósito.

3. E, nesses dias das Encênias, a ornamentação de todas as igrejas é a mesma da Páscoa e da Epifania; e também, a cada dia, vão a todos os lugares santos, tal como na Páscoa e na Epifania. No primeiro e no segundo dia, à igreja maior, chamada Martyrium; no terceiro dia, ao Eleona, isto é, à igreja situada no monte do qual subiu o Senhor aos céus após a Paixão, e no interior da qual se encontra a gruta onde o Senhor ensinava aos seus discípulos, no Monte das Oliveiras; no quarto dia…

(lacuna)

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