Autor: Peter M. J. Stravinskas
Ao se envolver em um debate teológico com fundamentalistas ou outros literalistas bíblicos, os católicos precisam estar atentos aos princípios subjacentes descritos abaixo. Cada princípio representa uma mentalidade que ou não é exigida pelos dados bíblicos, ou é diretamente refutada por eles.
Princípio nº 1: Sobre a natureza do homem
O homem é totalmente corrupto – Daí surge a tendência de limitar a religião a questões de pecado e justificação: arrependimento, conversão, tomar uma decisão por Cristo, lamentar os próprios pecados, condenar como mal aquilo que a experiência comum e a doutrina católica ensinam ser bom (cf. Catecismo da Igreja Católica, §405).
Se esse princípio for verdadeiro, como entender passagens das Escrituras como o Salmo 8,5-6? “Que é o homem para dele te lembrares, e o filho do homem, para que o visites? Fizeste-o um pouco menor que os anjos, de glória e honra o coroaste.” O salmista inspirado claramente considerava isso uma verdade — mesmo após a Queda.
Princípio nº 2: Sobre a natureza da graça
A graça é totalmente extrínseca – Isso decorre do 1º princípio, pois, se o homem é totalmente corrupto, então a graça não pode ser intrínseca a ele, pois isso o transformaria em algo bom e, portanto, não mais corrupto. O sangue de Cristo cobre os pecados do homem, ocultando-os aos olhos de Deus, mas o homem permanece tão corrupto quanto antes. Assim, enfraquece-se qualquer motivação para combater os próprios vícios e imperfeições, ou os da sociedade.
Na verdade, a noção de que o homem é totalmente corrupto e sua consequência — de que a graça é apenas extrínseca — têm origem histórica no desespero de Martinho Lutero ao tentar viver a vida religiosa consagrada. A graça de Cristo é tão poderosa que São Paulo ensina: “Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura” (2Coríntios 5,17; CIC, §1999).
Princípio nº 3: Sobre a natureza da salvação
O homem é salvo somente pela fé (cf. CIC, §§161-162, §2010) – A maneira de fazer com que o sangue de Cristo cubra os seus pecados é acreditar que isso acontece. Daí vem o adágio de Lutero: “Peca fortemente, mas crê mais fortemente ainda”. Quando alguém chega à convicção de que, apesar de sua incapacidade de mudar, está absolvido de toda responsabilidade, a exaltação que se segue é chamada de experiência de conversão — e surge a tendência de se ensinar que ninguém está salvo a menos que tenha vivido essa euforia emocional. Alguns fundamentalistas chegam a considerar que a salvação de alguém está perdida se esse estado de entusiasmo não puder ser repetido regularmente.
A noção de que o homem é salvo somente pela fé também implica que as boas obras são desnecessárias e que o mérito é inexistente — apesar do ensinamento claro em sentido contrário em Tiago 2.
Princípio nº 4: Sobre a natureza da Igreja
A Igreja é tão somente uma sociedade invisível – A Igreja consiste apenas daqueles que são salvos pelo sangue de Cristo. Mas estes são apenas os que creem que estão salvos (ver princípio nº 3). Contudo, a fé ou crença é invisível. Logo, a Igreja é exclusivamente invisível. Consequentemente, uma hierarquia visível e também imagens sagradas são vistas como contrárias à verdadeira fé, e tende-se a considerá-las como provenientes do diabo, sendo a Igreja visível (isto é, a Igreja Católica) identificada com a Prostituta da Babilônia, e as imagens sagradas, como ídolos.
Naturalmente, essa linha de raciocínio vai em sentido contrário à descrição cuidadosa de Paulo da Igreja como Corpo de Cristo (ver 1Coríntios 12; CIC, §771, §779), bem como contra a intenção clara do próprio Senhor, registrada em Mateus 16,13-19. Assim, em última análise, trata-se de uma rejeição da teologia da Encarnação.
Princípio nº 5: Sobre a natureza do sacerdócio
O único sacerdócio que existe é o comum a todos os fiéis – Por isso, tanto o sacerdócio ministerial quanto o Sacrifício da Missa são negados. Já que todos na comunidade são hierarquicamente iguais, os fiéis têm o direito — e, de fato, somente eles têm a autoridade — de escolher e ordenar seus ministros; a ordenação é apenas uma designação feita pela comunidade e não confere, de forma alguma, um novo caráter ou status à alma.
Essa visão fundamentalista deriva do princípio número 4, pois reflete um desconforto com a mediação humana, embora muitas passagens do Novo Testamento indiquem o contrário. A história de Filipe e o eunuco etíope é um excelente exemplo de respaldo bíblico para funções mediadoras como a pregação, a interpretação autorizada das Escrituras e o ministério sacramental (ver Atos 8,26-40; CIC, §§1536–1600).
Princípio nº 6: Sobre a natureza da revelação
A única regra de fé é a Escritura. Portanto, tanto a Tradição quanto a autoridade da Igreja para interpretar são negadas.
Além do registro histórico que demonstra o contrário, as próprias Escrituras refutam esse princípio. Afinal, Jesus prometeu o Espírito Santo justamente para conduzir Sua Igreja à plena verdade (cf. João 16,13), o que implica desenvolvimento e não uma situação estática. Além disso, o Evangelho de João afirma: “Penso que o mundo inteiro não poderia conter os livros que seriam escritos” para registrar as palavras e ações de Jesus (João 21,25); essa declaração inclui, presumivelmente, a própria Bíblia. São Paulo também exorta os coríntios a serem fiéis “às tradições que vos transmiti” (1Cor 11,2), assim como fez com os tessalonicenses (cf. 2Tessalonicenses 3,6; CIC, §§75–82).
Princípio nº 7: Sobre a natureza da Escritura
A Escritura está sujeita apenas à interpretação privada de cada indivíduo – Assim, o homem é visto como em contato direto com a verdade revelada, sem qualquer mediador além das próprias palavras da Escritura. Por isso, tanto a razão quanto a Igreja são rejeitadas como canais legítimos de interpretação verdadeira.
Essa visão — de que o homem não precisa de mediação para interpretar a Escritura — leva à ideia de que ele não precisa de mediação em nenhum aspecto da religião. Assim, não apenas o sacerdócio é visto como uma interferência intrusiva, mas também o papel dos anjos, dos santos e de Maria — embora o próprio Lutero tenha mantido devoção à Mãe de Cristo. As observações feitas no princípio nº 3 também se aplicam aqui (cf. CIC, §85).
Avaliação Geral
Na prática, nenhum grupo coloca esses princípios em ação de forma coerente, porque isso causaria uma desunião excessiva. No entanto, esses princípios são afirmados verbalmente; se fossem abandonados, qualquer grupo que ainda pretendesse ser cristão não teria escolha lógica a não ser retornar à Igreja Católica. Portanto, o fato de uma denominação não viver de acordo com esses princípios não significa que ela não os proclame como ideais.
Ao ouvir explicações de fundamentalistas, é necessário estar atento à presença desses princípios não apenas de forma direta e explícita, mas especialmente de forma indireta e implícita. Se um princípio ainda não estiver explícito, torne-o claro — e então mostre como eles próprios se contradizem na teoria e na prática. Por outro lado, se a explicação fundamentalista estiver de acordo com a posição católica em um ou mais desses sete princípios, concorde e reforce essa convergência.
Observações Finais
Com base no uso estritamente bíblico da expressão “nascer de novo” (p.ex, João 3,1-5), a Igreja Católica vê esse evento como ocorrendo no batismo. Muitas denominações protestantes, especialmente as de vertente pentecostal, identificam o nascer de novo com a exaltação emocional mencionada no princípio nº 3. Porém, as Escrituras não reconhecem esse segundo sentido.
Historicamente e psicologicamente, o princípio mais importante dentre os sete é o nº 1. Ele surgiu da interpretação exagerada de Martinho Lutero a respeito de suas próprias experiências pessoais com o pecado. Os outros seis princípios foram desenvolvidos para sustentar o primeiro. Contudo, do ponto de vista teológico, o mais importante é o nº 6 — e, se este for demonstrado como insustentável, os demais desabam.
Com relação ao princípio nº 1, a visão católica é que tudo o que Deus criou é bom (Gênesis 1,31), de modo que o pecador mortal abusa, perverte e diminui seriamente a própria bondade; mas não a destrói totalmente, pois continua sendo criatura de Deus. Abraão Lincoln, embora protestante, expressou uma sabedoria tipicamente católica ao dizer:
– “Há tanto bem nos piores de nós e tanto mal nos melhores de nós, que não convém a nenhum de nós falar mal dos outros”.
Fonte: Livro “The Catholic Church and the Bible”, Apêndice B (Ed. Ignatius Press)
Tradução: Veritatis Splendor