Qualquer leitor da magnânima obra Otelo, o Mouro de Veneza, de Shakespeare, percebe, com clareza, a profundidade e plenitude dos personagens. O ilustre dramaturgo inglês simboliza na sua peça o conflito espiritual dos homens, a luta contra o mal, a luta contra a própria essência decaída. Claro que, para os olhos desavisados, Otelo não passa de mais uma tragédia shakespeariana com um pomposo final trágico. Tomo a liberdade de afirmar, posso até ser leviano, que nessa peça o Bardo de Avon se aproxima de um simbolismo quase escancarado, rompendo o véu do mistério, onde os personagens atuam não como personagens, mas sim como representações verdadeiras da epopéia sobrenatural da humanidade. Assim, baseados na definição usada por Martin Lins, em A Arte Sagrada de Shakespeare, enxergamos em Otelo a alma, o peregrino purgatorial, em Desdêmona o Espírito, a imaculada pureza, em Iago o diabo em toda a sua plenitude, apaixonado pelo mal, desprovido de virtude, em Emília a caminhada espiritual, mulher divida entre a santidade e a perdição e, por fim, Rodrigo, a inocência cega do homem decaído, ludibriado pelo demônio na tentativa de fazer triunfar o humanismo antitradicional.
Ademais, é importante levarmos em conta que Shakespeare é uma testemunha ocular do início da decadência da Cristandade, logo do Ocidente. Na sua época já ocorre uma mudança radical nas mentes, nas construções intelectuais, a transformação do homem medieval no homem renascentista. Shakespeare, talvez tenha sido o último grande nome do medievo, era, à diferença de muitos dos seus colegas dramaturgos, o continuador e o recapitulador do passado, o último sentinela de uma época que desaparecia rapidamente (Martin Lings) O humanismo trazido pelo Renascimento carregava consigo uma antitradicionalismo arraigado, uma aversão ao sobrenatural, ao entendimento metafísico da Verdade triunfante. A arte da Renascença rompe com a noção estética da Idade Média, tomando como norte o belo pelo belo, sem o sentido transcendental da própria retratação artística; Se a arte renascentista carece desta abertura para o universal e é totalmente limitada à sua própria época, é porque sua perspectiva é humanista; e o humanismo, que é uma revolta da razão contra o intelecto, considera o homem e outros objetos terrenos inteiramente por si mesmos, como se não houvesse nada além deles. (Martin Lings) Desse modo, percebemos como a arte pode ser profeta de uma nova sociedade, como nela homens se reúnem e repesam a realidade através da expressão estética; a arte, como forma de cultura, pode indicar, através da sua transformação, o nascimento de uma nova era. Claro que não necessariamente fazemos referência a uma benéfica transformação, ao contrário, quase sempre essas cisões com o passado e com a Tradição se dão por meio de um processo revolucionário. O Renascimento inaugurou, assim, a mentalidade moderna com seu excessivo individualismo e mundanização da realidade e da Religião, sedimentando a relativização dos valores e das instituições, exaltando e banalizando a sensualidade e, por fim, criando um paganismo artificial. O Renascimento estabeleceu o naturalismo e o humanismo, nesse período, não ocorre apenas uma mudança no pensamento filosófico, mas também, em geral, em toda a vida do homem, em todos os seus aspectos: sociais, políticos, morais, literários, artísticos, científicos e religiosos. (Giovanne Reale – História da filosofia: Do Humanismo a Kant).
A arte tradicional, cerne da estética medieval, se baseia em princípios metafísicos, num simbolismo universal que remete a uma Tradição primeira, a mesma que alimenta o próprio motor civilizacional. O Renascimento, por sua vez, abriu espaço para a degradação desses valores estéticos, chegando ao seu ápice no entendimento moderno da arte, através do triunfo de uma ótica informal e revolucionária, enquanto distante da ordem. A arte tradicional bebe da fonte religiosa, espiritual, sobrenatural, está intimamente ligada a uma perspectiva transcendentalista. Esse rompimento fez com que o homem atual não mais entendesse a grandeza de obras que carregam uma profundidade simbólica e sagrada imensurável. Umberto Eco até mesmo chegou a criticar Dante, chamando-o de pretensioso, por acreditar que a Divina Comédia, sendo fundamentada sobre uma forte base cristã, era nada mais do que a misteriosa epopéia do homem frente ao Divino.
Dante Alighieri afirmava que o texto carregava quatro sentidos: A um chama-se literal (…) Ao outro chama-se alegórico (…) O terceiro sentido chama-se moral (...) O quarto sentido chama-se anagógico (Convívio, II, 1). Esse entendimento não é, nem nunca foi, estranho ao mundo, ao contrário, faz parte da própria estruturação do conhecimento do texto bíblico, norte das letras ocidentais. Assim diz o Catecismo da Igreja Católica: §115 Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual, sendo este último subdividido em sentido alegórico, moral e analógico. A concordância profunda entre os quatro sentidos garante toda a sua riqueza à leitura viva da Escritura na Igreja., sabedoria que sempre compôs o conteúdo teológico cristão, como ensinava Hugo de São Vitor; as palavras do oráculo celeste podem ser entendidas em seu sentido histórico, alegórico, moral ou anagógico. (Sermo XCV) e Nicolau de Lira: “A letra ensina os fatos, a alegoria, no que deves crer, o sentido moral no que deves fazer e o anagógico ao que deves tender.”
O sentido anagógico é o mais profundo, ele possibilita o conhecimento total do texto. Esse supra-sentido ocorre quando se expõe espiritualmente um escrito, o qual, pelas coisas significadas, significa as sublimes coisas da glória eterna. (Convívio, II, 1) . Entretanto, o sentido literal não pode ser desmerecido, ao contrário, a passagem por ele é obrigatória para o entendimento pleno do conteúdo. A literalidade da palavra é a base sobre a qual os outros sentidos são erguidos, a casa que contém dentro de suas paredes o mistério e o simbolismo metafísico. Sendo o sentido literal sempre sujeito e matéria dos outros, principalmente do alegórico, é impossível chegar ao conhecimento dos outros sem o seu conhecimento (Convívio, II, 1).
O que tudo isso tem a ver com Shakespeare? O dramaturgo inglês, como qualquer grande intelectual formado dentro de paidéia civilizacional medieval e cristã , tinha conhecimento dos quatto sensi da literatura, coroados com Dante, na sua Divina Comédia, que, por sua vez, os absorveu do pensamento escolástico. Shakespeare, assim como o poeta florentino, se preocupava com a purificação do homem, a sua santificação última, desse modo, cobrava de seus personagens a perfeição que representava a integridade do Espírito, a própria santificação e imortalidade:
O porteiro do Portão do Purgatório, isto é, o portal da salvação, é, por definição, de incomensurável misericórdia. ( ) Mas o porteiro da Porta do Paraíso, isto é, a porta da santificação, é implacavelmente exigente; e, para seus heróis e heroínas, Shakespeare representa esse porteiro. Ele não deixará passar nada exceto a perfeição ( ) Sente-se que os personagens, um após o outro, são desenvolvidos e levados a um estado de virtude que chega aos próprios limites da natureza humana
A sua obra, assim, reproduz essa busca pela perfeição humana, um mergulho dentro da essência decaída e maculada do homem, mas que inspirado pela Verdade, procura o seu aprimoramento espiritual, aspira alcançar o topo da montanha do purgatório no encontro místico com a sua Beatriz depois da desventurosa saga num mundo dominado pela ação demoníaca, força essa que incentiva não apenas a entrega à natureza primitivamente pecadora, mas, também, estimula a destruição de toda a Tradição.
Eu, obviamente, não sou nenhum grande mestre da dramaturgia shakespeariana, mas o que me levou a escrever esse breve artigo foi a profundidade dos personagens e da própria tragédia de Otelo. Sem dúvida alguma, Iago é aquele que mais nos assusta, seja pelo seu amor ao ódio, ou até mesmo pela clareza no seu significado simbólico; o demônio. Com ele, talvez, Shakespeare tenha se aproximado o máximo possível da adoção de uma linguagem sagrada não mais estética, mas teológica. Tirando dessa tragédia a própria trama e, em seguida, resgando o véu do mistério forma-se, claramente, uma obra de espiritualidade cristã. Na peça, como um todo, enxergamos em Iago a representação factual do diabo, essa percepção do leitor é reflexo da postura adotada pelo personagem, aderindo radicalmente ao mal, disseminando a discórdia, corrompendo os homens, atiçando neles o que de mais podre existe na natureza decaída. Entretanto, no final da tragédia Shakespeare nos confirma, categoricamente, a essência da vilania, o dramaturgo revela o personagem por detrás do personagem. Otelo diz, em referência à Iago; Eu olhei para baixo, em direção a seus pés; mas isto é uma fábula, fazendo alusão ao lendário conto que dizia que Lúcifer tinha pés rachados. Em seguida, na tentativa de vingar a desgraça fomentada pelo seu alferes, tenta matá-lo com um golpe de espada, dizendo; Se isto que és é um diabo, não tenho o poder de matar-ter. Iago, ferido, responde ao parente do Senador Brabâncio, Ludovico; Estou sagrando, senhor, mas não estou morto, em claro escárnio, ironia erguida sobre a sua imortalidade demoníaca.
Outro fato que pode passar desapercebido na leitura de muitos é a ação maliciosa de Iago sobre Rodrigo. De acordo com Martin Lings, o gentil-homem representa o próprio homem decaído, embrigado com o pecado, impotente, sempre suscetível ao domínio satânico. Iago, atuando como o diabo, incita os mais decadentes sentimentos, estimula os mais podres pensamentos, entretanto, sua ascendência sobre Rodrigo vai além dessa clara influência. O alferes do Mouro, adotando o discurso humanista, combatendo a tradição medieval, representante do discurso renascentista – Virtude? Uma figa! Está em nós mesmos o poder de sermos assim ou assado. Nossos corpos são nossos jardins, e nossas vontades são jardineiros – busca em Rodrigo, o homem, o triunfo de uma humanidade limitada pela razão e pela natureza, destruindo a Civilização, derrubando a sua sólida base de sustentação; a Cristandade, através da corrupção da consciência sobrenatural.
Ainda vale frisar que Emília, assim como Otelo, é uma peregrina purgatorial, uma alma divida entre a santidade e a pureza, representadas em Desdêmona, e a morte e o pecado, encarnados em Iago. Enganada por seu marido, ela se converte em peça fundamental nas arquitetações diabólicas. A sua expiação e purificação resultam do próprio sofrimento oriundo da constatação do seu grau de culpa, mesmo que indireta, no assassinato da amada senhora. A sincera aflição, o terror do remorso e a percepção da sua inércia frente ao mal, fomentaram em Emília uma contrição perfeita, coroada com a sua morte.
A purificação de Otelo, necessária para que, no final, houvesse a união entre a alma e o Espírito, se deu através de um processo de descoberta imediata. O mouro vive seu inferno no momento em que, enganado por Iago, desce às profundezas das trevas. Longe da luz, não distingue a verdade da falsidade, é guiado pelos olhos do seu alferes, os olhos demoníacos da vingança e da mentira. Não obstante, a sabedoria dos fatos, que ele só adquire no final da peça, ilumina o seu entendimento, possibilita a compreensão universal da realidade. Otelo ascende à etapa purgatorial quando, devidamente purificado das máculas infernais, se torna digno da união com a amada Desdêmona. A morte do Mouro, enquanto reparatória, é convertida na própria consolidação da sua expiação. Assim, no leito onde a pérola repousa eterna e santamente, Otelo se deita e descansa; a alma e o Espírito entram numa imortal comunhão.