DISCURSO AOS OFICIAIS E ADVOGADOS DO
TRIBUNAL DA ROTA ROMANA
POR OCASIÃO DO INÍCIO DO ANO JUDICIÁRIO
– Em 21 de Janeiro de 1999 –
1. A solene inauguração da actividade judiciária do Tribunal da Rota Romana oferece-me a alegria de receber os seus componentes, para lhes exprimir a consideração e a gratidão com que a Santa Sé segue e encoraja o seu trabalho.
Saúdo e agradeço ao Excelentíssimo Monsenhor Decano, que de maneira digna interpretou os sentimentos de todos vós aqui presentes, dando expressão apaixonada e profunda aos objectivos pastorais que inspiram o vosso trabalho quotidiano.
Saúdo o Colégio dos Prelados Auditores em serviço e eméritos, os Oficiais maiores e menores do Tribunal, os Advogados da Rota e os Alunos do Estudo da Rota, com os respectivos familiares. A todos uma felicitação cordial para o ano há pouco iniciado.
2. O Excelentíssimo Monsenhor Decano deteve-se no significado pastoral do vosso trabalho, mostrando a sua grande relevância na vida quotidiana da Igreja. Compartilho uma semelhante visão e encorajo-vos a cultivar em todas as vossas intervenções esta perspectiva, que vos põe em plena sintonia com a finalidade suprema da actividade da Igreja (cf. C.I.C. cân. 1742). Já noutra vez tive ocasião de acenar a este aspecto da vossa função jurídica, com particular referência a questões processuais (cf. Discurso à Rota de 22 de Janeiro de 1996, em: AAS 88 [1996], 775). Também hoje vos exorto a dar prevalência, na solução dos casos, à busca da verdade, fazendo uso das formalidades jurídicas somente como meio para esse fim. O argumento sobre o qual desejo deter-me no encontro deste dia, é a análise da natureza do matrimónio e das suas essenciais conotações, à luz da lei natural.
Todos estão ao corrente do contributo que a jurisprudência do vosso Tribunal deu ao conhecimento da instituição matrimonial, oferecendo um validíssimo ponto de referência doutrinal aos outros Tribunais eclesiásticos (cf. Discurso à Rota, em: AAS 73 [1981], 232; Discurso à Rota, em: AAS 76 [1984], 647 s.; Const. Apost. Pastor Bonus, art. 126). Isto consentiu focalizar sempre melhor o conteúdo essencial da união, com base num mais adequado conhecimento do homem.
No horizonte do mundo contemporâneo, contudo, aparece uma difundida deterioração do sentido natural e religioso das núpcias, com reflexos preocupantes na esfera tanto pessoal como pública. Como todos sabem, hoje põem-se em discussão não só as propriedades e as finalidades do matrimónio, mas também o valor e a utilidade mesma dessa instituição. Embora se exclua indevidas generalizações, não é possível ignorar, quanto a isto, o fenómeno crescente das simples uniões de facto (cf. Exort. Apost. Familiaris consortio, 81, em: AAS 74 [1982], 181 s.), e as insistentes campanhas de opinião com a finalidade de obter dignidade conjugal também para uniões entre pessoas pertencentes ao mesmo sexo.
Não é minha intenção numa sede como esta, onde é prevalecente o projecto correctivo e redentor de situações dolorosas e muitas vezes dramáticas, insistir na deploração e condenação. Antes, desejo recordar, não só àqueles que fazem parte da Igreja de Cristo Senhor, mas também a todas as pessoas solícitas do verdadeiro progresso humano, a gravidade e o carácter insubstituível de alguns princípios, que são basilares para a convivência humana, e ainda antes para a salvaguarda da dignidade de toda a pessoa.
3. Núcleo central e elemento básico desses princípios é o autêntico conceito de amor conjugal entre duas pessoas de igual dignidade, mas distintas e complementares na sua sexualidade.
Não há dúvida de que a afirmação deve ser entendida de modo correcto, sem cair no fácil equívoco, pelo qual às vezes se confunde um vago sentimento, ou mesmo uma forte atracção psicofísica, com o amor efectivo do outro, que tem como substância o sincero desejo do seu bem, que se traduz em empenho concreto por realizá-lo. Esta é a clara doutrina expressa pelo Concílio Vaticano II (cf. Gaudium et spes, 49), mas é também uma das razões por que precisamente os dois Códigos de Direito Canónico, latino e oriental, por mim promulgados, declararam e puseram como natural finalidade do conúbio também o bonum coniugum (cf. C.I.C., cân. 1055 §1 ; C.C.I.O., cân. 776 §1). O simples sentimento está ligado à mutabilidade do espírito humano; só a atracção recíproca, depois, muitas vezes derivante sobretudo de impulsos irracionais e às vezes aberrantes, não pode ter estabilidade e, portanto, está facilmente, se não de maneira fatal, exposta a extinguir-se.
O amor coniugalis, portanto, não é só nem sobretudo sentimento; é, ao contrário, essencialmente um empenho para com a outra pessoa, empenho que se assume com um preciso acto de vontade. Precisamente isto qualifica esse amor, tornando-o coniugalis. Uma vez dado e aceite o empenho por meio do consentimento, o amor torna-se conjugal, e nunca perde este carácter. Aqui entra em jogo a fidelidade do amor, que tem a sua raiz na obrigação assumida de maneira livre. O meu Predecessor, o Papa Paulo VI, num seu encontro com a Rota, sinteticamente afirmava: «Ex ultroneo affectus sensu, amor fit officium devinciens» (AAS 68 [1976], 207).
Já diante da cultura jurídica da antiga Roma os autores cristãos sentiram-se impelidos pelo axioma evangélico a superar o conhecido princípio, pelo qual tanto se sustém o vínculo conjugal quanto perdura a affectio maritalis. A este conceito, que continha em si o germe do divórcio, eles contrapuseram a visão cristã, que remetia o matrimónio às suas origens de unidade e indissolubilidade.
4. Surge aqui às vezes o equívoco, segundo o qual o matrimónio é identificado ou, em todo o caso, confun- dido com o rito formal e externo que o acompanha. Com certeza, a forma jurídica do matrimónio representa uma conquista de civilização, pois confere-lhe relevância e também eficácia diante da sociedade, que por conseguinte assume a sua tutela. Mas a vós, juristas, não passa despercebido o princípio pelo qual o matrimónio consiste de modo essencial, necessário e único no consentimento mútuo expresso pelos nubentes. Esse consentimento não é senão a aceitação consciente e responsável de um empenho, mediante um acto jurídico com o qual, na doação recíproca, os esposos prometem um ao outro amor total e definitivo. Eles são livres de celebrar o matrimónio, depois de se terem escolhido reciprocamente de modo também livre, mas, no momento em que realizam este acto, instauram um estado pessoal, em que o amor se torna algo devido, com carácter também jurídico.
A vossa experiência judiciária faz com que vos certifiqueis de como esses princípios estão arraigados na realidade existencial da pessoa humana. Em conclusão, a simulação do consentimento, para dar um exemplo, mais não significa que dar ao rito matrimonial um valor puramente exterior, sem que a ele corresponda a vontade de uma doação recíproca de amor, exclusivo, indissolúvel ou fecundo. Como admirar-se pelo facto de que um semelhante matrimónio esteja destinado ao naufrágio? Quando acaba o sentimento ou a atracção, ele resulta privado de qualquer elemento de coesão interna. Falta, de facto, aquele recíproco empenho oblativo, o único que poderia assegurar a sua duração.
Algo semelhante vale também para os casos em que, de maneira dolosa, alguém foi induzido ao matrimónio, ou quando uma coacção externa grave tirou a liberdade, que é o pressuposto de toda a dedicação amorosa voluntária.
5. À luz destes princípios, pode ser estabelecida e compreendida a diferença essencial que existe entre uma mera união de facto – que embora se pretenda originada no amor – e o matrimónio, no qual o amor se traduz num empenho não só moral mas rigorosamente jurídico. O vínculo, que se assume de modo recíproco, desenvolve em resposta uma eficácia corroborante em relação ao amor do qual nasce, favorecendo a sua duração em vantagem da comparte, da prole e da própria sociedade.
É à luz dos mencionados princípios que se revela também como é incongruente a pretensão de atribuir uma realidade «conjugal» à união entre pessoas do mesmo sexo. A ela opõe-se, antes de tudo, a impossibilidade objectiva de fazer frutificar o conúbio mediante a transmissão da vida, segundo o projecto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano. Serve de obstáculo, além disso, a ausência dos pressupostos para aquela complementaridade interpessoal que o Criador quis, tanto no plano físico-biológico quanto no eminentemente psicológico, entre o homem e a mulher. É só na união entre duas pessoas sexualmente diferentes que se pode realizar o aperfeiçoamento do indivíduo, numa síntese de unidade e de mútua complementação psicofísica.
Nesta perspectiva, o amor não é fim em si mesmo, nem se reduz ao encontro corporal entre dois seres, mas é uma relação interpessoal profunda, que alcança o seu coroamento na plena doação recíproca e na cooperação com Deus Criador, fonte última de cada nova existência humana.
6. Como se sabe, estes desvios da lei natural, inscrita por Deus na natureza da pessoa, desejariam encontrar a sua justificação na liberdade, que é prerrogativa do ser humano. Na realidade, trata-se de justificação imaginária. Todo o crente sabe que a liberdade é – como diz Dante – «o maior dom que Deus, por sua magnanimidade, fez ao criar, e o mais de acordo com a Sua bondade» (Par. 5, 19-21), mas é dom que deve ser bem entendido para não se transformar em ocasião de obstáculo para a dignidade humana. Conceber a liberdade como liceidade moral ou mesmo jurídica de infringir a lei, significa corromper a sua verdadeira natureza. Esta, de facto, consiste na possibilidade que o ser humano tem de se conformar de maneira responsável, isto é, com opção pessoal, à vontade divina expressa na lei, para se tornar assim sempre mais semelhante ao seu Criador (cf. Gn 1, 26).
Eu escrevia já na Encíclica Veritatis splendor: «O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer i.de todas as árvores do jardimle. Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da “árvore da ciência do bem e do mal”, chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização precisamente nesta aceitação. Deus, que “só é bom”, conhece perfeitamente o que é bom para o homem, e, devido ao Seu mesmo amor, propõe-lo nos mandamentos» (n. 35).
A crónica quotidiana traz, infelizmente, amplas confirmações acerca dos miseráveis frutos que essas aberrações da norma divino-natural acabam por produzir. Parece quase que se repete nos nossos dias a situação de que Paulo Apóstolo fala na carta aos Romanos: «Sicut non probaverunt Deum habere in notitia, tradidit eos Deus in reprobum sensum, ut faciant quae non conveniunt» (1, 28).
7. A referência imperiosa aos problemas da hora presente não deve induzir ao desânimo nem à resignação. Deve antes estimular a um empenho mais decisivo e mais concreto. A Igreja e, por conseguinte, a lei canónica reconhecem a todo o homem a faculdade de contrair matrimónio (cf. C.I.C., cân. 1058 ; C.C.I.O., cân. 778); uma faculdade, entretanto, que só pode ser exercida por aqueles «qui iure non prohibentur» (ibid.). Tais são, em primeiro lugar, aqueles que têm uma suficiente maturidade psíquica na dúplice componente intelectiva e volitiva, juntamente com a capacidade de cumprir os ônus essenciais da instituição matrimonial (cf. C.I.C., cân. 1095; C.C.I.O., cân. 818). A respeito disso, não posso deixar de evocar mais uma vez quanto eu disse, precisamente diante deste Tribunal, nos discursos dos anos de 1987 e 1988 (cf. AAS 79 [1987], 1453 ss.; AAS 80 [1988], 1178 ss.): uma indevida dilatação das chamadas exigências pessoais, reconhecidas pela lei da Igreja, acabaria por infligir um gravíssimo vulnus àquele direito ao matrimónio, que é inalienável e subtraído a qualquer poder humano.
Não me detenho aqui noutras condições postas pela normativa canónica para um válido consentimento matrimonial. Limito-me a sublinhar a grave responsabilidade que incumbe aos Pastores da Igreja de Deus, de cuidarem de uma adequada e séria preparação dos nubentes para o matrimónio: só assim, de facto, se podem suscitar no ânimo daqueles que se preparam para celebrar as núpcias, as condições intelectuais, morais e espirituais, necessárias para se efectivar a realidade natural e sacramental do matrimónio.
Confio estas reflexões, caríssimos Prelados e Oficiais, às vossas mentes e aos vossos corações, conhecendo bem o espírito de fidelidade que anima o vosso trabalho, mediante o qual quereis dar actuação plena às normas da Igreja, na busca do verdadeiro bem do Povo de Deus.
Para conforto da vossa fadiga, com afecto concedo a Bênção Apostólica a todos vós aqui presentes, e a quantos estão de algum modo ligados ao Tribunal da Rota Romana.