Aborto de anencéfalos: documento do comitê nacional de bioética da itália

COMITE NACIONAL PARA A BIOÉTICA

TEXTO APROVADO PELO C.N.B. em 21 de Junho de 1996

PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DOS MINISTROS DEPARTAMENTO PARA A INFORMAÇÃO E PUBLICAÇÃO

SUMÁRIO
Apresentação
Premissa
Aspectos Biomédicos da Anencefalia
Problemas correlatos ao recém-nascido anencefálico e à doação de órgãos
Considerações Éticas
Bibliografia

APRESENTAÇÃO

Embora muito sensível e dividida sobre questões bioéticas, por sinal objetivamente cruciais, como a fecundação assistida, a eutanásia, o estatuto do embrião humano, a opinião pública tem com certeza bem poucas dúvidas no que se refere à liceidade ética da doação de órgãos e de maneira mais geral dos transplantes: prática essa que provavelmente suscita ainda  (e pour cause)  sentimentos complexos caracterizados por uma estreitíssima  alternância entre admiração e temor,  mas que mesmo assim parece já ter entrado numa lógica de rotina, de altíssimo nível. Mas com relação aos transplantes, as questões bioéticas continuam a apresentar-se, embora em formas a não envolver (ou a não envolver mais) a atenção neurótica dos meios de comunicação de massa: caso limitado, mas exemplar, justamente aquele da doação de órgãos na  infância a partir de bebê anencefálico. Mesmo assim o Comitê Nacional  para a Bioética, profundamente convicto que seja sua função levar  muito a sério e dar pronta resposta aos questionamentos bioéticos que emergem da opinião pública, mesmo quando objetivamente superdimensionados, não por isto considera irrelevante tomar posição sobre questões que muitos considerariam marginais, seja por sua eventual sofisticação teórica, seja por sua limitada incidência estatística. Um caso típico é o dos recém-nascidos nos quais se manifestem formas de anencefalia:   Patologia esta da qual geralmente se tem conhecimento entre um restrito número de pessoas, especialistas em sua maioria. Mesmo assim o problema bioético das crianças anencefálicas é de grande relevo e deve ser considerado sob diversos aspectos. Além de estimular sérias reflexões  sobre a dignidade de pessoa que de qualquer forma a tais crianças deve ser reconhecida, este problema põe em discussão temáticas relativas à oportunidade de sua reanimação, à determinação do momento de sua morte e principalmente à liceidade de fazer uso de seu corpo como fonte de órgãos a serem transplantados. Mas os questionamentos não se limitam a estes. Não esqueçamos, por exemplo, o significado que pode ter um diagnóstico pré-natal de anencefalia do feto para seus pais. Tais problemáticas já chamaram a atenção do CNB durante a elaboração de alguns de seus mais importantes documentos a partir do primeiro, Definição e Constatação Da Morte no Homem (aprovado a 15 de fevereiro de 1991); Além deste documento limito-me a lembrar Diagnósticos Pré-Natais (18 de Julho de 1992), Transplante de Órgãos na Infância (21 de Janeiro de 1994), Bioética com a Infância (22 de Janeiro de 1994), até o mais recente, Vir ao Mundo (15 de Dezembro de 1995). O fato do tema da Anencefalia ser continuamente recolocado mesmo de maneira transversal, convenceu afinal os membros do Comitê a organizar, sobre este tema, um grupo específico de trabalho, para a direção do qual foi designado o professor Conrado Manni, para que fosse elaborado um texto sintético mas exaustivo, que pudesse servir como orientação sobre o Estatuto Bioético a ser reconhecido aos bebês anencefálicos, particularmente no que diz respeito à possibilidade de utilizá-los como doadores de órgãos. O grupo do qual participaram os colegas Barni, Benciolini, Coghi, Danesino, Gaddini, Leocata, Loreti Beghè, Sgreccia e Romanini, levou rapidamente ao final os seus trabalhos que foram examinados, discutidos e mais de uma vez  ulteriormente discutidos pelo Comitê, reunido em sessão plena. Para elaboração do documento colaboraram também o Prof. Rodolfo Proietti e o Dr. Lorenzo Martinelli do Instituto de Anestesiologia e Reanimação da Universidade Católica do Sagrado Coração de Roma e o Prof. Píer Paolo Mastroiacovo do Instituto de Clinica |Pediátrica da mesma universidade. No dia 21 de Junho de 1996, se deu afinal a aprovação unânime do documento.

No momento de entregá-lo à imprensa, sinto o dever de expressar um agradecimento e formular um desejo. Um agradecimento para aqueles que colaboraram na redação deste  documento principalmente para Conrado Manni, sem cuja decisiva contribuição científica e bioética, este documento nunca viria à luz; e o desejo de que este texto seja lido, meditado e amplamente discutido como ele merece.

Roma, 21 de Junho de 1996.

O Presidente

Francesco D’ Agostino

PREMISSA

O problema do recém-nascido anencefálico assumiu nestes últimos anos uma importância cada vez maior sob vários aspectos: médico, técnico, jurídico mas principalmente ético.

Em 1967 foi relatado o primeiro caso de transplante de doador anencefálico, mas a relação científica não enfrentou de maneira alguma as numerosas questões que tal procedimento levantava, limitando-se a descrever os aspectos técnicos e observando que “os recém-nascidos anencefálicos eram uma escolha razoável como doadores para os transplantes infantis” (1). Hoje em dia o verbete “anencephaly” do Index Médico, traz dezenas de referências, com notável aumento a partir de 1984; muitas delas analisam também a  temática ética que este campo da medicina suscita (2).

Isto significa que, junto com o aumentado interesse científico relativo aos transplantes, suscitado pelo feto anencefálico, cresceu também uma reflexão ética bastante extensa, reflexão esta que estava faltando no momento em que o problema se apresentou. Um primeiro conjunto de problemas se refere ao tratamento médico do anencéfalo após o nascimento: este aspecto se tornou mais evidente  com a disponibilidade cada  vez maior de meios de terapia intensiva e com os questionamentos que tal disponibilidade suscita neste caso particular.

Um segundo conjunto de problemas, bem mais amplo e controvertido,  compreende os aspectos relativos ao possível uso dos fetos anencefálicos, como doadores de órgãos para transplantes: este aspecto adquiriu grande importância devido aos progressos das técnicas dos transplantes nestes últimos anos; progressos que tornaram possíveis os transplantes também em idade neonatal e tornaram mais aguda a escassez de órgãos para esta específica faixa etária.

As causas de morte cerebral são, por outro lado, bastante raras em idade infantil e a disponibilidade de doadores é limitada aos casos de morte por asfixia perinatal, aos casos de morte súbita neonatal (sudden infant death syndrome) acidentes ou maus tratos (child abuse) (2).

Antes, porém, de adentrar-se nas problemáticas éticas do recém-nascido anencefálico faz-se necessário um aprimoramento da terminologia: alguns autores têm contestado como errada a simples denominação de anencéfalo, pois ela levaria a considerar esses sujeitos como seres despersonalizados. Analogamente, é impróprio defini-los como doadores de órgãos, porquanto, na idade neonatal e infantil, não se pode falar em doação, ação que supõe capacidade de entender e querer livremente (3). Mesmo aceitando tais observações, os termos em questão serão aqui indiferentemente usados, por motivos de praticidade.

Serão considerados, num primeiro momento, os aspectos biológicos fundamentais, com as margens de incerteza que ainda subsistem, e, num segundo momento, os aspectos antropológicos e éticos relativos à problemática do recém-nascido com malformação anencefálica.

ASPECTOS BIOMÉDICOS DA ANENCEFALIA

Definição: Literalmente, anencefalia significa ausência do encéfalo. Na realidade, define-se com este termo uma mal formação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, na qual se verifica “ ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de mal formação e destruição dos esboços do cérebro exposto” (4) Verifica-se portanto ausência dos hemisférios cerebrais e dos tecidos cranianos que os encerram com presença do tronco encefálico e de porções variáveis do diencéfalo. A ausência dos hemisférios e do cerebelo pode ser variável, como variável pode ser o defeito da calota craniana. A superfície nervosa é coberta por um tecido esponjoso, constituído de tecido exposto degenerado.

Este é o quadro de referência geral da malformação anencefálica; não se deve, todavia, pensar que esta malformação seja rigorosamente definível. O autor de um texto qualificado sobre anencefalia, estranha, com razão, a variedade de denominações e de classificações que existem na literatura sobre o assunto (4).

A dificuldade de classificação baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma malformação do tipo tudo ou nada, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de uma malformação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível (5).

Algumas malformações do sistema nervoso central são próximos da anencefalia por alguns aspectos, mas não podem ser confundidas com ela. Entre elas lembramos:

– A síndrome da banda amniótica (na qual a anencefalia pode associar-se a amputações, mas raramente a malformações de órgãos internos);

– A iniencefalia, na qual temos malformações graves da coluna cervical e

malformações múltiplas;

– O encefalocele, um defeito do tubo neural no qual uma parte do encéfalo, mais ou menos gravemente mal formado, forma uma hérnia a partir de um defeito de fechamento do crânio .(6)

Junto com tais malformações deve ser lembrada também a hidrocefalia, cujas formas mais graves  podem ter significado funcional análogo ao da anencefalia (7); por este motivo, também esta malfomação è freqüentemente citada no debate sobre o feto anencefálico (8)

Malformações associadas – são  numerosas as malformações associadas a esta patologia:

– graves e freqüentes as malformações de  órgãos cranianos, como olho, ouvido e hipófise.

– menos freqüentes as malformações do aparelho cardiocirculatório (2.8%) em comparação a 0,4% da população em geral e do aparelho genito-urinário (de 4 a 26%) (9,36) em comparação a 8,4% da população em geral. Tal incidência, embora deva ser levada em consideração e ela seja, até ao momento presente, de avaliação não definitiva, fez com que se concluísse que rins, fígado e coração, mesmo geralmente de dimensões mais reduzidas em relação ao peso corpóreo e acometidos por uma percentagem maior de malformações, são, na maioria dos fetos anencefálicos nascidos vivos, aptos pelo menos no começo a serem transplantados (10,91,36).

Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico  Italiano Malformações Congênitas) em 55 autópsias realizadas em recém-nascidos anencefálicos, 20 recém-nascidos apresentavam uma malformação associada, e entre eles 7 apresentavam uma cardiopatia. O peso médio era de 1.982 g para recém-nascidos sem malformações, 1670 para recém-nascidos com malformações extra cardíacas e 1355 g para recém-nascidos com cardiopatia.

Etiologia: não è conhecida, mas se pensa numa origem multi fatorial na qual fatores genéticos e ambientais desenvolvam um papel proeminente; Não se trata de uma mal formação comum nas infecções virais e na patologia cromossômica. Prevalência: A prevalência da anencefalia  embora variável devido aos critérios de diagnósticos e às medidas de “ screening prenatale”, é da ordem de grandeza de 0,3-1 por mil nascidos (11,12,13), considerando seja os nascidos mortos como os nascidos vivos. Este dado apresenta uma diminuição de cerca de 5% por ano e de 2,7% dos anencéfalos nascidos vivos. Pode-se  prever, como conseqüência dos sempre mais amplos planos de “screening” pré-natal, que a prevalência dos defeitos do tubo neural ao nascimento será cada vez mais reduzida.

Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico  Italiano Malformações Congênitas) que se referem a 1.793.000 nascidos, observados no período de 1978-1994 em cerca de 100 hospitais italianos, verificaram-se 185 casos de recém-nascidos anencefálicos dos quais 120 nascidos vivos (68 falecidos dentro das 24 horas) e 65 nascidos mortos.

Nos últimos 5-6 anos a prevalência da anencefalia é de cerca de 0.5- 1 por 10.000 nascidos. Reportando esses dados ao total dos nascimentos na Itália (cerca de 520.000 por ano) pode-se prever o nascimento anual de 25 a 50 recém-nascidos anencefálicos.

Diagnóstico: o diagnóstico pré-natal é possível graças ao “screening” da alfa fetoproteína materna e a ultra-sonografia. Os dois métodos associados demonstraram sobre “ screening” di larga escala, uma sensibilidade entre 80 a 100% (14,15,16,17). De notar que muitas legislações permitem a interrupção da gravidez na presença de malformações graves do feto. Uma recente pesquisa revelou  que no caso da anencefalia a interrupção voluntária da gravidez acontece em cerca de 80% dos casos (96).

O diagnóstico é feito muitas vezes antes da vigésima semana de gestação (18).

Aspectos funcionais: O feto anencefálico é gravemente deficiente no  plano neurológico. Faltam as funções que dependem do córtex. Faltam, portanto não somente os fenômenos da vida psíquica mas também a sensibilidade (19,20), a mobilidade (21), a integração de quase todas as funções corpóreas (22). Geralmente é mantido um controle mais ou menos eficaz da função respiratória e circulatória, funções que dependem das estruturas localizadas no tronco encefálico.

Sobrevivência: com os atuais tratamentos a sobrevivência do anencefálico é muito reduzida. São relatadas percentagens de nascidos vivos entre 40 – 60% (23-24) enquanto depois do nascimento somente 8% sobrevive mais de uma semana e 1% entre 1 e 3 meses (26 e 26). Foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses (8) e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer a respiração mecânica (97).

O registro da British Columbia no período 1952-1981 registrou 450 anencéfalos, dos quais 60% nascidos mortos e 40% nascidos vivos. Dos 180 nascidos vivos, 58% não sobreviveu além das 24 horas. A mortalidade até 72 horas foi de 86% e de 98% até uma semana (25).

Apesar de uma expectativa de vida tão reduzida não é sempre possível definir a iminência do óbito (27) e a duração da vida pode ser influenciada em muito pelos tratamentos intensivos.

Somente em pequena parte se assiste a uma progressiva degeneração do tecido nervoso, visto que a lesão aparece geralmente estabilizada no momento do nascimento. Um risco elevado se dá no momento do parto, devido ao trauma que o tecido nervoso resíduo sofre não sendo  protegido pelas estruturas ósseas. Sucessivamente a morte ocorre principalmente por insuficiência respiratória causada pela insuficiência das estruturas nervosas de controle ou pela displasia pulmonar  e em pequena parte por  anomalias múltiplas de tipo endócrino (hipófise, supra-renais) (4,28,29).

Recentemente, surgiu nos EUA  um caso médico legal (conhecido como o caso do Bebê K) conseqüente ao nascimento com parto cesariano de uma recém-nascida anencefálica cuja condição era conhecida desde a vida intra-uterina. A mãe se opôs a interrupção da ventilação mecânica que fora instituída depois do nascimento. A Corte Distritual sentenciou, baseada no “ Emergency Treatment Act”  que o tratamento respiratório com ventilador não era nem “inútil” ,nem “desumano”, e portanto conforme a lei americana. A pretensão do hospital em recusar este tipo de tratamento não era portanto legítima, porquanto a legislação americana não prevê  algum tipo de exceção com relação ao tratamento de pacientes com anencefalia (98).

De qualquer forma, mesmo com dados de sobrevivência variáveis, também na dependência do grau de tratamento intensivo, e da época da coleta das casuísticas, a anencefalia é uma condição letal e normalmente nenhum neonato sobrevive além dos três dias (6).

PROBLEMAS CORRELATOS AO RECÉM-NASCIDO ANECEFÁLICO E À DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

O CNB em outro documento já enfrentou os complexos problemas bioéticos que surgem com relação aos transplantes infantis (cfr. Trapianti di Organi nell’ infanzia, aprovado aos 21 de Janeiro de 1994). Já foi levantado que a necessidade de pequenos órgãos para fins de transplante é  muito superior a oferta. A maior parte dos pacientes na lista de espera de transplante morre antes que seja encontrado um doador (30). Os órgãos em idade infantil são necessários para os transplantes em pequenos pacientes (síndrome da parte esquerda do coração hipoplásico, atresia biliar), e eles são de grande interesse também pelas características de sobrevivência  e de possibilidade de crescimento de seu potencial funcional.

Avanços promissores se apresentam, também, para o uso destes pequenos órgãos em sede heterotópica,  com função  auxiliar e não substitutiva, permanente ou transitória (30).

Para o fururo levanta-se a hipótese de se usar linhas celulares no lugar de órgãos completos para tratamento de neoplasias do sistema hematopoiético, de déficit enzimáticos, imunológicos e endócrinos.

Não obstante os múltiplos aspectos e resultados encorajadores, o tema dos transplantes infantis  é ainda objeto de discussão crítica, seja por suas indicações, seja por suas técnicas e resultados, independentemente portanto  dos aspectos éticos (27,31,32,33). Nesta avaliação se deve também levar em conta que se trata de uma cirurgia de elevadíssimo nível técnico organizativo que muito dificilmente estará a disposição de um número elevado de pacientes. (Para uma revisão da matéria da retirada de órgãos de doador anencefálico veja (34) ).

Bastante controvertido é o papel que a eventual disponibilidade de órgãos de fetos anencefálicos poderia assumir  para satisfazer as exigências de pequenos pacientes que necessitem de transplantes.

Mesmo partindo de considerações numéricas análogas autores diferentes chegam a conclusões completamente opostas sobre o número de fetos disponíveis teoricamente nos EUA a cada ano: De 1800 fetos vivos (35) a 400 disponíveis para o transplante até a poucas unidades de transplantes realmente viáveis (27,89). A diferença de avaliação baseia-se sobre a diferente consideração do número dos prematuros, das malformações associadas, das dificuldades para se encontrar um receptor adequado, da sobrevivência a longo prazo e de muitos outros fatores. Para uma extensa análise desses dados veja (8).

Mesmo que essa controvérsia  não seja de particular relevância ética, todavia, é importante observar como a potencialidade do uso de fetos anencefálicos tenha sido avaliada de maneiras muito diferentes: de único recurso para uma situação de grande necessidade de órgãos à medida de efeito não relevante sobre o problema das graves malformações infantis, em grau de resolver somente pouquíssimas situações particulares.

O problema do tratamento do recém-nascido anencefálico

Prescindindo da possibilidade de utilizar os órgãos de reecém-nascidos anencefálicos para fins de transplante, o problema médico fundamental é aquele de estabelecer qual tratamento deve ser aplicado depois do nascimento, uma vez estabelecido o diagnóstico e confirmado que não existe a possibilidade de sobrevivência a longo prazo.

A disponibilidade de recursos de terapia intensiva para sustentar as funções vitais levanta a pergunta se tais recursos devam ser utilizados. Geralmente existe concordância que nesses casos devem ser usados somente os meios ordinários de tratamento, levando em consideração que nenhum tratamento, por mais agressivo que seja, hoje em dia, pode modificar o decurso da doença que é sempre fatal e que tem como causa justamente a ausência daquelas estruturas que o tratamento intensivo deveria momentaneamente substituir (37,38, 39). Tais estruturas não têm nenhuma possibilidade de recuperação e estaríamos, portanto, num caso de isistência terapêutica sem nenhuma finalidade e possibilidade benéfica e, portanto sem razão de ser.

O sujeito anencefálico e a possibilidade da doação de órgãos

Enfrentando, ao invés, os problemas relativos ao anencefálico como possível doador, podemos evidenciar numerosas questões e três diferentes posições conceituais, no que diz respeito ao recém-nascido anencefálico.

Ponto de partida comum é que a técnica dos transplantes pode aliviar os sofrimentos e permitir a sobrevivência de um grande número de doentes e que todo esforço deve ser envidado para prover a necessidade de órgãos. As diferenças de posições evidenciam-se  no momento de estabelecer os limites éticos pelos quais este esforço deve ser delimitado. Uma primeira consideração é que a retirada dos órgãos complexos (fígado, rim e principalmente o coração), deva ser realizada em condições de relativa compensação hemodinâmica, ou seja, num momento em que o coração ainda pulsa de maneira válida e em grau de assegurar aos órgãos interessados uma perfusão suficiente.

Em outras palavras, esperar a morte do anencefálico segundo os critérios cardio-respiratórios e só depois dela retirar os órgãos não é compatível com a preservação das funções destes mesmos órgãos, que já não seriam mais aptos para serem transplantados. É problema análogo ao apresentado pelo doador adulto, para o qual foi aprofundado o problema da morte cerebral. Em vários países, ocorreu uma diferente tradução legislativa mesmo se em geral quase todas as legislações respeitam o princípio da necessidade da completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo. A verificação deste estado é realizada de maneiras diferentes, mesmo se com a única finalidade de demonstrar a presença da mesma condição. No caso do recém-nascido anencefálico a demonstração da morte cerebral apresenta grandes dificuldades ligadas ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal em sentido geral e também à própria condição de malformação do sujeito (37).

O exame do  EEG é impossível pela própria ausência anatômica  das estruturas que dão origem aos potenciais elétricos (córtex). Além disto a presença de ondas EEG no recém-nascido e na criança  não exclui o diagnóstico de morte cerebral (40). A medição do fluxo cerebral embora difícil não é significativa por causa das graves mal formações vasculares cerebrais. Da mesma forma a demonstração de fluxo cerebral não exclui na infância o diagnóstico de morte cerebral (41).

Os reflexos do tronco são variáveis por causa das malformações a cargo de numerosos nervos cranianos.

O exame clínico que visa verificar o comprometimento do tronco encefálico é, portanto de duvidosa confiabilidade, seja pela dificuldade de evocar os reflexos do tronco, seja de interpretar as respostas obtidas. Junto com isto apareceu um aspecto ainda mais fundamental na fisiopatologia do sistema nervoso central em idade neonatal. Um forte debate está surgindo sobre as potencialidades do encéfalo em idade neonatal. Uma grande capacidade de adaptação, mesmo em condições patológicas graves, é reconhecida nos primeiros dias de vida, nos quais particularmente ativos e válidos parecem os fenômenos de neuroplasticidade (42,43). Ampla bibliografia em (8).

 

O encéfalo do recém-nascido parece hoje comparável cada vez menos a um  cérebro adulto em miniatura, principalmente pelas funções da consciência e do contato com o ambiente,  e cada vez mais comparável a um órgão em formação com potencialidades variáveis (8). A perda ou a falta de uma parte do cérebro durante a fase de desenvolvimento não é comparável à perda da mesma parte depois que o desenvolvimento tenha se acabado completamente. (8)

Essas considerações têm particular relevo na avaliação das capacidades do anencéfalo.

 

Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencefálico, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento  que o anencefálico enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por definição,  de ter consciência  e provar sofrimentos (8,44)

Para superar as dificuldades legislativas atualmente presentes, evidenciaram-se três diferentes classificações do problema do anencefálico:

a)      Classificar a parte os sujeitos anencefálicos

A primeira posição põe em evidência o fato de que o anencefálico tem a particularidade de não possuir o córtex cerebral, de não ser dotado das estruturas anatômicas próprias que presidem as funções superiores. Tais funções são consideradas, por alguns, características da humanidade e esta grave mal formação significaria para o anencéfalo um status particular (31); Não teria sentido portanto, falar de “morte cerebral” mas dever-se-ia falar de “ ausência cerebral”. Ou seja, uma condição totalmente peculiar, segundo as intenções de quem a propõe, a qual deveria obter um reconhecimento legislativo apropriado. O anencefálico não é, portanto, um sujeito “brain dead” mas um caso particular de morte cerebral denominado “brain absence” (45, 46, 47, 90).

Um indivíduo nestas condições incapaz de pensamento e de sensibilidade não tem interesse algum a defender e, portanto não é titular de direitos e não precisa das tutelas aplicadas a qualquer outro sujeito (48)

Tal posição se presta a numerosas críticas, seja do ponto de vista médico como do ponto de vista moral. Ela é oriunda de um evidente intuito utilitaristico (3). Antes de mais nada vimos que a mal formação não é um fenômeno definido, mas  um “ continuum” de gravidade para o qual se deveria por limites convencionais. Isto criaria, com certeza, dificuldade de diagnóstico e possibilidade de erro (49, 52, 89), muito embora a possibilidade de erro não seja de per si  um elemento suficiente para proibir uma determinada prática médica.

Uma segunda objeção diz respeito à possibilidade de sofrimento, que não pode ser excluída baseada nas considerações neurofisiológicas às quais acenamos e baseada nos atuais conhecimentos (44,53).

A objeção de fundo, todavia, é que esses sujeitos são utilizados sem que para eles advenha um bem, aliás, com possível prejuízo, tendo como finalidade um benefício para outrem. Eles não têm condição de expressar um consentimento de alguma maneira e sua condição não é diferente daquela de muitos outros doentes em graves condições.

A posição apresentada permitiria separar a condição de alguns sujeitos particulares com a finalidade de torná-los doadores de órgãos baseado na avaliação de sua qualidade de vida. Está ausente um equilíbrio entre vantagem para um sujeito e desvantagem para o mesmo e para os outros, só existe um desequilíbrio entre desvantagem para um  indivíduo e vantagem para o  outro(36).

Aceitar esta posição significaria, além do mais, criar uma área de incerteza para a qual poderiam entrar numerosas outras condições, entre elas o estado vegetativo permanente (46). Este argumento, ou seja, a criação de um “slippery slope”, um declive escorregadio capaz de levar muito mais além das intenções originárias, é salientado por numerosos autores (3,31,36,48,51). Existe, ao contrário, a necessidade de definir o fenômeno da morte, através de uma série de regras válidas em todos os casos, que não permitam exceções para condições patológicas particulares. Também para a aceitação da doação de órgãos por parte dos cidadãos, uma política de clareza e essencialidade das regras é considerada por muitos autores mais promissora (27).

A definição de morte deve permanecer distinta da necessidade do transplante, mesmo se as necessidades e possibilidades dos transplantes devem constituir um estímulo para o aprofundamento científico e clínico. A opinião pública deve ter a certeza de que a morte é verificada com critérios objetivos e não equívocos e que tais critérios não são modificados pela necessidade ou desnecessidade de encontrar órgãos para o transplante.

É este um direito fundamental de cada um, antes ainda de ser um fundamento para uma sábia política do transplante.

b)       Rever o atual conceito de morte cerebral, introduzindo outros critérios de julgamento.

Uma segunda posição, mais radical e extensiva do que a anterior, é aquela que propõe o abandono do critério de morte de todo encéfalo, considerando suficiente a morte do córtex cerebral (54,55). Nesta definição de morte se dá, portanto a máxima importância para a ausência da autoconsciência e da possibilidade de relacionamento, típica do homem e menor importância às funções vegetativas, que não são consideradas características da humanidade (27, 35, 56, 57, 58, 60, 61).

Tratar-se-ia, portanto, de redefinir a morte cerebral trocando a necessidade da completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo com a suficiência da morte só do córtex cerebral e isto para todos os casos e não somente para o anencefálico. Sobre este problema, na realidade, o Comitê Nacional para a Bioética já expressou o próprio parecer, sustentando que “não se pode aprovar esta opinião (ou seja, definição de morte cortical) porque permanecendo íntegros os centros do paleoencéfalo (tronco), permanecem ativas as capacidades de regulação (central) homeoestáticas do organismo e a capacidade de realizar de modo integrado as funções vitais incluindo a respiração autônoma “. No caso particular do anencefálico a liceidade da retirada de órgãos é também justificada pela brevíssima expectativa de vida desses sujeitos (27). Segundo alguns autores a inevitabilidade da piora das condições clínicas do sujeito anencefálico e a iminência da morte justificaria a retirada dos órgãos “ ante-mortem” (85,86)

Esta posição atribui grande importância a integração neurológica das várias funções de maneira que mesmo com a presença da respiração e da circulação, mas com a ausência de uma integração superior, o sujeito é considerado falecido (62).

Esta argumentação é sujeita a numerosas críticas e, neste caso, é muitíssimo válido o risco de estender o julgamento de morte a sujeitos que não tenham destruição anatômica mas a incapacidade funcional do córtex cerebral. Um problema imenso se abriria e deste problema o anencefálico constituiria só uma pequena parte.

Arriscar-se-ia a autorização da retirada de órgãos de sujeitos viventes, baseada nas considerações relativas a sua integração neurológica e a sua expectativa de vida (pessoas próximas da morte) (27,89). Repare-se que, por absurdo, uma vez aceito o princípio de que é lícito interromper a vida de um indivíduo, mesmo se em particulares condições físicas, em prol de outrem, poderiam entrar nesta categoria numerosos sujeitos (pensemos nos condenados à pena capital), e, entre eles, até os mesmos sujeitos acometidos por doenças graves e na lista da espera de transplantes( 89).

A primeira posição apresentada constitui, como é evidente, uma tentativa de tipo jurídico para aplicar somente ao anencefálico o critério de morte cerebral como morte (ausência) somente do córtex e evitando enfrentar os problemas que a extensão desse critério a todos sujeitos inevitavelmente causaria. A avaliação dos problemas relativos à declaração de morte na presença de atividade do tronco cerebral extrapola a finalidade deste documento. Somente uma observação: à avaliação científica da morte cortical (avaliação que mesmo pelo que diz respeito ao problema do anencefálico fornece elementos inequívocos), deve ser associada também uma avaliação de tipo antropológico. A morte verificada somente pela falta de atividade do córtex cerebral, seja no adulto ou no recém-nascido anencefálico, contradiz, pela presença da respiração espontânea e dos reflexos dos nervos cranianos, a própria idéia de morte como nos foi transmitida há milênios.

Estes sujeitos não estão mortos, apesar de uma lei poder declará-los mortos, e não parecem mortos para qualquer pessoa que se aproxime do seu leito (36). Houve, talvez por provocação, quem perguntasse aos adeptos desta tese, se eles estariam prontos para enterrar estes indivíduos, baseando-se no fato de que os consideravam mortos (63). Seria provavelmente impossível aceitar esta posição por parte da humanidade senão a custo de um ceticismo generalizado sobre a avaliação da morte e sobre a inviolabilidade do sujeito humano vivente, muito embora sem esperança de vida, mesmo com a finalidade de se obter vantagem para outro indivíduo (46,64). Alguns autores (65) falaram também de iatrogenesis ética observando que, mesmo prescindindo do fato de que um raciocínio seja mais ou menos válido, caso ele seja sutil demais, com facilidade pode causar erros (87). O princípio moral não deve ser complexo ao ponto que somente poucas pessoas estejam em condições de entendê-lo.

c)       Utilizar os critérios atuais de morte cerebral. As dificuldades

Uma terceira posição é aquela que considera a utilização de critérios de morte cerebral atualmente em vigor e de esperar, portanto, o acontecer da morte cerebral total, antes de proceder ao explante  (66,67). Fica claro também que a hipotermia induzida antes da morte não pode ser aceita (44). Também esta atitude, todavia, que satisfaz os critérios de certeza e uniformidade da verificação da morte, não é isenta de críticas e dificuldades.

As dificuldades nascem, geralmente, da verificação da morte cerebral na infância e na primeira semana de vida, porque, nesta idade, os conhecimentos da fisiologia do SNC são ainda incompletos, em particular no caso da malformação com anencefalia (68).

As incertezas dizem respeito principalmente aos tempos de observação necessários para se ter a certeza da morte do encéfalo (tempos mais longos do que aqueles do adulto), e dizem respeito à maior dificuldade de avaliar os reflexos dos nervos cranianos. Tal dificuldade è, como falamos, maior ainda no anencefálico. Com relação a isto foi sugerido de avaliar como reflexo do tronco cerebral somente a presença da respiração espontânea, que de todas as atividades do tronco, è, com certeza, a mais importante, pelo menos enquanto necessária à vida (69,70,92). A ausência de respiração espontânea poderia ser elemento suficiente para avaliar, no neonato anencefálico a morte do tronco cerebral. Tal hipótese criaria uma espécie de sub-categoria constituída pelos anencefálicos, para os quais ficariam válidos critérios parcialmente diferentes daqueles requeridos para todos os outros casos.

Esta consideração contrasta com as observações anteriormente relatadas, mesmo se parece justificada pela presença de uma mal formação que acarreta particulares dificuldades de diagnóstico. Com relação à técnica necessária para verificar a ausência da respiração espontânea, não existe ainda acordo entre os estudiosos. Esta posição, todavia, embora com alguma particularidade, se situa no mesmo quadro de conceitos das legislações em vigor (56, 88, 94).

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

Âmago das legislações vigentes sobre a disciplina dos transplantes de cadáver é a rigorosa verificação da assim chamada “dead donor rule”, ou seja, o preceito que prescreve que em todos os casos o doador deva estar morto com certeza antes da retirada do órgão.

Esta regra, que a um primeiro exame pode parecer de óbvia banalidade, é na realidade colocada em discussão por numerosas propostas. Numa perspectiva estritamente utilitarista, por exemplo, poderia ser julgado lícito, para a consecução de um bem, neste caso a saúde ou a vida de uma outra pessoa,retirar um órgão de um doador sem o consentimento dele, caso ele não venha a sofrer por isto e nem sejam violados os seus interesses.

É o caso do anencefálico cuja morte é considerada iminente e inevitável e que não é considerado capaz de algum contato com o ambiente e, portanto incapaz de experimentar algum tipo de sofrimento. O anencefálico por estes motivos não é considerado portador de interesses a serem defendidos e que possam, portanto ser violados. Juntamente com este caso podem ser propostos ou pensados numerosos outros casos (doentes terminais, doentes em estado vegetativo persistente, acometidos de demência grave, pacientes que expressem o desejo de morrer, etc) que bem explicitam o conceito do “slippery slope” declive escorregadio, relatado por vários autores.

Como se pode constatar, as posições apresentadas são bem diferentes entre elas, mesmo considerando as perspectivas futuras, hoje previsíveis, e derivam da impostação cultural de matriz utilitarista, de um lado, e de âmbito personalista do outro.

Fica claro antes de mais nada que a morte é um processo à parte e não pode existir uma morte para o transplante e uma morte em si.

A definição da morte não pode  ser qualquer coisa que nós queremos que seja, mas existe independentemente das nossas finalidades (3). A morte não pode ser definida em sentido utilitarista de maneira a tornar máximo o bem que dela poderia eventualmente derivar, em prol de outras pessoas (3,84). A verificação poderá acontecer com técnicas diferentes dependendo das circunstâncias e do tratamento que está sendo dado (70). Mas esta verificação deverá dar um resultado válido de per si e independentemente da possibilidade ao menos de uma doação de órgãos. A própria necessidade de transplantes deve estimular a pesquisa neste campo, mas não se colocar como fonte da definição da morte.

Este princípio deve valer também para o anencefálico, mesmo se neste caso, se deverá lançar mão de meios de diagnóstico de aplicação possível e em condição de dar um resultado de certeza.

Certamente se trata de um caso limite, mas não por isto estamos autorizados a estabelecer para estes sujeitos uma categoria particular, biológica ou jurídica quer ela seja.

O anencefálico tem uma expectativa de vida variável, mas sem dúvida breve, mesmo com as dificuldades inerentes a este julgamento. A tudo isso se acrescenta que a malformação, da qual é portador, impede uma sua recuperação e parece hoje, e provavelmente isto o será para sempre, sem uma terapia válida.

É uma situação, porém, que, por vários aspectos particulares, embora não para todos contemporaneamente, é comum a outras categorias de doente, embora com diferente intensidade. Considerem-se por exemplo os doentes incuráveis, para os quais já foi esgotada toda possibilidade terapêutica ou os doentes que perderam o uso das funções intelectuais ou o contato com o ambiente.

Como não é considerado lícito abreviar a existência desses sujeitos, nem tampouco provocar a morte deles, por análogas razões não se pode propor que nos comportemos desse modo com relação ao recém-nascido anencefálico (37,71,72). Nem parece importante a duração da vida a ser sacrificada como se uma vida breve fosse mais sacrificável para vantagem de outrem com expectativa de vida mais longa; com relação a isto, existem pessoas que observaram que se os sujeitos anencefálicos não vivessem tão pouco hoje não estariam no centro deste debate (36). Numa perspectiva que considera a pessoa humana como tal, prescindindo, portanto, de seu estado de saúde e de desenvolvimento, como valor central de uma ética para as ciências biológicas, parece proponível somente a determinação de tornar disponível para a doação de órgãos somente o corpo daqueles sujeitos dos quais tenha sido verificada com certeza, a morte.

Com relação ao recém-nascido anencefálico isto significa que, na situação atual dos conhecimentos, é provavelmente prematuro estabelecer critérios válidos e verificáveis para determinar a morte deles com critérios neurológicos (27, 73, 74, 75, 76, 77). Um suplemento de estudo se faz indispensável (68).

A necessidade de uma moratória, no uso dos sujeitos anencefálicos como doadores de órgãos, foi sustentada por diferentes autores a partir do fato de que são incompletos os conhecimentos atuais sobre numerosos pontos, fonte de controvérsia bioética. O preceito de que uma boa ética nasce de bons pressupostos reais foi citado relembrando o quanto sejam ainda discutidos numerosos problemas teóricos e práticos no campo do tratamento dos sujeitos anencefálicos (3).

Esta posição de espera parece naturalmente justificada pelo menos até o dia em que as diferentes posições sobre o problema não alcancem, baseado em novos elementos de julgamento, uma mais razoável possibilidade de acordo. Nesta altura, devemos sublinhar pelo menos uma contradição e um problema complexo.

A contradição seria aquela das legislações que permitissem a interrupção da gravidez em caso de graves mal formações mesmo nas fases adiantadas da gestação e ao mesmo tempo impedissem a retirada de órgãos de tais sujeitos, uma vez que tivessem sido voluntariamente paridos.

É uma contradição evidente já assinalada por parte de quem sustenta a posição da liceidade da retirada de órgãos do anencéfalo independentemente de exames neurológicos, (condição de brain absence), mas que pode ser facilmente lida também ao contrário, sustentando a ilicitude da interrupção da gravidez que priva                                                     da tutela da lei sujeitos que seriam de outra forma, amparados pela tutela legal.

Embora as duas condições, antes e depois do nascimento, tenham diferentes significados biológico e jurídico, parece claro que as duas atitudes são bem dificilmente conciliáveis.

Juntamente com isto vai a sugestão de encorajar a continuação da gravidez de fetos mal formados também na perspectiva altamente humanitária da eventual doação de órgãos depois de sua morte (78). O problema sucessivo diz respeito à realização concreta da retirada de órgãos de doador anencefálico.

No que diz respeito ao problema da verificação da morte cerebral do anencefálico para fins de transplante, viu-se que esses sujeitos não têm lesões neurológicas evolutivas e que o comprometimento neurológico não aparece entre as causas de morte mais importantes. Em outros termos o feto anencefálico embora portador de um mal formação neurológica gravíssima não manifesta tendência à evolução da mesma, e é improvável que possa encontrar-se em breve numa situação de morte cerebral, visto que a morte acontece na maioria dos casos por causas respiratórias (3,79). Isto significa que para tornar disponíveis os órgãos para o transplante (e isto pode acontecer somente se foi mantida uma boa perfusão, portanto uma boa funcionalidade cardio-respiratória até o momento da retirada) o feto anencefálico deve ser submetido a tratamento de terapia intensiva até o momento em que se verifique a morte cerebral.

Pressupostos do tratamento são que a morte cerebral seja iminente nestas condições, que ela possa ser diagnosticada com certeza comparável à de outros potenciais doadores  e que o tratamento prestado, no exclusivo interesse de uma terceira pessoa e não do recém-nascido, sejam eticamente válidos (27). O problema consiste justamente nesta situação: encontramo-nos frente ao prolongamento artificial da vida por meios excepcionais, numa condição   que não apresenta possibilidade alguma de recuperação, por motivos até anatômicos, e isto com a finalidade de preservar os órgãos para um sucessivo transplante. Descrito nestes termos aparece evidente o risco da insistência terapêutica no sentido mais pleno e do uso do feto anencefálico somente como meio coloczdo a serviço de um benefício alheio.

Na avaliação ética dessa perspectiva devem, todavia, ser levados em conta também outros aspectos. Em primeiro lugar uma prática análoga é realizada também em outros casos:

-no período de observação no doador adulto (80). Como a morte remonta ao início do  período de observação, não se trata evidentemente de uma insistência terapêutica sobre um sujeito vivo, mas de um particular procedimento ao qual é submetido o sujeito já falecido com a finalidade de preservar seus órgãos, mesmo se este julgamento pode ser expressado somente a posteriori, quando os pressupostos da morte cerebral tenham sido verificados.

No anencéfalo o tratamento intensivo pelo contrário, inicia já no momento do nascimento ou no início da insuficiência respiratória, na espera da verificabilidade da morte cerebral, antes, portanto, do momento da morte, mesmo retrospectivamente avaliado.

-no caso de mulheres grávidas com morte cerebral, com a finalidade de permitir ao feto de alcançar uma idade gestacional que lhe permita a sobrevivência (81). Também neste caso específico não se pode falar de “Insistência terapêutica” porque o tratamento é evidentemente dirigido para a sobrevivência do feto e não para a sobrevivência da mãe, já falecida.

-no caso de recém-nascidos em graves condições, nas quais não há possibilidade de recuperação, com a finalidade simplesmente humana de permitir aos pais, que estão viajando, de alcançarem os filhos (37).

O uso de terapias extraordinárias com a finalidade de preservar os órgãos do recém-nascido anencefálico é considerado como caso de uso não rotineiro da terapia intensiva, em caso de morte inevitável e iminente de um paciente permanentemente privado de consciência.

Seguramente deve-se estabelecer um limite à terapia intensiva, ultrapassado o qual, esta terapia deve ser interrompida, e,  por  outro lado, sobrevém as condições que as normas vigentes fazem coincidir com a morte assim chamada cerebral (para o sentido exato a ser dado a essa expressão remetemos ao Glossário colocado em apêndice a este documento).

É evidente que a excepcionalidade da condição do sujeito anencefálico  não isenta o médico da obrigação de prestar a sua assistência de reanimação favorecida pelas condições cardio-circulatórias e respiratórias normalmente satisfatórias.Esta obrigação assistencial se concilia plenamente com a eventual possibilidade de doação de órgãos, que é tornada viável justamente graças a este suporte terapêutico, da mesma forma como acontece com o menor e com o adulto que se encontrem na condição de poder doar órgãos para fins de transplante. Nestes casos, deveriam ser respeitados uma série de elementos já analisados pelo CNB no citado documento sobre os transplantes infantis, como em particular a validade do transplante proposto, a seriedade da equipe e em particular o consentimento dos pais.

Este é um aspecto debatido e chamado em causa para sustentar as mais disparatadas posições. Com certeza os pais que se encontrem em tal situação, seja que para eles se conceda a faculdade de interromper a gravidez, seja que isto não seja possível, estão no centro de tensões e dificuldades gravíssimas. O fato de saber que uma tragédia pessoal oferece a possibilidade de aliviar o sofrimento de outros doentes, pode contribuir para dar um sentido a um acontecimento que por muitos aspectos pode ser gravemente traumático. Nesse sentido tornar, através de uma prática eticamente correta, disponíveis os órgãos para o transplante, é certamente uma grande ajuda também para os pais, que vislumbram assim uma saída, embora mínima, para o seu compromisso e o seu sofrimento; por este motivo a sua participação e o seu consentimento para todos os procedimentos propostos adquire uma importância determinante.

Em alguns casos, foram os mesmos pais que pediram com insistência a possibilidade de um transplante e foi também pensada a possibilidade de pressões por parte dos pais (27,44).

Com relação às dificuldades que o diagnóstico de anencefalia pode criar não somente para os pais mas também para o médico que ocasionalmente entre em contacto com eles, consulte (82). Tais dificuldades justificam uma adequada intervenção de caráter psicológico que, geralmente é prestada em centros especializados, mas que seria de grande valia bioética institucionalizar definitivamente.

O Council on Ethical and Judicial Affairs da American Medical Association recentemente modificou  sua posição com relação ao problema dos recém-nascidos anencefálicos como doadores de órgãos (99). São relatados sumariamente os elementos de julgamento que modificaram a posição anterior, de 1988, na qual a retirada de órgãos do doador anencefálico tinha sido considerada aceitável só depois da morte do próprio doador, verificada com critérios cardio-circulatórios e respiratórios e neurológicos (100):

Anencefalia: embora o aspecto externo do anencefálico (funcionalidade dos órgãos viscerais, reflexo de sucção, de afastamento dos estímulos doloríficos, movimentos dos olhos e dos membros, emissão de sons, expressões do rosto) possam dar a impressão de um certo grau de consciência, na realidade não existe nenhuma.

Pais: o transplante de anencefálico traz benefícios não só ao receptor mas também aos pais, que vislumbram uma justificação, embora parcial, para a experiência vivida.

Resposta às objeções mais comuns no que diz respeito a retirada de órgãos de anencéfalo:

a)       É infringida a regra do “dead donor rule”, que veta a retirada de órgãos vitais de sujeitos vivos.

O anencefálico enquanto não teve não tem e nem terá consciência, não tem algum interesse em defender a vida. Se a existência é abreviada não fica nenhuma marca consciente e não se tem melhora ou piora do seu status dependendo da duração da vida.

A exceção à regra não põe em alerta a coletividade ou os outros potenciais doadores: com efeito, eles não podem sentir-se ameaçados por tal decisão, porquanto nunca se encontrarão na situação do anencefálico.

Esta decisão não altera o respeito pela vida e as considerações do seu valor. Como o anencefálico não tem nenhum interesse em ver preservada a sua existência é aceita a possibilidade dos pais pedirem a interrupção do tratamento sem que isto reduza o respeito pela vida.

b)       problemas relativos à precisão do diagnóstico

O documento confirma que o diagnóstico errado de anencefalia é possível principalmente se o diagnóstico não é realizado em estruturas especializadas ou por uma pessoa especificamente capacitada. Propõe-se de superar tais problemas:

-Aplicando os critérios de diagnóstico para anencefalia (101).

Tais critérios são:

– ausência de uma larga porção óssea da calota craniana;

– ausência do escalpo acima do defeito ósseo;

– presença de tecido fibro-hemorrágico exposto por causa do defeito craniano;

– ausência de hemisférios cerebrais que podem ser reconhecíveis;

– chamando para confirmar o diagnóstico duas pessoas com particular competência neste campo, não ligados à equipe do centro de transplante. No caso da não certeza do diagnóstico, a retirada dos órgãos seja proibida.

c)        Argumentações relativas ao slippery slope argument (argumento do declive escorregadio) (a decisão abriria as portas a futuros abusos em detrimento de outras categorias de doentes).

A exceção á regra não poderia prejudicar outras categorias (doentes em estado vegetativo persistente, grave dano neurológico, idosos com demência). Deve-se demonstrar que tais perigos existem não somente ter medo da possibilidade. Este risco não é real porque os recém-nascidos anencefálicos são uma categoria totalmente particular, sem história de consciência e nenhuma possibilidade de adquiri-la e isto diferentemente de todas as outras categorias lembradas.

d)       Número de transplantes realizáveis

Muitas críticas evidenciaram que a retirada do  doador anencefálico influiria de maneira limitadíssima sobre o problema dos transplantes infantis. Na realidade as técnicas de transplantes evoluem, permitindo o uso de órgãos em condições diferentes com relação ao passado e além disto cada doador poderia fornecer quatro órgãos vitais (dois rins, coração e fígado). Ainda que existissem somente 20 doadores por ano, (nos EUA), como alguns previram, tratar-se-ia sempre de uma vantagem em termos de possibilidade de sobrevivência para outras tantas crianças.

São estas, no momento, as problemáticas que exigem um atento debate com a finalidade de formular um julgamento sobre a liceidade de retirada de órgãos de doador anencefálico.

Portanto, as argumentações do Council on Ethical and Judicial Affairs da American Medical Association aparecem como a tentativa – não aceitável – de justificar a declaração de morte para pessoas ainda viventes com o fim de favorecer a retirada e o sucessivo transplante. O anencefálico é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade.

 

A supressão de um ser vivente não é justificável mesmo quando proposta para salvar outros seres de uma morte certa.

1) KANTROWITZ ª, HALLER J.D., HOOS H. et al.,

transplantation of the heart in an infant and in an adult,

<<Am. J. Cardiol. >> , 22:782-790, 1968

2) CAPLAN A.L., Ethical  issues in the use of anencephalic infants as a source of organs and tissues for transplantation, << Transpl. Proc.>>, vol. XX, n. 4 (Suppl.5), 42-49, 1988

3) FOST N., Organs from anencephalic infants: an idea whose time has not yet come,<<Hasting Center Rep.>>,October/November, 5-10, 1988

4) LEMIRE R.J., BECKWITH J.B.,WAR KANY J., Anencephaly, Raven Press, New York, 1978.

5) CHAURASIA B.D, Calvarial defect in human anencephaly, <<Teratology>>, 29, 165-172, 1984.

6) MCGILLIVRAY B.C., Anencephaly: the potential for survival, <<Transpl. Proc.>>, Vol. XX n.4(Suppl. 5).aug., 12-16,1988

&) BRACKBILL Y., The role of the cortex in orienting:

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