História do cisma bizantino

Alguns estudiosos do passado e a própria opinião popular sustentam que o Cisma Bizantino greco-eslavo (causando o nascimento da atual Comunhão Oriental Ortodoxa) foi consumado nos tempos do nos dias do Patriarca Fócio de Constantinopla (858-886). Ainda outros pensam que o cisma entre Roma e Bizâncio quando a “Rainha do Bósforo” (n.t.: Bizâncio, Constantinopla) viu os Cardeais Romanos e o Patriarca Miguel Cerulário empenhados em mútua excomunhão, no ano de 1054.

Realmente, foi no fim do século XIII que a Igreja Bizantina Grega (constituída pelos Patriarcas de  Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém) junto com suas desdobradas Igrejas eslavas nos Bálcãs se encontrariam separadas da comunhão plena com a Sé de Pedro. Até hoje as Igrejas Ortodoxas Orientais (como são comumente conhecidas), consistentes em torno de 16 igrejas nacionais, são as herdeiras do cisma mais trágico jamais ocorrido na História da Igreja Católica. A contínua separação dessas Igrejas Orientais da unidade católica nunca cessou de ser deplorada pelos Romanos Pontífices, sempre conscientes da oração de Nosso Senhor a Seu Pai Celeste para que todos os Seus professos seguidores fossem “um, em Nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste” (Jo 17,21).

Do século IV até o VIII o Cristianismo Oriental foi inundado por cismas em larga escala, causados pela disseminação de várias heresias como o arianismo, o nestorianismo, o monofisismo, o monotelismo e o iconoclasmo. Os primeiros sete Concílios Ecumênicos (o primeiro foi em Nicéia, no ano de 325; o sétimo em Constantinopla, em 787) lutaram para preservar a ortodoxia da fé cristã contra os ensinos heréticos que distorceram o ensinamento apostólica acerca da Trindade, da Pessoa de Cristo, e das conseqüências salvíficas da Encarnação. O nestorianismo espalhou-se entre os cristãos da Síria Oriental e Pérsia (agora Irã e Iraque), e foi se expandindo até a Ásia Central, Índia e China. Se os nestorianos rejeitaram o Concílio de Éfeso (em 431), os monofisitas rejeitaram o Concílio de Calcedônia (em 451). O monofisismo espalhou-se entre os sírios ocidentais (jacobitas), coptas do Egito, etíopes e armênios (estes últimos constituíram a primeira nação cristã!). É interessante observar que cada heresia que, em larga escala, retalhava a unidade da Igreja no Oriente teve o apoio de algumas centenas de Bispos e seus concílios. Até hoje os poucos nestorianos existentes ainda julgam-se “ortodoxos” como fazem também numerosos monofisitas que se chamam a si mesmos “ortodoxos orientais”.

Não deveríamos nos esquecer que o heresiarca Nestório foi Bispo de Constantinopla. Sua condenação no Concílio de Éfeso (em 431) infelizmente serviu apenas para espalhar sua heresia entre as Igrejas sírias e persas. Mais tarde, a mesma Sé de Constantinopla, buscando supremacia no Oriente sobre os outros patriarcados, seria detido por hereges Patriarcas monofisitas, monotelitas e iconoclastas, apoiados pelos Imperadores Bizantinos que perseguiram violentamente os fiéis católicos. Como calculou um escritor, dos cinco séculos entre a ascensão do Imperador Constantino Magno ao trono imperial e o VII Concílio Ecumênico (Concílio Ecumênico de Constantinopla III, em 787), mais de duzentos anos se passaram com a Sé Imperial de Constantinopla separada de Roma. A despeito dos grandes cismas os quais viram numerosos grupos de cristãos orientais partirem da ortodoxia católica, houve Bispos orientais que permaneceram em comunhão com a Sé de Pedro, “cabeça de todas as Igrejas de Deus”, o que representou a contínua existência da “Igreja una, santa, católica e apostólica” afirmada pelo Credo Niceno-Constantinopolitano e afirmado pelo II Concílio Ecumênico em 381 (Concílio Ecumênico de Constantinopla I). No primeiro milênio da História da Igreja o critério de catolicidade e ortodoxia na fé foi sempre a concordância dogmática com o Bispo de Roma, o Sucessor do Príncipe dos Apóstolos.

Alguém deve lembrar-se do problema clássico de interferência nos negócios internos da Igreja com os Imperadores Bizantinos apoiando a heresia e buscando modificar ou comprometer a Fé Ortodoxa da grande comunhão entre as Igrejas Ocidental e Oriental, chamada “A Igreja Católica”. A manutenção do controle imperial da Igreja seria um fator constante em todas as negociações para a reunião das Igrejas Bizantinas Greco-eslavas com Roma, que teriam lugar no período medieval (séculos XI a XV). Uma ideologia romana oriental (grega bizantina) inicialmente desenvolvida onde o Imperador fosse considerado “outro Cristo”, o primeiro personagem da Cristandade, exaltado de fato acima de todos os Patriarcas e Concílios. Ele era o guardião e protetor do Império e da Fé Ortodoxa, nenhum dos quais poderia existir sem o outro. Como um número razoável de historiadores tem notado, ninguém poderá entender a história do Cisma Bizantino Greco-eslavo se não entender também a tradição bizantina dos direitos e deveres do Imperador em relação à Igreja e a profunda repugnância que seria sentida pelos bizantinos no emergir no Ocidente de um Império Franco de “bárbaros” estrangeiros latinos, o que soava incrivelmente agressivo.

A regra seguida pelos Imperadores Bizantinos durante a famosa controvérsia fociana (século IX) é particularmente ilustrativa, especialmente de como eles não tiveram escrúpulo em depor, ao seu desejo, tanto o Patriarca Inácio quanto seu sucessor, Patriarca Fócio. Com a grande heresia iconoclasta colocada de lado pelo “Triunfo da Ortodoxia” no ano de 843 e a união com Roma restaurada, a paz interna da Igreja Bizantina Grega seria novamente perturbada pelo violento conflito entre os apoiadores do erudito Patriarca Fócio e os do santo Patriarca Inácio. No inacreditavelmente complexo assunto da Crise Fociana, iniciada em 858 quando Fócio substituiu Inácio no trono da Sé de Constantinopla (com o suporte do Imperador Miguel), os seguidores de Inácio apelaram a Roma declarando Fócio um usurpador e culpado de vários crimes contra eles. Com os missionários latinos e gregos disputando entre si se os búlgaros, recentemente convertidos, deveriam estar sob a jurisdição de Roma ou Constantinopla, o Patriarca Fócio excedeu-se no ataque aos missionários francos, acusando-os de “impiedades” litúrgicas e disciplinares (por exemplo, jejum aos sábados, consumo de produtos diários na Quaresma, imposição do celibato clerical, não permissão aos sacerdotes para conferir o sacramento da Crisma etc). Pior ainda, “eles tinham ultrapassado os limites da maldade e falsificado o Credo ao introduzir o ‘Filioque’”.

Em outros escritos, ele denunciou a doutrina apreendida por séculos no Ocidente que o Espírito Santo também procede “do Filho” (“Filioque”) como “heresia” e “blasfêmia.” Em 867, Fócio convocou um sínodo declarando o Papa Nicolau I (um dos maiores Pontífices e um dos mais eloqüentes defensores do Primado Romano) deposto e excomungado! Roma reagiu com seu próprio sínodo condenando Fócio por ter tido a audácia de julgar um Papa.

Dois concílios que tiveram lugar em Constantinopla (o VIII Concílio Ecumênico em 869, que condenou e depôs Fócio do Patriarcado, e o Concílio de 879-880, que reabilitou Fócio com o consentimento do Papa João VIII, que pretendeu restaurar a paz e a unidade entre os bizantinos). Modernas pesquisas históricas mostram que Fócio (a despeito de suas querelas litúrgicas e doutrinárias com os francos latinos na Bulgária) morreu em comunhão com a Santa Sé. Apesar de sua disputa pessoal com o Papa Nicoulau I (acusando-o de interferência desnecessária nos negócios internos da Igreja Bizantina), ele nunca rejeitou o primado de jurisdição universal de Roma sobre toda a Igreja, Oriental e Ocidente – um primado que foi tão vigorosamente descrito nas cartas dos Papas Nicolau I, Adriano II, Estevão V e João VIII. O mesmo primado petrino de Roma na Igreja Universal foi de maneira similar reconhecido pelo Imperador Bizantino Basílio, que estava presente nos Concílios de 869 e 879-880 (apesar de desejar manter seu controle administrativo dos negócios eclesiásticos no Oriente e o controle imperial sobre a Bulgária). A despeito do Cisma Bizantino Greco-eslavo não ter se concretizado com o Patriarca Fócio ou mais tarde com o Patriarca Miguel Cerulário em 1054, os ataques de Fócio às práticas litúrgicas e à disciplina latinas e, mais grave, sua doutrina negando que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho foram largamente pregadas entre os bizantinos. A “heresia latina” do Filioque constituiria o mais importante tema dogmático usado para justificar o crescente estranhamento entre latinos e gregos, (e conseqüentemente) as várias rupturas de comunhão, e por fim, o cisma formal com Roma que certamente desenvolveu-se depois do atroz saque de Constantinopla pelos venezianos em 1204 e da rejeição violenta do Concílio de reunião em Lião, no ano de 1274. Antes mesmo, nesse século, o canonista Demetrios Chromantianos foi exceção à opinião do renomado canonista Theodoro Balsamon, o qual fixou que os latinos não poderiam ser admitidos à Eucaristia nas igrejas gregas. Chromantianos argüiu que os latinos nunca haviam sido proscritos por um Concílio, “nem foram taxados como hereges pela Igreja”. Ainda quando um concílio bizantino, em 1285, formalmente rejeitou a doutrina do Filioque, dada pelo Concílio de Lião (de reunião com os orientais), a posição desses Prelados bizantinos que recusavam ter comunhão com os latinos permanecia equívoca desde que todos eram cientes (e isso nos séculos XIV e XV) que nenhum Concílio Ecumênico tinha condenado os latinos como hereges ou cismáticos.

Como notado acima, muitos historiadores do passado analisaram equivocadamente o Patriarca Fócio, do século IX, e os eventos de 1054 com as mútuas excomunhões entre o Patriarca Miguel Cerulário e o Cardeal Humberto, como causadores do cisma formal, como hoje testemunhamos, com a Sé de Pedro. A verdade é muito mais complexa, segundo escritores modernos observam ao discutir os esforços unionistas dos Imperadores e o Patriarca João Beccus e outros Prelados orientais que permaneceram em união com os latinos durante o século XIII. Entretanto, o Patriarca Miguel Cerulário contribuiu para o declínio das relações entre Roma e Constantinopla por acentuar ainda outra “heresia latina”: a celebração do Santo Sacrifício com pão não-levedado (ázimo)! Ademais, expôs ao ridículo as práticas litúrgicas latinas (sacerdotes latinos raspavam suas barbas, latinos comiam carne nas quartas-feiras, seus Bispos usavam anéis e lutavam em guerras a cavalo, latinos rejeitavam o culto das relíquias[1], etc). Tudo isso excitou as paixões das massas ultrajadas contra os ímpios latinos.

O Patriarca Bizantino tinha, originalmente, causado um problema pelo fechamento de igrejas latinas em Constantinopla, levando o Papa Leão IX a escrever uma carta revoltada (com uma exposição magistral do primado romano) e a enviar três Legados Papais a Constantinopla para confirmar os direitos da Sé Romana. Basta dizer que o Cardeal Humberto dificilmente foi o melhor diplomata no trato com os bizantinos e (apesar de suas melhores intenções) cometeu um erro gravemente estúpido ao cair nos mesmos equívocos que os gregos, dando muita importância a matérias de disciplina e liturgia, e, lamentavelmente, trazendo a doutrina do Filioque à frente em seu documento de excomunhão de Cerulário e seu partido. Além disso, o documento continua algumas acusações errôneas contra os bizantinos, inclusive de sua omissão do Filioque no Credo! Tanto Humberto quando Cerulário tiveram muito cuidado de não incluir suas respectivas Igrejas em excomunhões essencialmente pessoais, mas, por tudo o que já ocorrera, aconteceu uma lamentável ruptura entre o Patriarcado de Constantinopla e a Igreja de Roma, que se agravaria com os demais Patriarcados orientais seguindo a liderança de Constantinopla, ao condenar as diferenças teológicas, disciplinares e litúrgicas que encontraram entre os latinos. Nos séculos que se seguiriam, o Filioque e o uso do pão ázimo para a Eucaristia seriam especialmente classificados pelos bizantinos como heresias, para justificar sua quebra de comunhão com os latinos e, conseqüentemente, com a Sé de Pedro. Todavia, por um momento após os tristes eventos de 1054, como um historiador observou, “[e]stá claro que no encerramento do século XI, nem em Roma nem em Constantinopla havia círculos responsáveis que acreditavam haver um cisma entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente.”

As relações entre a maioria dos latinos e greco-bizantinos permaneceram amigáveis; não havia consciência de que a unidade da fé se rompera por querelas teológicas já ocorridas. É uma das grandes ironias da história que as Cruzadas, cuja intenção era defender companheiros cristãos contra as agressões muçulmanas, tivessem o efeito de piorar as relações entre os latinos e os bizantinos até o ponto de consolidar as tendências cismáticas iniciadas pelos eventos de 1054. As Cruzadas, que, com seus grandes exércitos, ingovernáveis e dados à pilhagem, opuseram-se aos bizantinos e, quando da Quarta Cruzada, saquearam a cidade de Constantinopla em 1204 (para o horror do Papa Inocêncio III), deixaram uma indelével impressão nas mentalidades bizantinas, o que é sentido até os dias de hoje entre os dias de hoje entre aqueles monges do Monte Athos contrários a qualquer abertura ecumênica aos católicos.

Quando os cruzados instalaram seu Patriarca eleito para a Sé de Antioquia, em 1100, com Constantinopla e os gregos apoiando um Patriarca rival no exílio, um cisma foi criado entre latinos e gregos, o qual se multiplicaria, como hierarquias rivais resultantes do anterior estabelecimento de um Império Latino no Oriente.

Como o Fr. Aidan Nichols, OP, escreveu a respeito dos cruzados terem estabelecido um Império Latino Oriental: “O cisma entre Roma e o Oriente ortodoxo foi o filho das cruzadas. Embora nunca ratificado por um Concílio, foi formalizado pelo surgimento de Hierarcas latinos e gregos competindo por três das quatro Sés Patriarcais do Oriente. O evento-chave foi o saque de Constantinopla, em 1204. Este foi uma bofetada em toda a mística de Bizâncio como a cidade escolhida por Deus, uma mística integrada à identidade cultural e religiosa do helenismo cristão.”

Em 1254, o Papa Inocêncio IV anunciou sua preocupação sobre o “cisma da România, isto é, da Igreja Grega, a qual, em nosso tempo, apenas alguns anos atrás, arrogante e imprudentemente, apartou-se e removeu-se a si mesma do seio de sua Mãe.” A falência das negociações em um Concílio concluído em Nymphaeum, em 1234, resultou no reconhecimento de que havia um cisma.

Durante os séculos XI ao XV, contudo, houve esforços para restaurar a plena comunhão entre Roma e Constantinopla (e seus irmãs, as Igrejas Eslavas, que foram atraídas pelo Patriarcado Bizantino à separação de Roma). Um número de importantes teólogos bizantinos como o Patriarca João Beccus, do século XIII, e o leigo Demetrios Kydones (um grande admirador de Santo Tomás de Aquino, cujas obras traduziu para um elegante grego), repudiaram o cisma e trabalharam para a união das Igrejas. Tais unionistas prepararam o caminho para os Concílios de reunião em Lião (1274) e Florença (1439), os quais falharam em formalizar uma definitiva união corpórea da Igreja Grega Bizantina com Roma, mas aplainaram a estrada para uma reunificação de quase todos as Igrejas de rito bizantino que, atualmente, desfrutam da comunhão com a Santa Sé.

Sempre houve aspectos irracionais e incoerentes acerca do cisma bizantino greco-eslavo em relação a Roma. O acadêmico Fr. Aidan Nichols, OP, notou a falta de rejeição consciente da doutrina católica por muitos ortodoxos orientais nos séculos passados: “A despeito do descosturar da União de Florença no curso do século XV, não se deve de nenhuma maneira supor que uma parede de ferro ergueu-se a dividir as comunidades separadas católica e ortodoxo no período subseqüente. De 1600 a 1700, em particular, tanto os crentes educados quanto os mais simples agiram, em números consideráveis, como se o cisma nunca tivesse existido.” (Rome and the Eastern Churches, pp. 240–245; T&T Clark, Edinburgh, 1992)

Muitos teólogos católicos têm enfatizado, semelhantemente, o importante fato de que vários ortodoxos orientais hoje não são formalmente cismáticos ou hereges, mas, particularmente, dissidentes em boa-fé, ansiosos de uma reunião com a Sé Apostólica de Roma.

Do século XII em diante, havia entre os bizantinos nobres e moderados espíritos que desejavam o fim de toda a atividade cismática e procuravam a purificação das memórias em preparação para um “diálogo de caridade”, que cessaria em uma comum celebração da Eucaristia pelo Papa e os Patriarcas, dando testemunho da oração de Cristo de que seus seguidores fossem “um” em fé, culto e governo. A eclesiologia do Concílio Vaticano II (1962-1965), explicando o primado e a colegialidade de acordo com a Tradição Apostólica, forneceu nova inspiração para o fim de um cisma realmente trágico, que tem servido unicamente para continuar a ferir a unidade daquela Una e Santa Igreja, a qual Cristo, o Senhor, achou por bem estabelecer sobre a Rocha de Pedro.


[1] O que não é verdade, apenas que o culto das relíquias é mais acentuado no Oriente, ou o era à época do Patriarca Cerulário.

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