Noções sobre liberdade e tolerância no Estado moderno, o Concílio Vaticano II e a liberdade religiosa

O Estado Moderno começa a delinear-se com os filósofos racionalistas. Penetrando as idéias igualitárias e liberais na mente dos governantes, pela ação dos inimigos da Igreja, uma primeira providência para destruir a ordem social cristã foi a redescoberta de alguns contra-valores, já tempos felizmente sepultados, presentes na cultura greco-romana, por ocasião da Renascença.

Com efeito, apresentou-se como pretexto para o Renascimento a revalorização da cultura clássica. Note-se que o motivo é descaradamente mentiroso. Muitos de boa-fé, concedemos, estavam realmente interessados na promoção das artes. Todavia, a cultura clássica nunca esteve morta na Idade Média, como falsamente alardeavam os renascentistas. Pelo contrário, a filosofia, a arte, a literatura, o Direito, a estética do Medievo foram moldadas no classicismo – iluminado pela fé cristã. De Roma e da Grécia mantiveram os bárbaros invasores costumes e instituições, e os medievais não cessaram de promovê-los.

O que, realmente, da Hélade e da România, não permaneceu foram certos institutos e hábitos incoerentes em face do Cristianismo que triunfou e sabiamente governou a Idade Média. Podemos dizer que os valores positivos greco-romanos permaneceram, ao passo em que os negativos foram logicamente postos de lado, por sua evidente incompatibilidade com a doutrina de Cristo.

Em nome da ressurreição da cultura clássica – que, vimos, não morreu na Idade Média, o que torna absurdo qualquer “renascimento” (só renasce quem morreu) –, a Renascença fez voltar, isso, os contra-valores. O que era bom no classicismo não pereceu no Medievo, ao contrário do que alegam os renascentistas. Tal perecimento inexistente foi criado por mentes perversas para, sob esta mentirosa alegação, revitalizar o que de ruim há tinha sido morto pelo Cristianismo. Percebe-se, nisso, a “coincidência” histórica: no Renascimento apareceram idéias típicas da Antigüidade, como o despotismo dos monarcas, o centralismo estatal, a escravidão, o racismo, o nacionalismo exagerado, o mercantilismo. Todos esses pontos da cultura clássica, tremendamente imorais, negativos, não existiam na Idade Média, justamente pela ação da Igreja, que soube separar o bem do mau dentre as manifestações da Antigüidade.[1] No período medieval, os valores clássicos[2] positivos foram preservados. A partir da Renascença somam-se a estes os negativos, trazidos pelo antropocentrismo e pelo nascente racionalismo.

Da Renascença ao absolutismo monárquico foi um passo. Idéia clássica, ausente na Idade Média – essencialmente descentralizadora e fiel à subsidiariedade, haja vista o sistema o feudal –, o poder absoluto dos reis é um pensamento que obviamente foi gerado pela intelectualidade renascentista. E quando, descontentes com essa imoralidade que fazia do rei uma espécie de dono da sociedade, e do Estado uma extensão da propriedade privada, alguns iniciaram suas justas críticas a esse status quo, não permitiram os liberais que se voltasse ao regime da Cristandade[3], que tantos benefícios patrocinara. A contrário senso, conduziram tudo para que a sociedade desse outro passo em direção ao abismo: e venceu a Revolução Francesa, a qual não apenas removeu o nefasto absolutismo. Senão, com ele, muitos traços da ordem social católica que ainda persistiam, teimosamente, a despeito de todos os malefícios renascentistas que se lhe infligiam.

Para a Igreja, a Idade Moderna, caracterizada, sobretudo, pelo Renascimento e pela Reforma Protestante, foi uma época de crise[4], pela qual, à semelhança de uma ponte, o mundo caminhou ao Iluminismo e à vitória dos liberais na Revolução de 1789. É bem verdade que a Idade Moderna ainda conservaria traços de cristianismo bem vivos, como se nota na evangelização da América, nas grandes espiritualidades que se desenvolveram no período – os jesuítas de Santo Inácio de Loyola, a reforma do Carmelo por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, a popularização da devoção ao Coração de Jesus por São Cláudio de la Colombière, as famílias espirituais fundadas por São Francisco de Sales, por Santa Joana de Chantal, por São Vicente de Paulo e por Santa Luísa de Marillac etc –, na arquitetura eclesiástica.

Todavia, tais traços de fé cristã iam pouco a pouco se apagando nos ambientes temporais, ao mesmo tempo em que os verdadeiros católicos a eles se apegavam para explicitar sua adesão plena à Igreja, em um combate que será travado amplamente no século XIX. “O novo espírito que inicia a descristianização moderna da Europa traz também consigo uma admiração nova pela Antigüidade pagã greco-romana. A Idade Média, evidentemente, conhecia e apreciava a Antigüidade, porém, ainda que a assumisse em boa parte, considerava-a superada pelas grandes sínteses da Cristandade posterior. O Renascimento, pelo contrário, estima a Antigüidade como uma era de ouro, ao mesmo em que desvaloriza a Idade Média.”[5] Daí surge a lenda negra, tentativa anticatólica de falsificação da Idade Média, e de considerar eventuais abusos em tal período cometidos como normais e corriqueiros – e mesmo como aceitos. Tempo tão pleno do Evangelho, que, segundo os Papas, governava os Estados, precisava ser alvo de campanhas difamatórias e mentirosas por parte dos que odiavam a Igreja, se quisessem estes ver seus planos vitoriosos.

O antropocentrismo renascentista[6] é que faz a passagem da Idade Média católica para o Iluminismo laicista dos liberais, o que vai necessariamente refletir-se nas relações entre Estado e Igreja. O que, na Idade Moderna, era uma crise, na Idade Contemporânea, a partir da Queda Bastilha e do Antigo Regime – o qual, vimos, conservava, ainda que por vezes timidamente, aspectos do cristianismo –, vai se transformar no que a Igreja classificou como secularização, mundanização, descristianização das Nações do Ocidente, destruição da Cristandade, autêntica apostasia. Favorecida pela Reforma Protestante, que, além de sustentar o liberalismo espiritual – livre-exame das Escrituras – e o igualitarismo eclesiástico – negava a autoridade do Papa e o caráter sacramental da ordenação dos ministros –, rompeu aquela saudável unidade moral da Europa Ocidental, a crise inaugurada pela Renascença não é de imediato vencedora, em face da força da herança medieval católica. Inspira, entretanto, o liberalismo dos novos filósofos. Na Idade Moderna, lança-se o grito: “Cristo sim, Igreja não.” A partir do Iluminismo o mote é outro, de sabor bem maçônico: “Deus sim, Cristo não.” Como se esses dois lemas já não fossem demoníacos o suficiente, prepara-se o terreno para o ateísmo contemporâneo: “O homem sim, a terra sim, a fraternidade sim, a paz sim, o amor sim; Deus não.”

“Primeiro se alça um grande clamor crítico; reprovam seus ancestrais por não lhes ter transmitido mais que uma sociedade mal feita, toda de ilusões e sofrimento.[7] (…) Rapidamente aparece o acusado: Cristo. O século XVIII não se contentou com uma Reforma; o que quis abater foi a cruz; o que quis apagar foi a idéia de uma comunicação de Deus com o homem, de uma Revelação; o que quis destruir foi uma concepção religiosa da vida.

Estes audazes também reconstruíam: a luz de sua razão dissiparia as grandes massas de sombras de que estava coberta a terra; voltariam a encontrar o plano da natureza e só teriam de segui-lo para recobrar a felicidade perdida. Instituíram um novo Direito, que já não teria nada que ver com o Direito divino; uma nova moral, independente de toda teologia; uma nova política, que transformaria os súditos em cidadãos. E para impedir seus filhos de recair nos erros antigos[8], dariam novos princípios à educação.”[9]

Pelos frutos, vemos o resultado danoso de tal filosofia. Mentindo sobre uma suposta Idade Média obscurantista e supersticiosa, arrogaram-se os filósofos liberais em iluminadores, e, destruindo tudo o que para eles eram erro e sombras – a fé, a concórdia entre Estado e Igreja, a sacralização das estruturas temporais –, inventaram novo Direito, nova sociedade, nova moral, onde Cristo não mais reinaria, onde a doutrina revelada por Deus – esse conceito tão antagônico à sua falsa concepção de livre-pensamento e autonomia da razão – não teria vez.

“Entre 1680 e 1715 produz-se, com efeito, um grande assalto – religioso, intelectual, artístico e político – contra essa Cristandade, que ainda perdura em grande parte durante o classicismo[10] do século XVII. Partindo de Descartes (+1650), homens como o panteísta Spinoza, ou como Malebranohe, Locke, Leibniz, Bayle, radicalizam a autonomia do pensamento[11] e da moral, desvinculando-as da Igreja de Cristo.”[12]

Essa ligação intelectual entre os totalitarismos e o liberalismo, como herança da filosofia cartesiana, é explicada detidamente por João Paulo II, dando os fundamentos da crise do pensamento europeu:

“A fim de ilustrar melhor este fenômeno, é preciso remontar ao período anterior ao Iluminismo, sobretudo à revolução operada no pensamento filosófico por Descartes. Aquele seu ‘cogito, ergo sum – penso, logo existo’ desencadeou uma reviravolta no modo de fazer filosofia: no período pré-cartesiano, a filosofia – e por conseguinte o cogito ou, melhor, o cognosco – estava subordinada ao esse, que era visto como primordial. Aos olhos de Descartes, por sua vez, o esse aparecia secundário, enquanto ele considerava primordial o cogito; deste modo realizava-se não só uma mudança de direção no filosofar, mas decididamente abandonava-se o que tinha sido até então a filosofia e, mais concretamente, a filosofia de Santo Tomás de Aquino: a filosofia do esse. Antes, tudo era interpretado na perspectiva do esse e procurava-se uma explicação de tudo dentro desta ótica: Deus, Ser plenamente auto-suficiente (Ens subsistens), era considerado o suporte indispensável para todo o ens non subsistens, ens participatum, isto é, para todos os seres criados e, por conseguinte, também para o homem. O cogito, ergo sum implicava uma ruptura com essa linha de pensamento: agora tornava-se primordial o ens cogitans; depois de Descartes, a filosofia torna-se uma ciência puramente do pensamento: tudo o que for esse – tanto o mundo criado como o Criador permanece no campo do cogito como conteúdo do conhecimento humano. A filosofia ocupa-se dos seres enquanto conteúdo do conhecimento, e não como existentes fora dele.

(…)

Na lógica do cogito, ergo sum, Deus ficava reduzido a um conteúdo do conhecimento humano; deixava-se de poder considerá-Lo como Aquele que explica cabalmente o sum humano. Ele não podia, por conseguinte, continuar a ser visto como Ens subsistens, o ‘Ser auto-suficiente’, como o Criador, Aquele que dá a existência, nem sequer como Aquele que Se dá a Si mesmo no mistério da Encarnação, da Redenção e da Graça. O Deus da Revelação tinha deixado de existir enquanto ‘Deus dos filósofos’; ficou apenas a idéia de Deus, como tema de livre elaboração do pensamento humano.

Desse modo desabaram também as bases da ‘filosofia do mal’. De fato, o mal, para o realismo, só pode existir com referência ao bem e, de modo particular, a Deus, Sumo Bem. É precisamente desse mal que fala o livro do Gênesis e, nesta perspectiva, podem-se compreender o pecado original e também cada pecado pessoal do homem. Mas esse mal foi redimido por meio da cruz de Cristo; mais exatamente, foi redimido o homem que, por obra de Cristo, se tornou participante da vida de Deus. Tudo isto, o grande drama da história da Salvação, tinha desaparecido na mentalidade iluminista. O homem ficou só: só como criador da sua própria história e civilização; só como aquele que decide o que é bom e o que é mau, como aquele que existiria e agiria etsi Deus non daretur – ainda que Deus não existisse.

Ora, se o homem pode decidir sozinho, sem Deus, o que é bom e o que é mau, pode também dispor que um grupo de pessoas deva ser aniquilado; decisões deste gênero foram tomadas, por exemplo, no III Reich por pessoas que, tendo chegado ao poder por meios democráticos, se serviram do mesmo para pôr em ação os perversos programas da ideologia nacional-socialista que se inspirava em pressupostos racistas. Análogas decisões foram tomadas pelo partido comunista na União Soviética e nos países sujeitos à ideologia marxista. Neste contexto, perpetrou-se o extermínio dos judeus e de outros grupos como as etnias ciganas, os agricultores na Ucrânia, o clero ortodoxo e católico na Rússia, na Bielo-rússia e para além dos Urais; de forma semelhante foram perseguidas todas as pessoas incômodas ao regime: por exemplo, os ex-combatentes de Setembro de 1939, os soldados do Exército Nacional da Polônia depois da Segunda Guerra Mundial, os expoentes da intelligentsia que não aceitavam a ideologia marxista ou nazista. Normalmente tratava-se de eliminações em sentido físico, mas às vezes também de eliminações em sentido moral: a pessoa ficava impedida mais ou menos drasticamente de exercer os seus direitos.

Aqui não se pode deixar de considerar uma questão que é hoje muito atual e dolorosa. Depois da queda dos regimes construídos sobre as ideologias do mal, nesses países cessaram efetivamente as formas de extermínio há pouco mencionadas. Resta ainda o extermínio legal de seres humanos concebidos e ainda não nascidos; trata-se de mais um caso de extermínio decidido por parlamentos eleitos democraticamente, apelando ao progresso civil das sociedades e da humanidade inteira. E não faltam outras formas graves de violação da lei de Deus; penso, por exemplo, nas fortes pressões do Parlamento europeu para que as uniões homossexuais sejam reconhecidas como uma forma alternativa de família, à qual competiria também o direito de adoção. É lícito e mesmo forçoso se perguntar se aqui não está atuando mais uma ideologia do mal, talvez mais astuciosa e encoberta, que tenta servir-se, contra o homem e contra a família, até dos direitos do homem.

Por que é que acontece tudo isto? Qual é a raiz de tais ideologias pós-iluministas? A resposta, em última análise, é simples: isto acontece porque se rejeitou Deus como Criador e, conseqüentemente, como fonte para a determinação do que é bem e do que é mal. Foi rejeitada a noção daquilo que mais profundamente nos constitui seres humanos, ou seja, a noção de natureza humana como um ‘dado real’; e, em seu lugar, foi colocado um ‘produto do pensamento’ livremente formado e livremente passível de mudança segundo as circunstâncias. Considero que uma reflexão mais atente sobre tal questão nos levaram a superar este interregno cartesiano; se quisermos falar sensatamente do bem e do mal, temos de voltar a Santo Tomás de Aquino, isto é, à filosofia do ser. Com o método fenomenológico, por exemplo, podem-se examinar experiências como as da moralidade, da religião ou mesmo do ser humano, daí recebendo um significativo enriquecimento do nosso conhecimento, mas não se pode esquecer que todas estas análises pressupõem a realidade do ser humano, isto é, de um ser criado, e também a realidade do Ser absoluto. Se não se parte de tais pressupostos ‘realistas’, acaba-se por andar em círculos.”[13]

Podemos enumerar, neste ponto de nosso estudo, as fases dessa autêntica revolução cultural de caráter gnóstico e anticatólico: o Renascimento, ajudado pela Reforma Protestante, conduz a um estado de coisas liberal e pagão; desarmado o Ocidente pela ruptura de sua unidade, em face da protestantização de algumas Nações, abre-se espaço para o pensamento cartesiano, totalmente oposto ao sistema de Aristóteles e Santo Tomás; tal mudança, somada aos costumes pagãos ressuscitados pelo Renascimento – escravidão, mercantilismo, luxúria, vida de sentidos, deturpação das artes, culto à vaidade, comportamento desregrado e sem disciplina, despotismo e tirania dos reis – e às pretensões dos novos filósofos, constitui terreno fértil para o advento do Iluminismo; as idéias desse movimento obtém vitória política com a Revolução Francesa de 1789[14]; daí em diante, avança o secularismo até as novas correntes de pensamento: laicismo, naturalismo liberal, socialismo, fascismo. Contra tal ação, orquestrada e conduzida soretudo pela maçonaria, como seus membros sempre fizeram questão de anunciar, bateu-se a Igreja Católica, a Esposa de Cristo.

“Os assaltantes triunfavam pouco a pouco. A heresia não era já solitária e oculta; ganhava discípulos, tornava-se insolente e jactanciosa. A razão não era mais um juízo equilibrado, senão uma audaciosa crítica. As noções mais comumente aceitas, a do consentimento universal que provava Deus, a dos milagres, punham-se em dúvida. Relegava-se o divino a céus desconhecidos e impenetráveis; o homem, e só o homem, convertia-se na medida de todas as coisas; era por si mesmo sua razão de ser e seu fim. (…) Haveria-se de edificar uma política sem Direito divino, uma religião sem mistério, uma moral sem dogmas. (…) Operou-se uma crise na consciência européia; entre o Renascimento, da qual procede diretamente, e a Revolução Francesa, por ela preparada, não há crise mais importante na história das idéias. A uma civilização fundada na idéia do dever – os deveres para com Deus, os deveres para com o príncipe – os novos filósofos intentam substituí-la com uma nova civilização fundada na idéia do direito: os direitos da consciência individual, os direitos da crítica, os direitos da razão, os direitos do homem e do cidadão.”[15]

Ganhava força o Estado Moderno: separado radicalmente da Moral, arrogando-se supremacia sobre a Igreja de Cristo, defensor de falsos conceitos de liberdade, de igualdade e de fraternidade, relativista. Em suma, liberal.[16]

Emilio Martinez Albesa, professor de História da Igreja no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, em Roma, sintetiza o choque entre a doutrina católica e sua sadia influência no mundo, de um lado, e a filosofia liberal, de outro. “Na realidade, por sua parte”, ensina Martinez, “os liberais laicistas do século XIX podiam transigir com quase todas as expressões da vida católica, mas não com a pretensão de que a comum fé católica dos cidadãos chegasse a ser elemento constitutivo da vida pública da não. Este foi o núcleo principal da oposição entre uns e outros: a dimensão pública da fé.”[17]

Sobre as diferenças entre as concepções liberais do lema “liberdade, igualdade, fraternidade” e a verdadeira definição dessas expressões segundo a doutrina católica, resume o Papa Leão XIII, principal incentivador do pensamento social da Igreja: “(…) o grande benefício de voltar as mentes dos homens à liberdade, fraternidade e igualdade de direito; não tais como os maçons absurdamente imaginam, mas tais como Jesus Cristo obteve para o gênero humano e aos quais São Francisco aspirou: a liberdade, nós queremos dizer, de filhos de Deus, através da qual podemos ser livres da escravidão a Satanás ou a nossas paixões, ambos os mais perversos mestres; a fraternidade cuja origem está em Deus, o Criador comum e Pai de todos; a igualdade a qual, fundada na justiça e caridade, não remove todas as distinções entre os homens, mas, das variedades da vida, dos deveres, e das ocupações, forma aquela união e aquela harmonia que naturalmente tende ao benefício e dignidade da sociedade.”[18]

Com o advento do liberalismo ganhou força igualmente aquela sofismática proposição segundo a qual a cada Nação deve corresponder obrigatoriamente um Estado soberano e independente. Ora, sabemos que isso não é necessário, e muitas vezes, sobretudo na Idade Média – que os liberais tanto odeiam! –, nem sempre isso ocorreu. Em determinados momentos, um só Estado era soberano sobre várias Nações, v.g., o Sacro Império Romano Germânico e o Império Austro-Húngaro. Em outros, uma mesma Nação estava politicamente presente e dividida em diversos Estados, como a Espanha antes da reunião das coroas sob Fernando e Isabel, ou a Itália antes da unificação; também é exemplo a Alemanha, após a ruptura do Sacro Império (I Reich), a qual restou fragmentada em muitos Estados soberanos, reunificados mais tarde sob a ação do Kaiser e de Bismarck (II Reich).

O conceito de Nação, a valorização da cultura nacional, um certo nacionalismo, são bons e necessários na mentalidade católica. O que não deve ocorrer é uma desregrada acentuação nacionalista, raiz de totalitarismos – outro argumento acerca da origem liberal do Estado totalitário –, e geradora de guerras injustas. Durante o Medievo, os sentimentos nacionais foram profundamente valorizados. A existência, porém, de outro conceito, o universalismo cristão, desenvolvido pela pertença à única e católica Igreja e pela liderança, se não política ao menos moral, de um único Imperador do Ocidente, temperou o nacionalismo para que não se transformasse em orgulho racial. Some-se ao universalismo a ausência de identificação necessária entre Nação e Estado. Removido pelos liberais o universalismo – a Igreja, no liberalismo, não seria detentora da verdade universal; aliás, nem haveria tal verdade, em face do relativismo e livre-pensamento –, e criado o mito de que a cada Nação deve corresponder um Estado, prepara-se o terreno para as grandes guerras mundiais do século XX. Foi um nacionalismo exagerado – produto direto das idéias liberais, e totalmente avesso ao sadio patriotismo de inspiração tão crist㠖, que desencadeou a I e a II Guerras.

O Estado Moderno, nacional, encontra-se em crise, todavia. Ruma o mundo para a unificação em um só Estado. Entretanto, tal unificação opera-se de modo diferente daquela efetuada sob Carlos Magno, sob Otão I, ou sob os Habsburgo. Desejam os condutores do atual estágio do liberalismo não uma unidade na qual existam várias Nações. Por não terem conseguido remover a vinculação entre Nação e Estado, caminham em direção a um Estado único com uma Nação única. Constatamos facilmente a verossimilhança da tese ao assistirmos como os elementos nacionais saudáveis estão sendo removidos gradativamente no processo de unificação da Europa. A moeda única – o euro – foi o grande passo do Estado nacional ao ainda mais tenebroso Super Estado nacional. E a raiz de tudo é a gnose revolucionária, igualitária e maniqueísta, monstro que se agigantou com a escola filosófica liberal do século XVIII.

Significa com isso que a Igreja, por ter no Estado Moderno um inimigo, deve a ele sempre se opor de forma direta? Estamos que não, e a doutrina católica é nosso embasamento. A concepção e os postulados liberais da modernidade são nefastos, mas ainda assim, mesmo que não reconheçam, as autoridades políticas que chefiam a sociedade civil, se legítimas e quando dão ordens justas e coerentes com as leis divina e natural, são instrumentos de Deus para o governo do gênero humano. Não cessa, por isso, a Igreja de, ainda que o Estado não lhe reconheça a supremacia indireta de que falamos, exercer seu múnus de guardiã da Moral e da Fé: nas coisas espirituais, mesmo que o Estado Moderno a proíba, a Igreja faz agir sua autoridade, a despeito de perseguições; nas coisas mistas, tenta ajudar o Estado e, não havendo acordo, reivindica sua superioridade, em que pese, como é evidente, o Estado pouco caso fazer de semelhante protesto; nas coisas civis, enfim, vigia a Igreja para que o Estado atue segundo a Revelação, e quando este não o faz – o que é comum nos tempos atuais –, igualmente protesta.

Em uma ordem social católica, a Igreja e o Estado estariam unidos, cada qual soberano e independente em seu campo, com uma indireta supremacia da primeira. Semelhante sistema combateria as pretensões liberais e suas diabólicas teses, que, em nome de uma aparente liberdade, só fazem expulsar Cristo de Seu Reinado temporal. Também outras vantagens desse regime nos chegam: “Quanto mais o governo temporal souber coordenar sua ação com a do governo espiritual, mais este o favorecerá e sustentará, e mais também concorrerá para a conservação do Estado. Porque enquanto o superior eclesiástico se esforça em formar o bom cristão com a autoridade e os meios espirituais, segundo o seu fim, ele consegue ao mesmo tempo, por uma conseqüência necessária, formar o bom cidadão tal qual este deve ser sob a dependência da autoridade política. Isso é assim porque na Igreja Católica Romana, cidade de Deus, o bom cidadão e o homem de bem são absolutamente a mesma coisa.”[19]

Contudo estamos não em um estado de coisas católico, mas vige uma ordem social liberal, tendo à sua frente a sociedade civil moderna, a qual se pretende superior à religiosa ou, no mínimo, radicalmente dela separada. Na ordem liberal as leis, notadamente a Constituição, admitem as chamadas liberdades modernas[20], com todas as suas funestas conseqüências.

Atentemos ao caso da moderna liberdade religiosa, tão defendida pelos liberais. Diz o Magistério da Igreja por seus pastores reunidos sob a autoridade pontifícia:

“Se, em razão de circunstâncias particulares dos povos, for conferida a uma única comunidade religiosa o especial reconhecimento civil na organização jurídica da sociedade, será necessário que ao mesmo tempo se reconheça e se observe em favor de todos os cidadãos e das comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa.”[21]

Alguns liberais viram na expressão conciliar transcrita o triunfo de suas posições. Pensaram que a Igreja estava reconhecendo o direito de cada um crer o que quiser, mesmo que tal crença seja um erro. Outros, desta feita membros da Igreja, espantaram-se com o texto e enxergaram-no exatamente como os liberais, tomando dois caminhos diversos: ou saudaram a “nova” política do Vaticano II e aderiram ao progressismo, ou criticaram o Concílio pela mesma “nova” política e fizeram-se tradicionalistas. Ambos, progressistas e tradicionalistas, se bem que com intenções e elementos diversos e antagônicos, partem, todavia, dos mesmos pressupostos, da mesma visão gnóstica, e da mesma pretensão de interpretar a Tradição ou o Magistério livremente – ainda que aleguem que só estão sendo “fiéis” à sua idéia de Tradição ou Magistério. O que o protestante faz com a Sagrada Escritura, faz também o tradicionalista com a Tradição, e o progressista com o Concílio Vaticano II e o Magistério subseqüente.

A passagem em epígrafe deve ser corretamente entendida, e nos define seu sentido autêntico a própria autoridade da Igreja, afastando interpretações pessoais, liberais, tradicionalistas ou progressistas: “O direito à liberdade religiosa não significa nem a permissão moral de aderir ao erro nem um suposto direito ao erro, mas um direito natural da pessoa humana à liberdade civil, quer dizer, à imunidade de coação externa nos justos limites, em matéria religiosa, da parte do poder político.”[22] Temos, então, que a Dignitatis Humanae não reconhece os princípios da liberdade religiosa como a entendem os liberais. Noutras palavras, não afirma a declaração do Vaticano II que exista um direito ou permissão de aderir ao erro – e como só a religião crida e ensinada pela Igreja Católica é a verdadeira, conclui-se que as demais, ainda que possam ter elementos positivos, sementes da verdade, pontos corretos de doutrina, estão substancialmente erradas –, apenas tolerando-a. Não há qualquer motivo, portanto, para que o liberal se regozije, pois é ensino perene da Igreja que a liberdade religiosa não pode ser ilimitada.[23] A tolerância aos outros cultos, aliás, é característica católica. Ao mesmo tempo em que afirmou ser a única e “que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao Romano Pontífice”[24], a Igreja Católica sempre defendeu que a fé é um ato livre e voluntário, condenando todos os que, apesar de por vezes movidos por um excesso de zelo, pretenderam efetuar conversões à força. Ser católico não é obedecer a certos ritos ou dizer, da boca para fora, que o é, mas crer, de todo o coração, na verdade revelada por Cristo, Nosso Senhor e Salvador.

Não há, por isso, contradição real entre a Libertas Prastantissimum e o Syllabus, num pólo, e a Gaudium et Spes[25] e a Dignitatis Humanae, de outro. Eventuais dificuldades devem ser explicadas e resolvidas pela Igreja mesma, o que foi feito em grande parte quando da publicação do atual Catecismo e mesmo pelo seu Compêndio.

“Os ensinamentos do Concílio [Vaticano II] sobre o mundo secular são amplos, profundos e harmoniosos, plenamente fiéis a uma tradição católica, a qual desenvolvem. Sem embargo, foram rapidamente mal interpretados. Para não poucos, como diz A. Sigmond, ‘a primeira impressão depois do Concílio foi de que a Igreja queria redefinir sua postura frente ao mundo, ao qual já não considerava adversário. Não mostrava mais desconfiança das realidades deste mundo. Não se sentia ameaçada por este mundo; ao contrário, sentia-se capaz de ajudá-lo com sua contribuição, e, em conseqüência, podia reconquistar [no mundo] um posto digno seu. Falou-se, pois, de uma relação Igreja-Mundo.’ (Dialogue dans un monde sécularisé, p. 329)

Esta primeira impressão foi bastante duradoura e estendida, e para muitos supôs um grande alívio. Por fim havia-se entendido que as pessimistas prevenções de Cristo ao enviar seus discípulos ao mundo – ´o mundo vos odiará e vos perseguirᒠ(cf. Jo 15, 19-20); ‘eu vos envio como cordeiros no meio de lobos’ (Lc 10,3) – eram completamente injustificadas, e só podiam explicar-se por uma concepção triunfalista da Igreja e sumamente pessimista do mundo secular. Porém, ainda que fosse muito tarde, após vinte séculos de história, por fim a Igreja lograva superar esse erro, causa de tantos mal-entendidos e sofrimentos inúteis para os cristãos.

Esta nova atitude, concretamente, fez que de uma grande parte dos manuais recentes de espiritualidade desaparecesse o tema do mundo – ao mesmo tempo, por certo, que desapareceria o do demônio. Alguns, ainda, seguem falando do mundo, porém, agora somente em termos de colaboração e de diálogo com ele, silenciando por completo a parte mais central da doutrina bíblica e tradicional sobre o mundo, ou, inclusive, rechaçando-a como felizmente superada.

Pois bem, que essa interpretação do Vaticano II seja falsa pode-se demonstrar a priori: um Concílio católico não pode mudar ou suprimir uma doutrina importante da Escritura, revelada, unanimemente ensinada pela Tradição de vinte séculos. E também, sem dúvida, há de ser rejeitada a posteriori: o Vaticano II não é em modo algum infiel ao ensino bíblico e tradicional a respeito do mundo, como realidade marcada pelo pecado e necessitada de uma salvação procedente do Salvador do mundo. Os amatores mundi, todavia, tratam de justificar sua mundanização mental e prática – já realizada em boa medida para os anos conciliares –, alegando falsas interpretações da doutrina do Vaticano II.

O Concílio, como temos visto, considera o mundo secular com toda a verdade e liberdade. A Gaudium et Spes, por exemplo, a grande constituição conciliar sobre o tema, é sumamente consciente dos graves males do mundo atual. Ela assinala os efeitos devastadores causados ‘com freqüência’ pelo pecado no mundo de hoje, que perturba o homem com ‘muitos males’ (13a). Faz que o homem ‘com freqüência fomenta [a liberdade] de forma depravada’ (17). Atesta a difusão do ateísmo em proporções nunca antes conhecidas (19-20) (…). Ensina, enfim, conseqüentemente, que, desde as origens da humanidade, combate-se continuamente numa ‘dura batalha’ entre as forças do bem e do mal (13b; 37b). (…)

Quem pretender mudar a doutrina da Igreja sobre o mundo, ensinada pela Igreja durante vinte séculos, não pode achar ‘fundamentos doutrinais’ nos textos do Vaticano II. Isso sim, ao redor do Concílio, entre alguns teólogos, em campanhas da imprensa religiosa e profana, e inclusive em não poucos Padres Conciliares, pode-se encontrar uma ‘efetiva abertura ao mundo’ – a seus modos de pensar e obrar –, que desde o século XVIII, e ainda antes, e mais aceleradamente depois da II Guerra Mundial, vinham realizando os países ricos do Ocidente (…).”[26]

Claríssima, nesse sentido, é a resposta de que o Concílio Vaticano II não mudou – nem poderia fazê-lo – a doutrina da Igreja sobre suas relações com o mundo, o Estado e as realidades temporais. Tampouco é verdade que os documentos conciliares tenham autorizado uma mudança nessa relação, principalmente quando o Estado, antes reconhecedor do Reinado de Cristo sobre si, hoje tenha se mundanizado pela secularização iniciada na Renascença, completada na Revolução Francesa e atualmente em seu auge. O Vaticano II não revogou as condenações do Magistério ao Estado Moderno, mundano e laicista, e ao liberalismo, doutrina que o sustenta. Só falsas interpretações do Concílio – possíveis, eis que, por ser um sínodo de caráter pastoral, admite-se, em princípio, que tenha passagens de dúbio entendimento –, motivadas pelo modernismo infelizmente presente em muitos dos Bispos participantes do Vaticano II e dos teólogos progressistas que se aproveitaram da crise pós-conciliar, é que permitem essas igualmente falsas teses de uma inexistente reconciliação entre Igreja e Estado Moderno e de um amálgama de catolicismo combinado com liberalismo.

“Por outro lado, o próprio Paulo VI, ao fim de seu pontificado, denunciou essa falsa doutrina sobre o mundo, que, procedente de uma presumida ‘escola do Concílio’[27], não era fiel à doutrina dos próprios textos conciliares. (…) Os documentos do Magistério apostólico, e concretamente do Vaticano II, jamais estiveram na origem da mundanização dos cristãos atuais do Ocidente. A mundanização, quer dizer, a apostasia dos países ricos, vem de muito mais longe, e tem raízes intelectuais e morais (…)”[28] nos movimentos liberais contra os quais o Concílio reafirmou a condenação de seus princípios e doutrinas – se bem que, talvez, não tão explicitamente como antes, o que, aliás, não é problema, eis que o Magistério é sempre atual, e os documentos anteriores são e serão válidos para hoje –, e, quando tolerou certas falsificações da liberdade e da verdade, só o fez para evitar males piores e mais profundos. Determinada espécie de tolerância também pode ser forma legítima de combate. Importa ficar do lado do Papa, a quem Nosso Senhor garantiu as chaves do Reino.

Em relação à tolerância e seu significado, citemos claro ensino do Bispo Emérito de Novo Hamburgo, D. Fr. Boaventura Kloppenburg, OFM. O prelado franciscano tornou-se célebre pela destacada atividade apologética contra a ação dos maçons, livre-pensadores e outros liberais. “Que é a tolerância? A falar com exatidão, observa Arthur Vermeersch, SJ, a tolerância tem sempre por objeto um mal, um defeito físico, um erro intelectual ou uma deformidade moral. O que é belo, bom, verdadeiro, correto e perfeito não é tolerado, mas é aprovado. O que é feio, mau, errado, inexato e defeituoso é tolerado, não aprovado. Nunca dizemos ‘tolerar o bem, tolerar a virtude’. Mas costumamos ‘tolerar uma afronta, tolerar uma injúria’. Conhecem-se ‘casas de tolerância’. Por conseguinte, a palavra ‘tolerância’ exprime uma atitude perante o mal, o erro, o defeito. Tolerância implica desaprovação.”[29] A Igreja tolera as liberdades modernas, o que implica que, em princípio, as desaprova, condenando a doutrina que as nutre, porém não as impede diretamente em função das circunstâncias peculiares da época hodierna, em que impera o Estado liberal, laicista, indiferente a Deus.

Sempre defendeu a Igreja a liberdade religiosa no sentido do ato de fé ser livre, de não ser lícita a imposição pela força da mensagem cristã. Assim agindo, reconheceu autêntico direito a todos de livremente aderir a Cristo. Contudo, se a liberdade pode ser usada para negar Nosso Senhor, isso não implica em denominarmos tal uso dessa faculdade da vontade humana de “direito”. Não há direito ao erro. Respeita a Igreja os que estão, de boa-fé, militando em erros religiosos. Mas, porque os respeita, ainda quando tolera seus hábitos ou vícios, convida-os insistentemente a buscar as raízes de nossa Fé Católica, a formar suas consciências de acordo com a Revelação. Quanto à liberdade religiosa entendida no sentido liberal, qual seja o pretenso direito de cada professar o que quiser, repetimos ser objeto de mera tolerância.

Acusam, os liberais, a Igreja, muita a exposta acima, de ser intolerante. É bem verdade que, num certo sentido, a Igreja é tolerante – algo nunca reconhecido pelo liberalismo –, e noutro severa protetora de sua Fé e autoridade, exercendo uma intolerância benéfica e justamente natural. Com razão, em certas situações, a tolerância é uma virtude, v.g., quando suportamos os defeitos do próximo, amamos os inimigos, cultivamos a paciência. Por vezes, entretanto, a virtude está exatamente na intolerância. Exemplos: o Estado que condena o criminoso, o pai que castiga o filho desobediente, o professor que corrige o aluno de seus erros, o chefe de família que proíbe em sua casa livros e revistas imorais etc – são atos de uma sadia intolerância.

Reproduzimos outras linhas da lavra do erudito frade minorita e culto Bispo:

“Lembro inicialmente os pontos[30] pelos quais a Igreja seria intolerante. De fato, devemos conceder que ela, nos indicados pontos, é realmente intransigente. Ela nunca o negou. Nem jamais trombeteou sua tolerância nestas coisas. Pelo contrário, sempre teve a lealdade e a dignidade de afirmar publicamente sua firmeza em questões de princípios sobre a fé e a moral; sempre fez questão de ser intransigente perante o erro, o vício e o pecado. Fraquejaria em sua missão se condescendesse com estas coisas. Pois a Igreja não se considera autora, mas somente guardiã e defensora do sagrado depósito da fé. Ela apenas continua a mesma missão confiada por Cristo aos apóstolos quando disse: ‘A mim me foi dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar TUDO o que eu vos tenho mandado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado’ (Mt 28,18-20 e Mc 16,16).

Ensinar, governar e santificar os homens e prepará-los para o céu: eis sua missão e obrigação essencial. Para isso ela precisa ensinar toda a doutrina de Cristo, guardá-la incólume através dos séculos, a fim de poder transmiti-la a todos os povos, até a consumação. A Igreja não recebeu nenhuma autorização de mudar a mensagem de Cristo, nem pode permitir que outros a modifiquem e ao mesmo tempo a apresentem como doutrina cristã. ‘Quem vos ouve a mim me ouve; quem vos despreza a mim me despreza; mas quem me despreza, despreza aquele que me enviou’ (Lc 10,16), dissera Cristo aos Apóstolos e seus sucessores. E mais: ‘Se alguém não ouvir a Igreja, seja para vós um pagão e um publicano’ (Mt 18,17). E ainda: ‘Em verdade vos digo que tudo o que vós ligardes sobre a terra será também ligado no céu; e tudo o que vós desligardes sobre a terra será também desligado no céu’ (Mt 18,18). Essas e outras passagens são o fundamento da autoridade da Igreja que Cristo lhe conferiu com o fim de perpetuar sua obra através dos séculos.

Portanto, guardiã de um inviolável depósito recebido por Deus, a Igreja deve, custe embora o seu sangue, conservá-lo puro e íntegro e opor um imutável ‘nom possumus’ a todas as tentativas de mescla ou de corrupção. ‘Quem não crer será condenado’, dissera Cristo. Por isso a Igreja considera condição indispensável para ser verdadeiro discípulo de Cristo aceitar toda a mensagem cristã, sem escolha nem transação. É esta a intolerância doutrinária da Igreja. (…)

Todavia, é preciso recordar também isto, se a Igreja se mostra inflexível e intolerante para com o erro e o pecado, porque assim o pedem a verdade e o bem, ela se apresenta também condescendente, tolerante e compassiva para com os transviados e pecadores que, reconhecendo sua falta, imploram o perdão. Intransigente na fé, ela é, no entanto, tolerante na caridade. Ela tolera todas as pessoas, mas não transige com o erro. Os erros, não os homens, são seus inimigos. Mas como o erro está ligado ao homem, é produzido e propagado por homens, por isso, para combater o erro, é por vezes inevitável denunciar e combater os que pertinaz e obstinadamente produzem, defendem ou propagam o erro ou o vício. Caridade nunca foi sinônimo de contemporização, transigência, anarquia ou moleza; nem impede agir com mão firme, decidida, coerente e forte. O amor que os pais têm aos filhos não proíbe a repreensão e o castigo; mas reclama-o quando necessário.”[31]

Irônico como os liberais chamam à Igreja intolerante (e ela só o é conforme o acima descrito), proclamando-se os arautos da tolerância, portanto, e, ao mesmo tempo, limitam a liberdade dos que não comungam de seus postulados. Desmascarou, claramente, o Papa Bento XVI, essa distorção da tolerância, tolerância a qualquer preço, autêntico relativismo e negação da verdade: “a tolerância — que, por assim dizer, admite Deus como uma opinião privada, mas Lhe recusa o domínio público, a realidade do mundo e nossa vida — não é tolerância, mas hipocrisia.”[32] De fato, tolera-se tudo em nome da relativização da verdade, menos os que a defendem como absoluta. A tolerância serve para todos, exceto para os que, por serem coerentes com sua própria fé, são tidos por intolerantes. Que tolerância é essa que seleciona os seus beneficiários por um critérios absurdamente arbitrário?

Do exposto, deduz-se que a Igreja tem por situação ideal sua união com o Estado, sem com ele confundir-se, cada qual mantendo sua independência e soberania no governo de suas questões próprias, havendo, nas mistas, mútuo acordo, com prevalência da autoridade eclesiástica em caso de conflito com o poder civil. Conclui-se, outrossim, que mesmo no trato de questões meramente temporais, campo em que é independente e soberano, deve o Estado, como instrumento de Deus, respeitar Sua Lei e zelar para que a Igreja cumpra sua missão, em si muito mais excelente do que o simples bem estar terreno dos súditos. Disso é óbvia a constatação de que o Estado Moderno, que julga prescindir da Igreja, dela queira estar separado, ou, a pretexto de soberania, tente submete-la, não corresponde à noção católica de governo da sociedade civil. Ademais, com seu fundamento liberal e a explícita defesa de um errôneo conceito de liberdade, expressado nos propalados “direitos” modernos, é esse modelo de Estado incontestavelmente afastado dos ensinamentos da Igreja. A doutrina filosófica que o sustenta foi, por isso mesmo, severamente condenada pela autoridade da Igreja de Cristo, e aí a razão do Syllabus do Beato Pio IX, qual coletânea de proposições afastadas pelo Magistério.

Convém salientar, entretanto, que, no momento atual, vivemos num mundo onde a ideologia liberal tomou conta das instituições políticas. O Estado do qual são súditos os fiéis católicos não é aquele cujo modelo defende a Igreja, e sim o moderno. Por outro lado, no seio das Nações não há mais unidade religiosa. E é com esse Estado Moderno que deve relacionar-se a Igreja. Como se dá essa relação?

Pelo que foi dito, podemos extrair duas sentenças que atuam como resumo:

a)      o modelo de Estado Moderno é condenado pela Igreja, quer por sustentar uma espúria separação das duas autoridades, quer por defender um falso conceito de liberdade, como se o erro tivesse direitos;

b)      ainda que condene os princípios do Estado Moderno, tolera-o a Igreja em face das atuais circunstâncias, por ver nessa tolerância um mal menor, o que, todavia, não permite que os católicos apresentem a situação hodierna e as liberdades modernas como legítimas, como uma conquista benéfica da humanidade, como se este estado de coisas fosse normal.

O Estado Moderno não é normal, é um erro, e por isso a Igreja o rejeita. Vivendo, entretanto, em uma sociedade no qual aparentemente triunfa esse modelo estatal, tolera-o, a espécie de mal menor, de medicamente a ser aplicado a um doente: o ideal, repetimos, é que não houvesse doentes, i.e., que estivéssemos em uma sociedade sacral, como a Idade Média e os restos de Civilização Cristã que permaneceram em alguns ambientes, nos séculos que a seguiram – inclusive em boa parte do interior do Brasil, que não foi contaminado com a cultura moderna e com o pensamento iluminista. Como na época em que a Igreja era perseguida pelo Império Romano, condenavam os Papas o modelo de Estado vigente, ao passo em que o toleravam para evitar males maiores e, por ver na autoridade civil legítima – mesmo inimiga da fé – o exercício do poder temporal por Deus concedido aos governantes – ainda que, por vezes, mal empregado –, mandavam que os fiéis lhe obedecessem nas ordens justas. O católico, mesmo num Estado inimigo da Fé, ainda é seu melhor cidadão.

“Não se vá, porem, a inferir do sobredicto que nenhum catholico pode acceitar uma Constituição que admita a liberdade de cultos, o que seria falso. Oiçamos o que a este proposito nos diz Leão XIII:

‘Nos seus procedimentos maternaes toma a Egreja em consideração as fraquezas que opprimem a natureza humana, e não desconhece os movimentos que, em nossos tempos, agitam os espiritos e a realidade das coisas.

E por esta causa, ainda que ella não conceda direitos senão ao que é verdadeiro e justo, não se oppõe, comtudo, á tolerancia, que os poderes publicos julgam poder usar para com certas coisas contrarias á verdade e á justiça, tendo em vista evitar maiores males, ou alcançar e conservar maiores bens. Por outras palavras, se a Egreja necessariamente tem de condemnar os principios das fementidas e damnosas liberdades modernas, não tem por outra parte difficuldade em reconhecer que ha conjuncturas, em que estas liberdades licitamente podem ser toleradas.’

Suppõe a tolerancia sempre alguma coisa má, que se supporta e aceita por haver para isso graves razões. ‘Se a Egreja julga, diz o mesmo Pontifice, que não é licito pela lei egualar os diversos cultos á verdadeira religião, não condemna, sem embargo, os diversos chefes de Estado que, afim de alcançarem um bem ou de evitarem um mal, toleram practicamente que cada um desses cultos tenha logar no Estado.’

Não se pode evidentemente reconhecer ao homem o direito natural de professar qualquer religião, e de, pela imprensa e pelo ensino, propagar qualquer doutrina. Não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras todas as religiões e todas as doutrinas. É por conseqüência falso o poder-se-lhes em these ou principio guardar respeito, porque isso faria suppôr que o homem é que sobre estes pontos manda e que pode segundo os seus caprichos formar uma lei religiosa e doutrinal, o que é inadmissivel.

Acontece, porem, haver muita gente que está de boa fé, e haver paizes que contam seitas religiosas diversas, cujos preconceitos e modos erroneos de pensar podem ter muitas explicações. Todos, alem disso, sabem quanto é difficil chegar sobre muitos pontos a convencer e levar a gente á verdade; e ainda mais difficil é levar todas as vontades á practica do bem. Neste caso ou neste hypothese, pode o Estado tolerar, para bem da paz interna, a diversidade de pensar e de procedimentos, comtanto que não vão de encontro a um certo codigo de obrigações, necessarias e indispensaveis ao bom funccionamento da vida social.

Indiquemos algumas provas que demonstrem a legitimidade desta tolerancia nas circumstcancias acima apontadas.

1. A razão do mal menor. De dois males inevitaveis deve escolher-se o menor delles; e assim se pode muito bem tolerar este mal, afim de evitar o outro mal maior. Quando, pois, num paiz e num determinado tempo estas liberdades modernas já, por exemplo, se acham inscriptas na Constituição e já as leis deste paiz são postas em execução e passaram á vida practica, pode dar-se o caso de a verdade e a religião soffrerem menor mal em se deixarem correr as coisas como estão; evita-se deste modo um mal maior. Querer em tal conjunctura abolir as liberdades já radicadas, não seria salvaguardar os interesses da Egreja, mas excitar contra ella os ódios e as represálias e expor o Estado a perturbações e tristes discordias.

2. O ensino theologico está de accordo com esta doutrina. Reconhecem, com effeito, os theologos, pelo seu mestre S. Thomaz, ser em certos casos legitima a tolerancia as liberdades modernas, pois os seus abusos, ainda os mais extremados, não vão, como no paganismo, até a deificação das creaturas e dos vicios.

3. A conducta da Egreja prova tambem com é legitima esta tolerancia. Se nunca fosse licito tolerar as liberdades modernas, teria ella obrigado Constantino a que no proprio dia da sua conversão banisse do seu imperio o culto dos falsos deuses. E, no caso de um principe protestante voltar á verdadeira fé, houvera logo exigido delle a immediata abolição da liberdade até alli concedida aos vassallos de professarem o protestantismo. Ora, não é assim que a Egreja procede; e não é neste sentido que Gregorio XVI e Pio IX condemnaram estas liberdades. Resumiu muito bem esta doutrina a Civiltà Catholica, em data de 1868:

‘Afóra algumas raras excepções, todos os catholicos sinceros concordam em que o principio da liberdade de cultos é um absurdo. E realmente não será porventura um principio monstruoso, o equiparar-se a verdade ao erro, ou o enceremos do ponto de vista social ou do individual? Professam, pois, os catholicos que um tal principio não pode deixar de ser por sua natureza nocivo para a ordem politica; admittem, comtudo, que convem em certos casos saber supportar este mal, porque há circumstancias em que, pela má disposição dos individuos, se lhes não podem impor os ensinamentos catholicos a não ser pela violencia, o que está em opposição com os sentimentos da Egreja. Matar-se-hiam os doentes se se lhes applicasse o regimen dos sãos; mas quem, estando em seu juizo, poderá affirmar que o regimen proprio dos doentes é o ideal da hygiene, a que toda a gente se deve submetter? É impossivel, a não ser com uma bem entendida liberdade de cultos, governar um povo, em que já não exista uma unidade religiosa, e em cuja sociedade haja a diversidade de crenças. Mas apresentar este estado de coisas como um estado de perfeição social, pretender que esta liberdade de cultos haja de introduzir-se lá onde uma tal innovação não é exigida por uma urgente necessidade, seria tão absurdo como o dizer-se que os medicamentos são o verdadeiro alimento do homem, ou que o unico modo de conservar numa casa a pureza de costumes seria escancarar as suas portas a todos os devassos e persversos.’

As consequencias que daqui, como corollarios, se deduzem, nos dão a solução para muitas difficuldades, embora apparentes apenas. E são:

1. Que não ha incompatibilidade alguma entre os deveres de um bom catholico e os de um bom cidadão num paiz, em que as liberdades modernas se acham sanccionadas na Constituição.

2. Que tem facil explicação a diversidade da conducta da Egreja para os differentes paizes, no que respeita á liberdade dos cultos, concedida aos povos dissidentes. Num Estado em que a Egreja gozasse de todos os direitos, faria ella mal ás almas, se cedesse um logar tambem ao erro e ao mal; e neste caso faltaria aos seus deveres se sobre este ponto permittisse alguma innovação. Mas num paiz em que, pelo contrario, a verdadeira religião vive opprimida, em que quasi não existe a liberdade senão para os que a atacam e lhe estorvam a acção, já ella se contenta com a tolerancia civil, e acceita um estado de coisas, que lhe permitte salvar ao menos uma parte dos seus direitos (Encyclica Libertas Praestantissimum).

3. Numa nação regulada por uma Constituição, que concede a todos liberdade de cultos, pode a Egreja e deve exigir com energia a parte que, em virtude da mesma Constituição, lhe vem a caber. De nenhum modo abandona, quando assim procede, os seus proprios princípios nem renuncia a alguns dos seus direitos; faz simplesmente o que faria um proprietario que se visse pelo socialismo triumphante despojado de todos os seus bens, e que depois, em virtude dos princípios mesmos do socialismo, exigisse a quota que dos bens em commum lhe coubesse. Está claro que este proprietário não renunciaria por isso nem abdicaria dos seus direitos de propriedade, senão que procuraria rehaver uma parte ao menos dos bens, de que injustamente se viu desapossado, allegando como argumento ab hominem os principios do proprio socialismo.

Observações. 1. Não se deve confundir de forma alguma a tolerancia practica, de que acabamos de fallar, com a tolerancia theorica ou dogmatica, que equivale a um indifferentismo religioso theorico. A tolerancia dogmatica é essencialmente má e expressamente condemnada pela Egreja e pela logica.

2. Se bem que a tolerancia civil seja licita nos casos acima apontados, não deixam, comtudo, de ser reprovados pela consciencia os actos maus por ella asim tolerados. Se, pois, o poder civil, a pretexto da liberdade de imprensa, deixa proferir as mais horrendas blasphemias ou colportar as publicações immoraes, não é a tolerancia do Estado que ha de, aos olhos de Deus, justificar os que assim são propagadores do mal. E diga-se o mesmo de todos os actos intrinsecamente maus, que por graves motivos os legisladores muitas vezes toleram; pois que os que os practicam, commetem delictos, de que a seu tempo o supremo Legislador lhes ha de pedir conta.

3. De nenhum modo pode a Egreja permittir que se defenda, como rhese geral e absoluta, que a liberdade concedida aos cultos heterodoxos e á propaganda do erro e do mal seja a mais conforme á natureza humana e á verdadeira civilisação. Não é um ideal nem um progresso, mas um compromisso, imposto pelo estado moral da sociedade hodierna. E por isso é que Pio IX condemnou a seguinte proposição: ‘A melhor condição de qualquer sociedade política exige que hoje em dia o Estado seja constituido e governado sem nada se preoccupar com a religião, como se ella não existisse, ou pelo menos sem fazer distincção alguma entre a verdadeira e as falsas.’

4. Harmonisa-se, comtudo, esta severidade de principios com a practica muito atilada de conciliação, que os catholicos vão aprender no próprio Evangelho. Comtanto que as liberdades modernas sejam objecto de uma honrada transacção entre dois partidos, sempre o pacto, que as firma, encontrará nos catholicos os seus mais sinceros e escrupulosos observadores. Não serão elles por certo os que pensarão em desapossar pela violencia os seus adversarios. Aos que lhes objectam que só lhes faltam a audacia e a força para deitar abaixo o regimen vigente, podem elles com sinceridade e com razão responder: ‘Nós pensamos em convencer e converter os nossos adversários, mas nunca em os ganhar pela força.’ Ha já mais de oitenta annos que, por exemplo, a historia da Belgica independente vem com toda a evidencia demonstrando que nunca as liberdades exagaradas na sua Constituição foram mais respeitosamente guardadas que durante o tempo, em que os catholicos tiveram as redeas do poder. Os peiores inimigos da liberdade vão encontrar-se entre os que em theoria se proclamam propugnadores das liberdades modernas.”[33]

Agem, portanto, de maneira incoerente com a Fé Católica e o Magistério da Igreja, tanto aqueles que, por entenderem que as condições atuais não justificam a tolerância eclesiástica ao Estado – no que têm direito de assim pensar, dado que o tema não é doutrinário, mas pastoral –, posicionam-se como críticos do Papa, do Vaticano II e da própria citada política de tolerância, manifestando pública insubmissão ao Romano Pontífice – mesmo discordando dele em um terreno no qual há essa liberdade, não é católico o desafio a sua autoridade, além de ser obrigação do fiel acatar as ordens legítimas do governo da Igreja –; quanto os que, ainda que sejam clérigos e membros do Episcopado, tomam a tolerância da Igreja ao Estado Moderno e ao liberalismo como se fosse aprovação dos mesmos, como se o Concílio e o Papa tivessem revogado as condenações anteriores e, movidos por uma teologia liberal, modernista, progressista, totalmente contrária ao ensino católico, saúdam as liberdades modernas como boas em si mesmas, e não como males menores somente toleráveis.

Por fim, algumas breves palavras acerca de outro tema, correlato.

À doutrina católica não repugna a noção de Estado de Direito. É ela contrária, todavia, à idéia – que por desvincular-se da realidade torna-se ideologia – de que o Estado de Direito  seja criação do liberalismo, fruto da filosofia iluminista ou identifique-se necessariamente com o Estado Moderno, como se a Idade Média, por exemplo, época em brilhou a Civilização Cristã e a filosofia do Evangelho governava os povos, fosse um tempo sem leis, sem direito, sem justiça, onde imperava o arbítrio ou o despotismo – que, aliás, criação da Antigüidade, foi ressuscitado na Europa pelo Renascimento, o pai do iluminismo e da doutrina liberal.

Mesmo combatendo o Estado Moderno – e, algumas vezes, tolerando-o, mas nunca o aprovando –, a Igreja aceita, sim, o Estado de Direito. Os dois conceitos não se confundem. Enganam-se os que tentam fazê-lo, visto que a lei e o direito existiam já antes do Estado Moderno, alcançando seu auge histórico na Cristandade medieval.

 

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[1] Assim, em vez de despotismo, havia, em geral, a consciência da monarquia como serviço; ao centralismo opôs-se a subsidiariedade no seu modelo máximo: o feudalismo; à escravidão a sociedade hierárquica mas harmônica; ao racismo a fraternidade cristã em sua igualdade essencial (embora desigual nos acidentes, no que se baseia a hierarquia); ao nacionalismo o universalismo europeu; ao mercantilismo a idéia de solidariedade. Claro que isso tudo num plano ideal, eis que, como em qualquer agrupamento humano, houve abusos – em número muito menor, diga-se de passagem, do que os propalados pelos detratores da Idade Média.

[2] “Ao afirmarmos que a evangelização deu uma contribuição fundamental para a formação da Europa, não pretendemos subestimar a influência do mundo clássico. Foi a própria Igreja que, na sua ação evangelizadora, assumiu e modelou segundo novas formas o patrimônio cultural que a precedeu; primeiro, a herança de Atenas e de Roma, mas, depois, também a dos povos que ela ia encontrando na sua expansão pelo continente.” (JOÃO PAULO II. Memória e Identidade. Colóquios na Transição do Milênio, Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 107)

[3] “O regime da Cristandade, com todos os seus problemas, provenientes da fragilidade e ambição humanas, aponta para um grande ideal. Não é possível a concretização do bem comum sem uma harmonia fundamental entre a política e a religião, entre o pai e a mãe e ambos com seus filhos. Ou seja, onde o poder religioso e o civil estão firmemente ancorados no serviço do povo, necessariamente devem andar de acordo. (…) A autoridade política com a autoridade religiosa, cada um no seu setor específico, promovem juntas o bem-estar geral do povo” (GRINGS, D. Dadeus. Dialética da Política. História Dialética do Cristianismo, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994., pp. 128-129), os direitos de Deus e do homem, a soberania de Cristo Rei.

[4] O grande pensador espanhol Ortega y Gasset faz lúcida análise da crise que se abateu sobre a Cristandade, a qual se estende até os dias de hoje com a imoralidade e o ateísmo prático. No seu “Em Torno a Galileu” demonstra a referida crise como situada concretamente no Renascimento, a partir do qual “à figura do mundo vigente em uma geração, sucede uma outra figura do mundo algo diferente. Ao sistema de convicções para agir, sucede um outro.” (ORTEGA Y GASSET, J. Obras Completas, tomo V, Madri: Revista de Occidente, 1962, p. 69)

[5] IRABURU, Pe. José Maria. Hechos de los Apóstoles de América, 3ª ed., Pamplona: Fundación Gratis Date, 2003, p. 101

[6] O antropocentrismo, característica hodierna, que tomou grande impulso com o Iluminismo, teve seu berço, nos moldes atuais, no Renascimento. “Com a modernidade começa a gastar-se no mundo ocidental a cosmovisão antropocêntrica que, há mais de dois séculos, vem configurando uma cultura de tipo prometeico, cujo objeto é a autolibertação absoluta do homem frente à natureza e Deus. A cosmovisão antropocêntrica absolutiza a totalidade do homem enquanto realidade criadora do mundo e se apóia na primazia do progresso técnico-científico, que, por sua vez, se impõe como único critério do processo cultural.” (CHEUICHE, D. Fr. Antônio do Carmo, OCD. Cultura e Evangelização, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 122) O carmelita descalço, Bispo Auxiliar Emérito de Porto Alegre, indica, logo após, como essa canonização do ser humano sem qualquer referência a Deus vai desembocar no mais extremado individualismo na pós-modernidade, que é justamente a “quarta etapa da Revolução” segundo Plínio Corrêa de Oliveira.

[7] Quando, em verdade, tal sociedade não foi a Idade Média, tão injustamente acusada, senão a Moderna, gérmen do próprio liberalismo.

[8] Pois para os liberais, o pensamento católico é um erro.

[9] HAZARD, Paul. El Pensamiento Europeo del Siglo XVIII, Madrid: Alianza Universidad, 1991, p. 10

[10] O Renascimento.

[11] Já defendida, em sua correta acepção, por Santo Tomás de Aquino, o qual, entretanto, sustentava sua ligação com a fé.

[12] IRABURU, Pe. José María. op. cit., pp. 129-130

[13] JOÃO PAULO II. Memória e Identidade. Colóquios na Transição do Milênio, Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, pp. 19, 21-23

[14] “Na Idade Média os Papas haviam realizado a unidade da Europa sob o regime da Cristandade. No final do século XVIII, a França reúne os homens em torno de um novo tripé fantástico: liberdade, igualdade e fraternidade. É o triunfo da burguesia. A declaração dos direitos do homem, emanada aos 26 de agosto de 1789, condena os velhos abusos e institui o catecismo filosófico da nova ordem. A sociedade se declara oficialmente não-cristã. Começa-se, a partir deste momento, a falar em época pós-cristã.” (GRINGS, D. Dadeus. op. cit., p. 226)

[15] HAZARD, Paul. La Crisis de la Consciência Europea, Madrid: Alianza Universidad, 1988, pp. 9-11

[16] Não é por ser o liberalismo um mal que a Igreja aprova absolutismo. Em termos filosóficos, ambos os sistemas são etapas da mesma Revolução. A contradição entre os dois se dá nos acidentes, uma vez que a essência, embora aparentemente diversa, é a mesma: para o liberalismo, a verdade é criada pela maioria ou pelo povo; para o absolutismo, é criada pelo rei; nas duas há a rejeição de que a verdade seja absoluta e posta por Deus na natureza e na Revelação. O próprio “direito divino dos reis” absolutistas é uma deturpação do autêntico sentido da expressão. Os liberais, querendo criticar o abuso – feito em nome de Deus –, acabam atacando a própria emanação da autoridade como vinda de Deus. Para o absolutismo, o poder vinha de Deus e isso legitimaria a corrupção, o abuso e o trato da coisa pública como propriedade do rei. Para o liberalismo, o poder vinha do povo sem qualquer referência a Deus. Para a Igreja – e disto foi testemunha a Idade Média e, mesmo na modernidade, os Estados autenticamente católicos –, o poder vinha, como no absolutismo, de Deus, mas, e isso da tirania se diferencia, por essa mesma razão deveria ser exercido para o bem de todos, com responsabilidade. Ao criticar o erro absolutista – criação da Renascença, ausente no Medievo –, o católico não adere ao liberalismo – até porque são “irmãos” –; crê no direito divino do rei, mas por isso mesmo sustenta que o monarca, porque ministro de Deus, deve ser bom, honesto e competente. Ainda assim, no Antigo Regime absolutista existiam mais elementos cristãos do que no liberalismo, assim como neste há aqueles em maior profusão do que no socialismo: progressivamente, Deus vai sendo expulso da política. Melhor seria, talvez, dizer que não é no Antigo Regime que existiam tais elementos cristãos, mas na mesma época em que vigorou: os traços da Cristandade não permaneceram por causa do absolutismo – antes, pelo contrário, por causa dele são apenas traços –, senão apesar do referido sistema. A Idade Média é caracterizada pela subsidiariedade, a Moderna – absolutista –, pela centralização excessiva – fruto das idéias nacionalistas e imperialistas da Renascença –; ainda assim, muitos reis verdadeiramente cristãos do período moderno, como Isabel, a Católica, de Espanha, souberam testemunhar Jesus na vida pública desse tempo de crise. O erro da crítica ao absolutismo foi forçar a queda do Antigo Regime através das idéias liberais da Revolução Francesa – que manteve, aliás, o centralismo, o imperialismo (vide Napoleão) e o nacionalismo exacerbado, tão típicos do absolutismo que combateram. Melhor faria se propugnassem a conversão do Antigo Regime à Cristandade plena, como no Medievo, estancando o processo revolucionário… Última palavra: os Papas, ao defenderem o Antigo Regime contra os liberais, não justificaram o absolutismo nem seus erros, mas queriam, isso sim, salvar o resto de Cristandade que ainda havia, prestes a ser demolido pelo liberalismo.

[17] In “Zenit”, 13 de junho de 2005.

[18] Sua Santidade, o Papa Leão XIII. Encíclica Humanum Genus, de 20 de abril de 1884, nº 34

[19] Sua Santidade, o Papa Pio XI. Encíclica Divini Illius Magistri, de 31 de dezembro de 1929

[20] Lembre o leitor que não somos contrários – e nem a Igreja o é! – às liberdades, ou a todas as disposições constitucionais. Muitas delas, aliás, são grandes conquistas contra o totalitarismo. Ocorre que, à luz do que explicamos, a idéia que permeia as Constituições atuais é a da liberdade do erro, do direito de pensar erroneamente e agir dessa maneira. Tal deturpação do autêntico direito, falsificação da liberdade, não está correta – ainda que, em determinados momentos, possamos tolerá-los.

[21] Concílio Ecumênico Vaticano II. Declaração Dignitatis Humanae, de 7 de dezembro de 1965, nº 6

[22] Catecismo da Igreja Católica, 2108

[23] cf. Sua Santidade, o Papa Pio VI. Breve Quod Aliquantum, de 10 de março de 1791

[24] Sua Santidade, o Papa Bonifácio VIII. Bula Unam Sanctam, de 18 de novembro de 1302

[25] A Gaudium et Spes só pode ser entendida como um anti-Syllabus, na frase do então Cardeal Ratzinger, no sentido de mudança de postura, nunca como havendo contrariedade entre ambos os documentos, emanados, igualmente, do infalível Magistério Ordinário da Igreja. É o modo de explicar a mesma doutrina que torna a Gaudium et Spes um anti-Syllabus, ou melhor, uma “espécie de anti-Syllabus”: ele aponta erros, ela traça caminhos, um disse a verdade explicitando o que é errado e a outra ensinou a mesma verdade mostrando o que é certo. O Cardeal escrevera que os pontos da Constituição Pastoral “constituem uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de anti-Syllabus… O Syllabus estabeleceu uma linha de demarcação contra as forças que determinaram o século XIX, contra a perspectiva política e científica do liberalismo. Na luta contra o modernismo esta dupla delimitação foi ratificada e fortalecida. Desde então muitas coisas mudaram.” (Principles of Catholic Theology, Ignatius Press 1987, pp. 381) Ou seja, o mundo mudou e, pois, precisa ser abordado de outra maneira, o que não significa com ele compactuar. Revisar não é rejeitar. O Vaticano II não vai contra o Syllabus, apenas revisa o modo de transmitir a mesma verdade.

[26] IRABURU, Pe. José María. De Cristo o del Mundo, Pamplona: Fundación Gratis Date, 1997, pp. 153-155

[27] Ou “espírito do Concílio”, que com os textos do próprio Concílio nada tem a ver, deles muitas vezes se afastando, por sinal!

[28] IRABURU, Pe. José María. op. cit., pp. 155-156

[29] KLOPPENBURG, D. Fr. Boaventura. Igreja e Maçonaria. Conciliação Possível?, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 204

[30] Defesa dos dogmas, proibição de livros heréticos, obediência às suas ordens, fé na sua doutrina etc.

[31] KLOPPENBURG, D. Fr. Boaventura. op. cit., pp. 206-207

[32] Sua Santidade, o Papa Bento XVI. Homilia feita na Basílica de São Pedro, em 2 de outubro de 2005, por ocasião da abertura da XI Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos

[33] DEVIVIER, Pe. W., SJ. Curso de Apologética Christã. Exposição Raciocinada dos Fundamentos da Fé, 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1925, pp. 368-373

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