ENCÍCLICA

PROVIDENTISSIMUS DEUS

DO PAPA LEÃO XIII

SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS

Veneráveis irmãos, saúde e benção apostólica

1. Deus providentíssimo, que por um admirável desígnio da sua caridade, elevou o gênero humano, desde a sua origem, a participante da natureza divina, e depois, regenerado da culpa e pena universal, o restituiu á pristina dignidade, dignou-se liberalizar-lhe uma graça singular revelando-lhe por meios sobrenaturais os arcanos da sua divindade, sabedoria e misericórdia. E, se bem que na revelação divina há verdades accessíveis á inteligência humana, foram todavia reveladas ao homem para que lograssem ser conhecidas por todos, dum modo expedito, com firme certeza, sem mescla de erro; não porque para tais verdades fosse de absoluta necessidade a revelação divina, mas porque Deus em sua infinita bondade ordenou o homem a um fim sobrenatural.

Ora, esta revelação sobrenatural está contida, consoante no-lo ensina a crença da Igreja universal, já nas tradições orais, já nos livros sagrados e canónicos, assim chamados, por isso que, escritos sob o influxo do Espirito Santo, têm a Deus por autor e como tais foram confiados â sua Igreja. Esta é a crença que, acerca dos livros de ambos os Testamentos, a Igreja sempre e em toda a parte publicamente professou; e são conhecidos os documentos tão antigos como autorizados, onde se diz que aquele Deus que falara primeiramente pelos profetas, depois por si e, finalmente, pelos apóstolos, esse mesmo é o autor da Escritura canónica, oráculo e palavra de Deus, uma como carta enviada pelo Pai celeste e transmitida pelos apóstolos ao género humano, peregrino longe da pátria. Sendo, pois, tão remontada a excelência e dignidade das Escrituras, oriundas do próprio Deus, e sendo altíssimos os mistérios, desígnios e maravilhas que encerra, é da mais subida excelência e utilidade aquela parte da sagrada teologia que tem por fim interpretar e defender a doutrina contida nos livros divinos. Por isso é que Nós, assim como diligenciamos, mediante repetidas cartas e exortações, promover, e não sem fruto, mercê de Deus, o esplendor de outras disciplinas de grande momento para a gloria de Deus e salvação das almas, assim também de ha muito assentamos excitar e recomendar o nobilíssimo estudo das sagradas Letras, imprimindo-lhe a direção que as circunstancias dos tempos reclamam. A solicitude do nosso múnus apostólico move-nos e como que nos impele a que não só seja conhecida com segurança e fruto para a grei cristã aquela preclaríssima fonte da revelação católica, mas também a que não consintamos que seja nem ao de leve violada por aqueles que, ousada e impiamente, impugnam a sagrada Escritura ou com falazes e imprudentes inovações tramam contra ela. Bem sabemos, veneráveis irmãos, que muitos católicos, varões de grande engenho e doutrina, se dedicam de boa mente e animo inquebrantável á defesa dos Livros sagrados ou a tornar mais nítido e vasto o seu conhecimento e sentido. E se louvamos, como é de razão, tais e tão frutuosos trabalhos, não podemos deixar de exortar instantemente outros varões cujo talento, doutrina e piedade prometem grandes cousas, a que sigam o louvável propósito daqueles. É nosso veemente desejo que seja grande o número dos defensores das Letras divinas e que permaneçam constantes nesta missão, principalmente os que a graça divina chamou ao santuário, pois que a estes com toda a justiça impende a obrigação de as ler com mais diligencia e indústria, de as meditar e explicar.

2. A razão principal que torna altamente recomendável este estudo, não falando já da sua excelência e do obsequio devido á palavra de Deus, está nos grandes bens que, segundo a promessa infalível do Espirito Santo, dele dimanam: —Toda a Escritura, divinamente inspirada, é útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e aparelhado para toda a obra boa. O exemplo de Cristo e dos apóstolos mostra-nos que com tal desígnio nos foram dadas as Escrituras. Jesus Cristo — que pelos seus milagres conquistou autoridade, pela autoridade mereceu fé, pela fé atraiu as multidões — costumava apelar para as sagradas Letras como testemunhas da sua missão divina. Com as Escrituras mostra que não só é legado de Deus, mas verdadeiro Deus; delias deduz argumento para ensinar os discípulos e confirmar a sua doutrina, para vingar a sua pregação das calúnias dos detratores, para arguir os fariseus e saduceus e confundir o próprio Satanás, quando impudentemente o tentava; ás mesmas Escrituras recorreu, enfim, nos derradeiros momentos da sua vida mortal, e, depois de ressuscitado, as explicou aos seus discípulos até á sua ascensão á gloria do Pai. Fieis á palavra e mandatos do Mestre, os apóstolos, ainda que em nome de Cristo operavam milagres, hauriram todavia dos Livros divinos aquela extraordinária eficácia com que difundiram entre os gentios a sabedoria cristã, reduziram a obstinação dos judeus e esmagaram as heresias nascentes. Assim no-lo dizem as pregações apostólicas e nomeadamente as do B. Pedro, onde brilha, deduzido de várias passagens do velho Testamento, firmíssimo argumento em prol da nova Lei. O mesmo facto achamos consignado nos Evangelhos de S. Matheus e S. João, nas Epistolas católicas, e, dum modo brilhantíssimo, no testemunho daquele que se gloria de ter aprendido aos pés de Gamaliel a lei de Moisés e os Profetas, a fim de que, munido de auxílios espirituais, pudesse confiadamente dizer: As armas da nossa milícia não são carnais, mas o poder de Deus. Pelo exemplo, pois, de Cristo e dos apóstolos intendam todos, e nomeadamente os alunos da milícia sagrada, quão grande seja o preço das Letras divinas e com que fervor e piedade devem recorrer a elas como a um bem provido arsenal, porque não ha, para os que têm de ensinar a doutrina católica a doutos e indoutos, mais opulenta fonte de provas, nem mais persuasiva demonstração de Deus, bem sumo e perfeitíssimo e das obras que proclamam a sua gloria e bondade. Acerca do Redentor do género humano, o magistério da Bíblia é, sobre abundante, duma clareza inexcedível; e com razão afirma S. Jeronimo que — ignorar as Escrituras, o mesmo é que ignorar a Cristo. Ha, com efeito, nas Escrituras uma como imagem viva e inspiradora de Cristo que nos alenta na adversidade, nos exorta á prática da virtude e nos incita ao amor divino. Relativamente á Igreja, as sagradas Paginas subministramos tantos e tão peremptórios argumentos da sua instituição, natureza, poderes e graças, que S. Jeronimo pode dizer com inteira verdade : — É um baluarte da Igreja aquele que está apercebido com o estudo das sagradas Escrituras — . Para a formação dos costumes e disciplina moral têm os varões apostólicos, na Bíblia, ótimos e abundantes subsídios preceitos da mais sublime santidade, exortações opulentas de doçura e eficácia, exemplos insignes de todas as virtudes, a promessa divina duma eternidade de prémios e a cominação de penas eternas também.

3. Esta virtude própria e peculiar das Escrituras, oriunda da inspiração do Espirito Santo, dá novo realce á autoridade do orador sagrado, robustece a liberdade apostólica com que deve falar e inspira-lhe uma eloquência por igual enérgica e vitoriosa. O orador que informa a sua pregação do espirito e da força do verbo divino, esse não prega só de palavra, mas com eficácia, com a virtude do Espirito Santo, logrando abundante fruto. Procedem mal e desatinadamente os oradores sagrados que, anunciando a palavra de Deus, põem quase completamente de parte os argumentos divinos, para que nos seus discursos mais avultem as palavras da ciência e da prudência humana. Os discursos de tais oradores, por mais brilhantes que sejam, tornam-se necessariamente áridos e frios, como não os inflama o fogo da palavra de Deus; estão muito longe daquela virtude que informa a palavra divina, viva e eficaz, mais penetrante que a espada de dois gumes, e que vae até ao intimo da alma. Assentindo ao juízo de graves autoridades, tenhamos como certo que ha nas sagradas Letras uma eloquência admiravelmente variada, opulenta e digna dos mais alevantados assumptos. Assim o afirma e largamente demonstra Santo Agostinho, assim o confirmam oradores sagrados excelentes e beneméritos que, rendendo graças a Deus, confessam dever o seu renome principalmente ao estudo assíduo e pia meditação da Bíblia.

4. Bem conhecidas foram e aproveitadas pelos Santos Padres todas estas riquezas das Letras divinas, por isso lhe tecem incessantes louvores e exaltam os seus frutos. Ás Escrituras recorrem frequentemente, já como a tesouro opulentíssimo de celeste doutrina, já como a fonte perene de salvação, ora propondo-no-las como férteis e ameníssimos prados onde a grei cristã recebe admirável e delicioso pasto. Vem aqui muito a propósito aquelas palavras de S. Jeronimo ao clérigo Nepociano : — “Lê muitas vezes as divinas Escrituras, ou antes, nunca interrompas a lição sagrada, instrui-te para instruíres os outros. . . seja a linguagem do presbítero toda baseada na lição das Escrituras”. É também o sentir de S. Gregório Magno, o doutor que mais sabiamente descreveu os múnus dos pastores da Igreja : — “Para os que se dedicam ao ofício da pregação é de necessidade o estudo assíduo das sagradas Letras”. Apraz-nos recordar a admoestação de Santo Agostinho, o qual afirma que — “é vão pregador da palavra de Deus aquilo que a não tem gravada em sua alma”. O mesmo S. Gregório Magno ordena aos oradores sagrados que— “antes de recitarem os seus discursos, metam a mão na sua consciência, para que não suceda que, condenando as ações dos outros, a si próprios se condenem”, seguindo a palavra e o exemplo de Cristo que inaugurou a sua vida apostólica ensinando e praticando, o apostolo preceitua tal doutrina não só a Timóteo, senão também a toda a hierarquia clerical olha por ti e pela instrução dos outros, insta nestas cousas, porque, procedendo assim, lograrás a tua salvação e a dos próximos. Ha, na verdade, nas sagradas Letras excelentes subsídios, abundantíssimos nos Salmos, para a perfeição própria e alheia, mas que só aproveitam aos de animo dócil e atento, de vontade piedosa e rendida á palavra divina. Não é o mesmo nem de vulgar conhecimento o desígnio e a traça de todos os livros sagrados; mas, como foram escritos sob o influxo do Espirito Santo e contêm cousas gravíssimas, em muitos lugares recônditas e difíceis, havemos necessidade, para as intender e expor, do — advento — do mesmo Espirito, isto é, das suas luzes e graças que, como instantemente no-lo persuade a autoridade do salmista inspirado, devemos implorar com humilde prece e fielmente guardar mediante uma vida santa.

5. Daqui vem a providencia sobre todo o encarecimento admirável com que a Igreja estabeleceu leis sabias e criou instituições, a fim de— conservar no devido acatamento aquele tesouro celeste dos livros sagrados que a suma liberalidade do Espirito Santo concedeu aos homens. Assim pois determinou a Igreja não só que uma grande parte das Escrituras fosse recitada e piedosamente meditada no ofício quotidiano da salmodia divina, senão também que varões idôneos as expusessem e interpretassem nas Igrejas catedrais, mosteiros e conventos de regulares, onde tais estudos pudessem comodamente estabelecer-se, impondo além disto aos pastores de almas o dever de subministrar aos fieis, ao menos nos domingos e dias santificados, o pasto salutar do Evangelho. Deve-se ainda ao zelo e solicitude da Igreja aquele culto da Sagrada Escritura que atravessou sempre vivo todas as idades e sempre fecundo em opimos frutos.

6. E, para dar mais força ao nosso asserto e ás nossas exortações, apraz-nos consignar que, desde o alvorecer do cristianismo, floresceram no estudo das sagradas Letras muitos varões insignes na ciência das cousas divinas e em santidade. S. Clemente Romano, Santo Ignácio de Antioquia, S. Policarpo, discípulos imediatos dos apóstolos, e, dentre os apologistas, S. Justino e Santo Irineu, hauriram principalmente das Escrituras aquela fé, energia e unção com que, nas suas epístolas e livros, ora defendiam ora recomendavam os dogmas católicos. Nas mesmas escolas catequéticas e teológicas instituídas em muitas Sés episcopais, nas celebérrimas cátedras de Alexandria e Antioquia, abertas ao ensino, o magistério quase todo se resumia na leitura, exposição e defesa da palavra de Deus escrita. De tais institutos [saiu uma legião de Padres e escritores cujo talento fecundo e obras de subido valor, durante o longo período de três séculos, mereceram que aquela época fosse dado, e com toda a justiça, o título de idade áurea da exegese bíblica. Entre os orientais ocupa um lugar primacial Orígenes, admirável pela perspicácia do seu talento e tenacidade no estudo. Aos seus muitos escritos, á sua momentosa obra das Héxaplas, recorreram quase todos que se lhe seguiram. Ha a acrescentar a estes uma numerosa pleiade de escritores que alargaram o âmbito da exegese, sobressaindo, entre os mais distintos, em Alexandria, Clemente e Cirilo; na Palestina, Eusébio e Cirilo de Jerusalém; na Capadócia, Basílio Magno e os dois Gregórios, Nazianzeno e Nisseno; em Antiochia, aquele João Chrysostomo em cuja pena de exegeta a excelência da doutrina disputa primazias com a sublimidade da eloquência. Não menor é o esplendor da exegese no Ocidente. Entre os muitos que tanto se avantajaram nesta disciplina fulgem os nomes de Hilário e Ambrósio, de Leão e Gregório Magno, e, com brilho especial, os de Agostinho e Jeronimo; o primeiro, de admirável agudeza de engenho na investigação do sentido da palavra de Deus e de não menos admirável fecundidade em deduzir da mesma palavra divina argumentos em prol da verdade católica; o segundo, notável pela sua rara erudição bíblica e momentosos trabalhos escriturísticos, bem mereceu que a Igreja o proclamasse Doutor máximo.

7. Desde então até ao século xi, ainda que os estudos bíblicos não lograram aquele esplendor, nem produziram aqueles frutos que nos séculos idos, floresceram todavia, principalmente nas obras de escritores eclesiásticos. Cuidaram estes com efeito em colecionar o que de mais importante escreveram os antigos, em dispô-lo ordenadamente, e enriqueço-o de novas investigações, e tais foram os trabalhos de Isidoro de Sevilha, de Beda e Alcuino principalmente; em ilustrar de glosas os sagrados códices, como fizeram Valafridio e Anselmo de Laon ; em firmar com novos argumentos a integridade do texto sagrado e este foi o trabalho de S. Pedro Damião e Lanfranco. No século XII muitos teólogos houve que cultivaram com merecido louvor a exposição alegórica da Sagrada Escritura ; a todos porém se avantajou S. Bernardo, cujos sermões são, na sua quase totalidade, extraídos das sagradas Letras.

8. Mas novos e mais auspiciosos incrementos produziu a disciplina dos escolásticos. E, se bem que estes procuraram estabelecer a lição fiel da versão latina, como no-lo atestam as suas correções bíblicas, foi todavia seu principal cuidado interpretar e explanar o sagrado texto. Ninguém até então conseguiu expor com mais ordem e clareza os vários e distintos sentidos da palavra divina, a sua força probativa nas demonstrações teológicas, a divisão e o argumento dos Livros santos, o escopo dos seus autores, o nexo intimo entre os diversos pensamentos bíblicos, e é evidente que tudo isto derrama abundante luz sobre os lugares obscuros da Escritura. Além de que, da doutrina dos escolásticos, tão seleta como copiosa, muito se aproveitaram os tratados de teologia e os comentários escrituristicos; e ainda nestes trabalhos a todos leva a palma S. Tomás de Aquino. Todavia, depois que Clemente V, Nosso predecessor, dotou o Atheneu de Roma e algumas Universidades famosas de cátedras para o magistério das línguas orientais, prestes os escolásticos se dedicaram com novo fervor ao estudo do códice original e versão latina da Bíblia. O estudo dos monumentos da literatura grega e o feliz advento da imprensa rasgaram vastos horizontes ao culto da sagrada Escritura. Pasma-se de assombro ao ver como em tão breve espaço de tempo se difundiram por todo o orbe católico inumeráveis exemplares impressos da Bíblia, principalmente da Vulgata. Eram glorificados e amados os Livros divinos no mesmo tempo em que os inimigos da Igreja a perseguiam com calúnias.

9. Não devemos passar em silencio os momentosos serviços que, desde o Concilio de Vienna ao de Trento, prestaram aos estudos bíblicos muitos varões doutos, especialmente das diferentes famílias religiosas. Dotados de vasta erudição e agudo engenho e aproveitando-se de novos subsídios, não só aumentaram as riquezas acumuladas dos seus maiores, senão que também prepararam o esplendor do século XVII em que pareceu reviver a idade áurea dos Padres. Ninguém ignora, e é para Nós sobremodo agradável recordá-lo, que aos Nossos predecessores, desde Pio IV a Clemente VIII, se devem as insignes edições das antigas versões Vulgata e Alexandrina, que ao depois se tornaram de uso comum em virtude do mandato de Sixto V e do mesmo Clemente VIII. É sabido ainda que pelo mesmo tempo foram dadas á estampa, escrupulosamente revistas, não só outras versões antigas da Bíblia, mas também as poliglotas de Anvers e Paris, de grande subsidio para a investigação do genuíno sentido; que não ha livro do antigo e novo Testamento que não tivesse hábeis expositores, nem questão difícil da Bíblia sobre a qual se não exercesse o talento de muitos, entre os quais alcançaram brilhante renome não poucos, profundamente lidos nas obras dos santos Padres. Não esmoreceu, felizmente, a solicitude dos nossos exegetas. Em nome da filologia e ciências análogas, o racionalismo insurgiu-se contra as Escrituras; com armas da mesma tempera muitos homens distintos e beneméritos dos estudos bíblicos vingaram aqueles livros divinos dos sofismas com que eram impugnados. Quem ponderar estes factos á luz duma critica imparcial certamente confessará que a Igreja, sem ter necessidade de incitamentos estranhos, sempre se desvelou em providencias, a fim de que as Escrituras divinas fossem outras tantas fontes de salutar doutrina para seus filhos; que sempre conservou e ilustrou com preciosos estudos aquele baluarte para cuja defesa e gloria a mesma Igreja foi divinamente instituída.

10. Mas o desígnio que intentamos, veneráveis irmãos., exige que pratiquemos convosco sobre o que mais convém á boa orientação dos estudos bíblicos. O que primeiramente devemos averiguar é quais os adversários com quem temos de combater, quais as armas e ardis em que mais confiam. Assim como nos tempos idos a luta principal foi contra os sectários do livre exame que, rejeitando as tradições divinas e o magistério da Igreja, proclamaram a Escritura como única fonte da revelação e juiz supremo da fé, assim também hoje a momentosa pugna é contra os racionalistas, oriundos do protestantismo, os quais, baseando-se no seu próprio juízo, rejeitam completamente essas relíquias da fé cristã que os seus precursores ainda respeitaram. De feito, para os racionalistas a revelação, a inspiração, a própria Escritura não passam de invenções e artifícios humanos ; as narrações bíblicas não têm realidade objetiva, são fabulas ineptas ou historias puramente subjetivas; as profecias ou foram feitas depois de realizados os factos que anunciam, ou são previsões naturais; os milagres nem merecem tal nome, nem manifestam um poder divino, são factos em certo modo admiráveis, não excedem as forças da natureza e são puros mitos; os Evangelhos e demais escritos apostólicos não são dos autores a quem se atribuem, E tentam impor tão monstruosos erros, com que julgam destruir a verdade sacrossanta dos Livros divinos, invocando os decretos duma tal ciência livre/ mas que é tão incerta para os próprios racionalistas que os induz a flagrantes contradições ou a mudar de sentir sobre o mesmo ponto. Ao passo que tais homens sentem e escrevem tão impiamente de Deus, de Cristo, do Evangelho o demais livros da Escritura, muitos há dentre eles que se decoram com o título de teólogos cristãos e evangélicos, escondendo assim, com aquele nome de muita honra, a temeridade dum talento cheio de soberba. Colaboram com estes muitos cultores doutras ciências, igualmente adversários intolerantes da revelação, auxiliando-os na luta contra a Biblia. Não podemos deplorar quanto merece ser deplorada esta guerra sem tréguas que de dia para dia se alastra com mais veemência. Investem os racionalistas contra os eruditos que facilmente podem aperceber-se contra os seus ataques, mas investem sobretudo contra a turba dos indoutos com as insidias e astúcias próprias de tão funestos inimigos. Nos seus livros, opúsculos e jornais propinam mortal veneno; insinuam-no nos seus congressos e discursos; invadem tudo, assenhoreiam-se de muitas escolas arrancadas á tutela da Igreja, onde inspiram ás dóceis e tenras inteligências dos jovens o desprezo das Escrituras, expondo-as miseravelmente ao ridículo com facécias e chocarrices. Estes são os factos, veneráveis irmãos, que devem inflamar o zelo de todos os pastores, a fim de que não só a essa nova, mas falsa ciência se oponha aquela antiga e verdadeira ciência que a Igreja recebeu de Cristo por meio dos apóstolos, mas também surjam apologistas idôneos da sagrada Escritura, já que a luta é de tamanhas proporções.

11. Seja pois o nosso primeiro cuidado que nos Seminários e academias se professe o estudo das Letras divinas consoante o exigem assim a excelência daquela disciplina, como as necessidades dos tempos atuais. Para lograr este fim haja todo o escrúpulo na escolha dos mestres, como nem todos são dignos de tão árdua missão, mas só aqueles que amam fervorosamente a Bíblia, a estudam sem cessar e têm a conveniente preparação científica. Nem menor deve ser o cuidado e escrúpulo com que devem ser educados os que hão de suceder no magistério daqueles. É por isso conveniente que, dentre os alunos que concluíram com louvor o curso teológico, se escolham, onde for possível, os de mais decidida vocação para os estudos bíblicos e se lhes facultem os meios necessários a fim de que possam lograr um profundo conhecimento das Escrituras. Assim escolhidos e formados, podem confiadamente exercer o magistério; e, para que este seja o que deve ser e produza abundantes frutos, julgamos oportuno entrar em mais largas considerações.

12. Logo desde o principio do seu magistério examinem os professores a aptidão intelectual dos alunos, cultivem-na esmeradamente e procedam de modo que os habilitem assim para defenderem os Livros divinos, como para extraírem deles o verdadeiro sentido. Este é o fim da chamada Introdução Bíblica que subministra ao aluno abundantes argumentos para demonstrar a integridade e autoridade dos Livros sagrados, para investigar e expor o seu genuíno sentido e para destruir pela raiz as cavilações com que os impugnam. É desnecessário ponderar que é de grande momento a discussão metódica e científica destes pontos, aos quais a teologia presta ótimos subsídios, como o tratado da Escritura se firma naqueles fundamentos e se esclarece com aquelas luzes.

13. Aplique-se depois o professor, e nisto empenhe todo o seu zelo, á exegese, que é a parte mais importante do seu magistério, ensinando aos seus discípulos como podem converter em proveito da religião e da piedade as riquezas da palavra divina. Bem sabemos que nem a vastidão da matéria, nem a estreiteza do tempo permitem que se estudem nas escolas todos os livros canônicos; todavia, atenta a necessidade de método para o estudo da exegese, fica á prudência do professor evitar os extremos daqueles que ou analisam certas pericopas em todos os livros da Escritura, ou dos que gastam todo o tempo na análise duma determinada passagem num só livro. Se pois na maioria das escolas não se pode fazer a análise detida dum ou doutro livro canônico, como se faz nas academias de ensino superior, ao menos empenhem-se os professores em dar uma instrução acabada das pericopas que escolheram para estudo exegético, a fim de que os alunos, assim doutrinados com tal tirocínio, possam ao depois fazer trabalho seu sobre os demais livros da Escritura, cuja lição devem sempre amar.

14. Fiel ás antigas tradições, ao professor impende o dever de usar da versão Vulgata que, sobre ser recomendada pelo uso quotidiano da Igreja, deve ter-se, segundo o decreto tridentino, como autentica, nas lições públicas, nas predicas, nas discussões e analises. Não queremos dizer com isto que se ponham de parte as outras versões, tão usadas e encarecidas pela antiguidade cristã, e muito principalmente os códices primitivos. Se o sentido é claro na Vulgata latina, não é necessário recorrer á versão donde foi imediatamente traduzido; se, porém, é ambíguo e obscuro, aconselha Santo Agostinho o recurso á versão hebraica ou grega, consoante o texto latino é vertido daquela ou desta língua. É manifesto que muito cuidada deve ser a circunspecção neste ponto, pois que — “é ofício do interprete expor não o seu sentido, mas o do autor que interpreta”.

15. Ponderada atentamente, quando necessário, a genuína lição, está aberto o caminho para investigar e expor o sentido. Depois, a primeira indústria é observar as boas regras hermenêuticas, comumente usadas, e com tanto maior cuidado quanto mais viva e tenaz for a controvérsia com os adversários. Para tal efeito, é de necessidade ponderar o valor das palavras, o contexto, os lugares paralelos. . . revestindo todos estes meios hermenêuticos duma erudição a propósito, mas parcimoniosa; que não suceda malbaratar o tempo e o trabalho que se devia dedicar ao conhecimento dos livros divinos, ou que a acumulação de ideias sobre vários pontos vá prejudicar o aproveitamento dos alunos em vez de lhes ser auxilio.

16. Com este método, o uso da sagrada Escritura será de grande eficácia nas demonstrações teológicas. Não esqueçamos nunca que, além das causas de dificuldade que ordinariamente ocorrem para a inteligência dos livros antigos, ha outras peculiares dos Livros sagrados. Escritos sob o influxo do Espirito Santo contêm mistérios altíssimos que transcendem a esfera da razão humana e muitas outras verdades intimamente ligadas com elles; umas vezes o sentido é mais lato e recôndito do que a letra e as leis hermenêuticas parecem indicar, outras vezes o sentido literal oculta outros sentidos de muito alcance já para ilustrar o dogma, já para persuadir os preceitos mor a es. Não é pois de admirar que os Livros sagrados apareçam envolvidos em certa obscuridade religiosa, de modo que ninguém ouse estudá-los sem luz que lhe alumie os passos. Assim o dispôs a providência divina, no sentir comum dos Santos Padres, para que os homens os estudassem com mais vontade e diligencia e ficassem profundamente gravados em sua alma os conceitos havidos com esforço, e, sobretudo, intendessem que Deus confiou as Escrituras á sua Igreja, como a mestra e guia segura e interprete fiel da sua palavra. Em verdade, onde os dons de Deus, aí é que deve aprender-se a verdade; onde a sucessão apostólica aí é que está o magistério inerrante das Escrituras, como no-lo diz Santo Irineu. Esta doutrina, que é a de todos os Padres, proclamou- a o Concilio do Vaticano, quando renovou o decreto tridentino acerca da interpretação da palavra de Deus escrita : — É crença do Concilio que em pontos de fé e costumes, atinentes a edificação da doutrina cristã, deve ter-se como verdadeiro o sentido da sagrada Escritura aquele que sempre professou e professa a Santa Madre Igreja, a quem pertence julgar do verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras santas; e por isso a ninguém é licito interpretar a Escritura sagrada contra aquele sentido ou ainda contra o consenso unanime dos Padres.

17. Com tal doutrina, toda informada duma alta sabedoria, a Igreja, longe de obstar aos progressos da verdadeira ciência bíblica, antes os fomenta, pondo-os a bom recato contra todo o erro. Na verdade, fica aberto a todo o interprete largo campo onde pôde exercer seguramente a sua atividade e com grande proveito para a Igreja. Nos lugares da sagrada Escritura, cujo sentido ainda não está determinado dum modo certo e seguro, pode proceder por forma que os seus estudos sejam, por suave desígnio da providencia divina, outros tantos subsídios para que a Igreja pronuncie o seu juízo supremo; nos lugares, porém, cujo sentido já está definido, pôde prestar ainda grandes serviços, tornando-o quer de mais fácil inteligência para os rudes, quer mais brilhante para os doutos, quer, finalmente, mais persuasivo para reduzir e levar de vencida os adversários. Por tanto, é dever sagrado de todo o interprete católico ajustar-se a esta norma: os lugares da sagrada Escritura, cujo sentido foi autenticamente determinado quer pelos hagiógrafos divinamente inspirados, como sucede em muitos lugares do novo Testamento, quer pela Igreja assistida do Espirito Santo, quer por um juízo solene, quer pelo magistério ordinário e universal da mesma Igreja, não são susceptíveis doutra interpretação; demonstrando, pelos subsídios de que dispõe, que tal interpretação é a única que se compadece com as leis duma sã hermenêutica. Quanto aos outros lugares, a norma suprema é seguir a analogia da fé e a doutrina católica tal como é proposta pela Igreja, pois que, sendo Deus o único autor dos Livros sagrados e da doutrina confiada ao magistério da mesma Igreja, é impossível que seja deduzido das regras duma legitima interpretação o sentido oposto aquela doutrina. Infere-se daqui que deve rejeitar-se como inepta e falsa aquela interpretação que de qualquer modo torne contraditórios entre si os autores inspirados ou colida com a doutrina da Igreja.

18. Brilhe pois no professor de hermenêutica sagrada não só uma solida ciência de toda a teologia, senão também um profundo conhecimento dos comentários dos Santos Padres e Doutores, e das obras dos interpretes autorizados. Isto recomenda S. Jeronimo e com grande encarecimento Santo Agostinho, que, com justa queixa, exclama: — “Se qualquer disciplina, por mais humilde e fácil que seja, demanda, para ser intendida, um preceptor ou mestre, haverá nada mais temerário e soberbo que tentar conhecer os Livros divinos, rejeitando os seus interpretes?’. O mesmo sentiram e confirmaram com o seu exemplo os demais Padres, que “na investigação do sentido das Escrituras seguiam não o seu próprio juízo, mas os escritos e autoridade de seus maiores, como estes receberam da sucessão apostólica a regra da genuína interpretação”.

19. O ensino dos Santos Padres que “depois dos Apóstolos propagaram a santa Igreja, instruindo-a com o seu magistério, edificando-a com as suas virtudes, acrescentando-a com a sua doutrina”, é de suma autoridade sempre que todos são unanimes em explicar do mesmo modo um dado lugar bíblico relativo á fé ou á moral, porque naquela unanimidade nitidamente resplandece o facto de que tal ensino é, segundo a fé católica, de procedência apostólica. Deve ter-se ainda em grande preço o ensino dos Padres sobre o mesmo lugar bíblico, quando falam como doutores particulares, porque não só a sua remontada ciência da doutrina revelada e opulenta erudição, de grande momento para a inteligência dos livros sagrados, os torna altamente recomendáveis, senão também porque Deus auxiliou com mais vivas luzes e graças aqueles varões insignes em ciência e santidade. Se pois o interprete quer ser digno deste nome siga com respeito os exemplos dos Santos Padres e estude com inteligente critério as suas obras.

20. Nem se diga que, procedendo assim, não pôde ir mais além, pois que, sendo necessário, deve progredir nas suas investigações, contanto que preste rendido obsequio aquele sábio preceito de Santo Agostinho, a saber: — “que nunca devemos abandonar o sentido literal e obvio, salvo se uma razão grave ou a necessidade nos obrigam a abandoná-lo”, preceito este que deve observar-se tanto mais firmemente quanto é certo que, neste maré magnum de opiniões e desenfreada ambição de novidades, ha perigo iminente de errar. Tenha também o interprete todo o cuidado em não desprezar o sentido alegórico e analógico que os mesmos Padres deram, por translação, a alguns lugares bíblicos, mormente quando tal sentido se deduz do literal e tem em seu abono a autoridade de muitos. Este modo de interpretar recebeu-o a Igreja dos Apóstolos, e ela mesma o confirmou com o seu exemplo, como no-lo atesta a liturgia. Nem os Padres usaram do sentido alegórico para demonstrar os dogmas da fé, mas porque por experiência sabiam que tal sentido era de muito fruto para fomentar a virtude e a piedade.

21. É de menos conta, certamente, a autoridade dos demais interpretes católicos; todavia, como os estudos bíblicos têm progredido muito na Igreja, é justo que se preste a devida honra aos comentários daqueles interpretes, pois que grandes subsídios prestam para vingar o genuíno sentido e muita luz derramam sobre os lugares mais difíceis. O que de modo algum convém é que se desconheçam ou desprezem as excelentes obras que os nossos nos legaram, se prefiram as dos hereges e se procure neles, com perigo evidente da sã doutrina e não raro detrimento da fé, a explicação dos lugares que o talento e os escritos dos católicos já de há muito explicaram otimamente. Se é verdade que as obras dos hereges usadas com prudência, podem algumas vezes auxiliar o interprete católico, é também verdade, como no-lo atestam numerosos documentos dos nossos maiores, que, fora da Igreja, nunca podemos achar o sentido incorrupto das sagradas Letras, nem tal sentido pode ser alcançado por aqueles que, privados da verdadeira fé, conhecem apenas muito superficialmente as Escrituras.

22. O que sobre tudo é muito para desejar, necessário mesmo, é que o uso da sagrada Escritura seja como que a alma de todas as ações da teologia e as informe; que tal é a doutrina professada e praticada pelos Padres e teólogos preclaríssimos de todos os tempos. Procuraram eles, com efeito, estabelecer e demonstrar com argumentos tirados principalmente das sagradas Letras as verdades dogmáticas e as que destas se deduzem; aos mesmos Livros divinos recorreram e ás tradições apostólicas para refutar as novas fabulas dos hereges e investigar a razão, o sentido e o nexo dos dogmas católicos. E não estranhemos que assim seja, pois é tão distinto o lugar que os Livros divinos ocupam entre as fontes da revelação que, sem o seu estudo e uso assíduo, a teologia não pôde ser cultivada como deve sê-lo, nem considerada com a dignidade que merece. Nada mais justo que os alunos das academias e escolas sejam doutrinados na ciência dos dogmas e que, mediante ordenada discussão, deduzam dos artigos de fé outras verdades, segundo as normas duma filosofia solida e digna deste nome; todavia, o teólogo erudito e grave nunca deve desprezar a demonstração dos dogmas, deduzida da autoridade da Bíblia. “A teologia não recebe os seus princípios das outras ciências mas imediatamente da revelação divina. Por isso nada recebe das outras ciências como se estas lhe fossem superiores, mas serve-se delias como de inferiores e subalternas”. Este é o método do magistério da ciência sagrada, proposto e encarecido pelo príncipe dos teólogos, S. Tomás de Aquino. Conhecendo a fundo a Índole da teologia cristã, ensinou o aquinate como é que o teólogo pôde defender os seus princípios, quando impugnados. “Nas controvérsias, se o adversário admite alguns princípios revelados, então assim como argumentamos contra os hereges com a autoridade da Escritura, assim também com um artigo de fé podemos argumentar contra os que negam outro. Se porém o adversário nada admite do que a revelação ensina, ainda que não podemos argumentar com a razão para demonstrar artigos de fé, podemos todavia refutar com a razão os seus argumentos, se alguns aduz contra a fé”.

23. Assim, pois, cuide-se com esmero que os alunos se preparem para a luta convenientemente apercebidos e doutrinados nos estudos bíblicos, para que não sejam frustradas as nossas esperanças, e, o que seria pior, para que, incautos, não fiquem expostos ao perigo de erro, iludidos pelas falácias e falsa erudição dos racionalistas. E adestrar-se-ão denodados apologistas se, tomando o caminho que Nós lhes indicamos, cultivarem religiosamente e conhecerem a fundo a filosofia e a teologia, segundo a mente de S. Tomás. Deste modo caminharão com passo seguro já nos estudos bíblicos, já na teologia positiva.

24. Expor, demonstrar e ilustrar a doutrina católica, por meio duma legitima e esmerada interpretação dos Livros sagrados é, certamente, empresa de remontado alcance; há todavia outra de tão grave momento como árdua, e é: demonstrar dum modo invencível a autoridade absoluta das Escrituras. Tal demonstração só a poderá fazer o magistério autêntico da Igreja, a qual por si mesma, pela sua admirável propagação, exímia santidade e inexaurível fecundidade em todos os bens, pela sua unidade católica e invencível estabilidade é um grande e perpetuo motivo de credibilidade e um testemunho irrefragável da sua missão divina. E, porque o magistério da Igreja, divino e infalível, se baseia ainda na autoridade da sagrada Escritura, o primeiro cuidado será demonstrar direta e indiretamente que aquele livro é digno de fé, ao menos humana. Com as Escrituras, como testemunhas fidedignas da antiguidade, demonstra-se peremptoriamente a divindade e a missão de nosso Senhor Jesus Cristo, a instituição da hierarquia da Igreja, o primado conferido a Pedro e aos seus sucessores. É por isso de suma conveniência que muitos soldados da milícia sagrada combatam pela fé e repilam as investidas dos inimigos da Bíblia, revestidos sobre tudo da armadura de Deus, tão recomendada pelo apostolo e apercebidos contra os embates e armas novas dos inimigos. Eloquentemente S. João Chrysostomo, falando dos deveres sacerdotais : — “Grande zelo devemos empregar a fim de que a palavra de Cristo habite abundantemente em nós; não nos contentemos com estarmos prestes para um só género de luta ; a guerra toma diversas fases e são muitos OS inimigos; nem todos usam armas da mesma traça; não é uma só a estratégia com que intentam combater-nos. Torna-se por isso necessário que, se alguém quiser bater-se com todos, conheça as armas e as industrias de todos; que seja sagitário e fundibulario, tribuno e comandante de manipulo, general e soldado, infante e cavaleiro, marinheiro e adestrado no ataque ás praças fortificadas. Se não conhece todos os artifícios bíblicos, sabe o diabo ordenar aos seus lobos que, pela parte desguarnecida, arrebatam as ovelhas”. Quase as falácias e variados artifícios dos adversários nos seus ataques contra a Bíblia, já os indicamos resta-nos dizer dos meios de defesa.

25. O primeiro é o estudo das antigas línguas orientais e da arte critica. E como estas disciplinas são atualmente de grande importância e muito encarecidas, o professor eclesiástico que as cultive com maior ou menor desenvolvimento, consoante as circunstancias do lugar e das pessoas, com mais aproveitamento poderá exercer o seu honroso magistério, porque deve ser tudo para todos e prestes sempre para responder ao que lhe peça a razão da esperança que manifesta. Torna-se pois necessário para os mestres da sagrada Escritura, e é conveniente para os teólogos, o conhecimento das línguas em que os livros canónicos foram primitivamente escritos pelos hagiógrafos; e seria muito para desejar que também as cultivassem os alunos teólogos, nomeadamente os que aspiram aos graus académicos. Igualmente é necessário que em todas as academias, imitando o louvável exemplo dalgumas, se estabeleçam cátedras das demais línguas antigas, principalmente semíticas, e da sua literatura, como são de grande conta para os que se destinam ao magistério das sagradas Letras.

26. E, porque estes hão de exercer o magistério, é muito conveniente que tenham um conhecimento profundo e expedito da verdadeira arte crítica, visto que se inventou, ainda mal e com dano da religião, um novo artificio, decorado com o titulo de critica superior, que, em vão, pretende demonstrar, exclusivamente com argumentos intrínsecos, como dizem, a origem, integridade e auctoridade de qualquer livro. Mas a verdade é que, tratando-se de questões históricas, para demonstrar a origem e integridade dum livro qualquer, maior valor têm os documentos históricos do que as razões intrínsecas, e são precisamente aqueles que mais convêm investigar e discutir ; que as razões intrínsecas não têm o mesmo, valor e só se podem aduzir para confirmar as extrínsecas. Seguir-se-ão grandes inconvenientes procedendo doutro modo. Assim crescerá a audácia dos inimigos da religião em impugnar e destruir a autenticidade dos Livros sagrados ; a chamada critica superior abrirá larga porta para que cada um siga a interpretação mais ao sabor dos seus desejos e prejuízos; não brilhará nas Escrituras a luz que se busca; não se deduzirá delias doutrina alguma certa; ficará aberto largo caminho para aquela conhecida característica do erro que é a variabilidade e a contradição no sentir, como já o demonstram os príncipes da nova critica superior; e porque muitos já estão eivados das ideias duma filosofia vã e racionalista, não se pejam de expungir dos Livros sagrados os milagres, as profecias, numa palavra, tudo que pertence á ordem sobrenatural.

27. O interprete tem depois de haver-se com os que, abusando das ciências físicas e examinando minuciosamente os Livros sagrados, acusam os seus autores de ignorantes daquelas ciências e cobrem de vitupérios os seus escritos. E, como estas acusações versam sobre cousas sensíveis, tornam-se sumamente perigosas, quando conhecidas dos indoutos e muito principalmente da mocidade estudiosa, que, se deixa de prestar fé a um só artigo da revelação divina, facilmente a rejeitará toda. É por demais sabido que as ciências da natureza, se convenientemente estudadas são de subida importância para contemplar a gloria do criador supremo refletida nas cousas criadas preversamente infiltradas em inteligências ainda tenras destroem os princípios da sã filosofia e depravam os costumes. Será por isso de muita conta para o professor da sagrada Escritura o conhecimento das ciências naturais, para que assim mais facilmente descubra e destrua os laços armados contra os Livros divinos.

28. Entre a teologia e as ciências experimentais não ha, certamente, desacordo algum real, quando aquela e estas não ultrapassam a sua espera, precavendo-se ambas com esta admoestação dê Santo Agostinho:— “Nada se deve afirmar temerariamente, nem dar como conhecido o que é desconhecido” . Havendo discordância entre aquelas ciências e a teologia, de como se há de haver o teólogo di-lo está resumida norma de Santo Agostinho: — “Não colidem com o magistério da Escritura os factos científicos devidamente comprovados; o que as ciências da natureza opõem como contrário aquele magistério deve ser tido na conta de meras hipóteses ou falsas afirmações. Para devidamente ponderar a justeza desta norma devemos ter em vista que os hagiógrafos, ou antes “o Espirito de Deus que os inspirou, não intentara instruir os homens acerca da constituição intima do universo, como isto de nenhum proveito era para a salvação”. É por isso que os escritores sagrados, pondo de parte a observação da natureza, vão direitos ao seu fim; e se, por vezes, descem a falar das cousas criadas, empregam o sentido metafórico, servindo-se da linguagem vulgarmente usada naqueles tempos. Ainda hoje tal modo de dizer é frequente mesmo entre os sábios. Na linguagem vulgar, as cousas designam-se espontânea e propriamente como se apresentam aos sentidos. Assim procederam os hagiógrafos: — “descrevem as cousas, diz o Doutor angélico, taes como sensivelmente apareciam” ou então, o que o próprio Deus lhes significava, acomodando-os á linguagem humana e á capacidade dos mesmos escritores sagrados.

29. Da necessidade de defender valorosamente a Escritura santa não se conclui que devamos defender com o mesmo zelo todas as interpretações que cada um dos Padres e comentadores deram aos lugares bíblicos. Conformando-se, na exposição dos textos que se referem a fenômenos físicos, com as ideias correntes no seu tempo, talvez caíssem em erro, perfilhando ideias que hoje não se admitem. Por isso, é de necessidade examinar atentamente quais as cousas que ensinam como pertencentes a fé ou relacionadas com ela e quais as que unanimemente professam, porque nas que não são de fé necessária, diz S. Tomás, foi licito aos Santos e é licito a nós pensar de modo diverso. E noutro lugar acrescenta com grande prudência — “Parece-me ser mais seguro não afirmar como dogmas de fé o que os filósofos comumente sentem e que não colide com a fé, nem também negá-lo como oposto á fé, para não darmos azo a que os sábios deste mundo rejeitem a doutrina revelada”. No entanto, se bem que o interprete deva demonstrar que nas Escrituras, intendidas como devem sô-lo, nada ha que se oponha ao que os naturalistas afirmam como certo, esteja contudo de sobreaviso, pois pôde suceder que seja amanhã havido como duvidoso e até rejeitado como falso o que hoje é recebido como certo. Além disso, se os escritores de ciências experimentais, ultrapassando os limites da sua esfera, invadirem o campo da filosofia, semeando nele ideias erro nas, deixe o teólogo exegeta aos filósofos o encargo de as refutar.

30. Passemos agora á aplicação destas considerações ás ciências afins, e nomeadamente á história. É para lamentar que muitos se exponham a grandes fadigas no estudo dos monumentos arqueológicos, dos costumes e instituições dos povos, e doutros assumptos análogos, mas não raro com o propósito de descobrir erros nos Livros sagrados e enfraquecer a sua autoridade divina. Outros ha que se dedicam aos mesmos estudos, mas com animo exageradamente hostil e critério apaixonado. Confiam nos livros humanos e nos documentos da antiguidade, como se neles não poderá haver nem ténue sombra de erro, e negam credito aos Livros da sagrada Escritura á mais leve aparência do erro e sem o mais superficial exame. Pode realmente admitir-se que nos códices escapassem algumas incorreções, devidas á incúria dos copistas, mas isto deve ser maduramente considerado e só admitido nos lugares onde o erro é evidente. Pode ainda admitir-se que seja duvidosa a genuína lição dalgum lugar e para esclarecimento da qual são de grande monta as regras duma boa hermenêutica, mas nunca será licito ou restringir a inspiração unicamente a algumas partes da sagrada escritura, ou conceder que o autor sagrado errou. Também não pôde tolerar-se o expediente daqueles que julgam desembaraçar-se de dificuldades, não hesitando em conceder que só são divinamente inspirados os pontos de fé e de moral, porque erradamente pensam que, quando se trata de apurar a verdade dum conceito, não deve atender-se tanto ao que Deus disse como á razão por que o disse. E, na verdade, foram escritos sob a inspiração do Espirito Santo todos os livros que a Igreja recebeu como sagrados e canônicos, com todas as suas partes; ora é impossível que na inspiração divina haja erro, visto como a mesma inspiração só por si não somente exclui todo o erro, senão também que o exclui tão necessariamente quanto necessariamente repugna que Deus, Verdade suma, seja autor de erro algum.

31. Esta é a antiga e constante crença da Igreja, solenemente definida nos Concílios de Florença e Trento, confirmada e mais desenvolvidamente declarada no Concilio Vaticano, neste decreto peremptório: — Devem ser recebidos como sagrados e canônicos todos os livros do Velho e Novo Testamento, com todas as suas partes, consoante vêm referidos no decreto do mesmo Concilio (tridentino) e como se contém na antiga edição latina da Vulgata. A Igreja tem estes livros como sagrados e canônicos, não porque fossem compostos só por indústria humana e depois aprovados pela sua autoridade, nem ainda somente porque contém doutrina revelada e verdadeira, mas porque, escritos sob o fluxo do Espirito Santo, têm a Deus como autor. Nem se diga que o Espirito Santo se serviu de homens como de instrumentos para escrever, e que, por isso, os erros que por ventura haja nas Escrituras se devem atribuir não a Deus, autor primário dos Livros santos, mas aos hagiógrafos. De feito, assim como o Espirito Santo excitou e moveu os autores sagrados a escrever, assim também lhes assistiu de modo que só escreveram, com pura intenção, fielmente e com verdade infalível, tudo o que lhes ordenou que escrevessem e só isso, aliás não seria Deus o autor de toda a Escritura sagrada. Este foi o sentir constante dos Santos Padres. “Pois que os hagiógrafos, diz Santo Agostinho, só escreveram o que o Espirito Santo lhes inspirou, nunca se pôde dizer que não foi Ele quem escreveu: os escritores sagrados, como membros, só escreveram o que a cabeça lhes ditava”. E S. Gregório Magno: “Ineptamente pergunta quem escreveu as Escrituras aquele que firmemente crê que é o Espirito Santo o seu autor. Escreveu esse que ditou o que se devia escrever ; escreveu essa que inspirou a obra”. Desdiz-se daqui, que pervertem a noção católica de inspiração divina, ou convertem Deus em autor de erro, os que julgam ser possível haver erros nos lugares autênticos dos Livros sagrados. E tão profundamente arraigada era a crença de todos os Padres e Doutores de que as sagradas Letras, tais como saíram da pena dos hagiógrafos, são absolutamente imunes de todo o erro, que procuram com igual engenho e piedade conciliar entre si os poucos lugares e são precisamente os que a nova crítica argue que parecem encontrados e contraditórios confessando unanimemente que aqueles livros, em toda a sua integridade e em todas as suas partes, são divinamente inspirados, e que, falando Deus pelos hagiógrafos, nada podia inspirar que não fosse verdade. Sirvam de lição para todos aquelas palavras que o mesmo Santo Agostinho escreveu a S. Jeronimo — “Eu de mim confesso que da tua caridade aprendi a prestar unicamente aos livros das Escrituras, que ora denominamos canônicas, tal respeito e honra, que firmissimamente creio que nenhum dos seus autores caiu, ao escrevê-los, na mais leve sombra de erro. E, se eu achar naqueles livros algo que pareça encontrar a verdade, não hesitarei em confessar ou que o códice não é fiel, ou que o interprete não alcançou o sentido do que estava escrito, ou que eu não logrei entendê-lo”.

32. Pugnar vantajosamente com os recursos de todas as ciências em prol da santidade das Escrituras empresa é muito superior ao que é justo esperar da indústria dos teólogos e interpretes. É por isso muito para desejar que tomem a peito tal empresa os sábios católicos de reconhecida competência e autoridade. Nunca faltou á Igreja, mercê de Deus, e oxalá que sempre aumente para acrescentamento da fé, a gloria de tais talentos. É sobre toda a ponderação conveniente que sejam em maior número e mais esforçados do que os inimigos da Bíblia, os defensores da verdade, porque nada há mais eficaz para persuadir o vulgo a render-lhe homenagem do que vê-la liberrimamente professada por homens eminentes em qualquer ciência. Além disso, ficará quebrada a audácia dos nossos detratores, e certamente não ousarão afirmar com tanta petulância que a ciência é incompatível com a fé, ao verem que homens eminentes em ciência prestam rendida homenagem á palavra de Deus. E pois que tantos serviços podem prestar á religião aqueles a quem a suma benignidade de Deus concedeu a graça da fé católica e o dom apreciável do talento, nesta febre de estudos por qualquer modo relacionados com as Escrituras, escolham aquele que mais se compadeça com as suas aptidões, e, versados nele, saiam a campo e repilam, que lhes vae nisso grande gloria, os ataques da ciência indigna de tal nome. Vem de molde para aqui e é-nos grato aprovar a benemérita deliberação dalguns católicos de criarem associações que subsidiem largamente e prestem todos os recursos a homens distintos em ciência, a fim de que cultivem aqueles estudos e promovam os seus progressos. Ótimo, em verdade, e muito oportuno nas circunstancias atuais, este emprego de dinheiro. Quanto menor for o subsidio que os católicos podem esperar dos poderes públicos para o progresso dos seus estudos, tanto maior deve ser a liberalidade dos particulares; e saibam aqueles a quem Deus concedeu riquezas que bom uso fazem delias convertendo-as em defesa do tesouro da verdade revelada.

33. Para que todos estes trabalhos redundem em grande proveito dos estudos bíblicos, instem os eruditos nos princípios que deixamos estabelecidos, e creiam firmemente que Deus, criador e governador supremo de todas as cousas, é também o autor das Escrituras, e que, portanto, nada ha na economia do universo, nem nos monumentos históricos que possa contradizê-las. Se porém parecer dar-se tal conflito, haja todo o cuidado em compô-lo, já recorrendo ao juízo prudente dos teólogos e interpretes para apurar o que há de verdadeiro ou verosímil no lugar que se discute, já ponderando com novo cuidado as dificuldades que se aduzem. E não se deve levantar mão deste trabalho sem que desapareça a mínima sombra de conflito, porque, sendo impossível que a verdade se oponha á verdade, ou a interpretação das palavras do texto foi errónea ou a discussão dele mal dirigida. Se nenhuma destas hipóteses puder verificar-se, suspenda-se o juízo até que a verdade apareça. Muitas e graves acusações se levantaram, durante largo espaço de tempo, em nome das ciências, contra as Escrituras; e todavia caíram como vãs em completo olvido; vários foram os sentidos dados a certos lugares bíblicos salvo aos que propriamente pertencem à fé e a moral; e contudo foram ao depois interpretados com mais justeza e propriedade. É que o tempo mata o erro, mas «a verdade vive sempre e cada vez com mais pujança”. Ora, assim como nunca houve ninguém tão soberbo que se arrogasse o pleno conhecimento de toda a Escritura, quando o próprio Santo Agostinho confessava que era maior a sua ignorância do que a sua ciência da Bíblia, assim também, se algum texto encontrarmos de mui difícil explicação sigamos a norma tão moderada como prudente do mesmo Doutor : — “Melhor é sentir o espirito angustiado ao contemplar sinais cuja significação não conhece, mas que são úteis, do que, interpretando-os inutilmente, libertar-se do jugo da submissão para se precipitar nos laços do erro”. Se os que professam os estudos subsidiários da Bíblia seguirem discreta e fielmente estes Nossos conselhos e mandatos; se, escrevendo e ensinando, aproveitarem o fruto dos seus estudos na redução dos inimigos da verdade e em precaver a juventude contra os danos da fé, então, enfim, poderão exultar de jubilo por dignamente servirem as sagradas Letras e prestarem á fé católica um serviço tal como a Igreja tem direito a esperar da piedade e ciência de seus filhos.

34. Estes são, veneráveis irmãos, os mandatos e exortações que, obedecendo á voz de Deus, julgamos oportuno dirigir-vos acerca dos estudos bíblicos. Está da vossa parte agora procurar que sejam fielmente guardados e observados com o acatamento que é de justiça e de modo que brilhe cada vez mais a devida gratidão para com Deus por ter comunicado ao gênero humano os tesouros da sua sabedoria ; e que a suspirada vantagem daqueles estudos redunde sobretudo em proveito da instrução dos jovens aspirantes ao sacerdócio, pois são eles objeto de grande solicitude Nossa e a esperança da Igreja. Com a vossa autoridade e exortações trabalhai com animo varonil, para que nos seminários e academias sujeitas á vossa obediência, os estudos bíblicos tenham o lugar de honra que lhe pertence e progridam. Praza aos céus que floresçam, sob a direção da Igreja, segundo os salutares documentos e exemplos dos Santos Padres e louvável costume dos nossos maiores: que no decurso dos tempos alcancem tais incrementos que redundem em defesa e gloria da verdade católica, divinamente revelada para salvação perene dos povos.

35. Exortamos, finalmente, com paternal caridade, todos os alunos e ministros da Igreja que estudem as sagradas Letras sempre com sumo afeto, reverencia e piedade. Nunca se poderá lograr salutarmente, como é de necessidade, a inteligência das Escrituras sem renunciar á soberba da ciência terrena e perseverar no santo exercício da sabedoria que vem do alto. Iniciada nesta silencia, ilustrada e fortalecida por ela, a inteligência terá admirável luz para conhecer e evitar o que ha de mau na silencia humana e converter os seus sólidos frutos noutros tantos meios de salvação eterna. E a alma inflamada em zelo aspirará com mais veemência aos bens inefáveis da virtude e do amor divino : — Bem-aventurados os que investigam os testemunhos de Deus, e com todo o coração o buscam. Animado com a esperança do auxílio divino e confiado na vossa solicitude pastoral, paternalmente concedemos no Senhor a benção Apostólica, penhor de dons celestes e testemunha da Nossa particular benevolência, a vós, a todo o vosso clero e fieis.

Dada em Roma, em S. Pedro, aos 18 de novembro de 1893, ano decimo sexto do Nosso Pontificado.

Papa Leão XIII

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