Qual a base da teologia moral? O homem, não suas ações. O mundo moderno tem esta lamentável tendência a ver o homem não como um homem, mas como aquilo que ele faz. O mundo moderno ignora a ontologia, o ser do homem (ou de qualquer outra criatura, aliás). Isto explica como se pode chegar a algo tão anti-cristão como uma pseudo-moral puritana que realmente, de boa intenção, acha não só que se tatuar é pecado, como ainda crê – novamente na melhor das intenções – que uma leitura fora de contexto de um versículo da Sagrada Escritura dedicado ao cuidado para que o judeu não seja confundido com o idólatra justifique tamanho erro (e provavelmente não justifique o barbão que o versículo anterior manda manter – “não rapareis a barba”, Lv 19,27).
Para o moderno, não há homem e não há mulher, como não há animal ou planta. O moderno vê o homem como “homo economicus” (o homem em suas ações e suas relações econômicas), “homo ludens” (o homem em suas ações e relações de lazer), “homo civis” (o homem no exercício de sua cidadania), etc., mas jamais como homem, ente subsistente de natureza humana. Isto se manifesta em praticamente todos os aspectos da sociedade anti-cristã em que vivemos. É esta ausência de percepção do que seja o homem, por exemplo, que leva à identificação do matrimônio com uma “relação de ajuda mútua e alívio da concupiscência” apenas (o que permite – por que não? – que se proponha que dois homens possam contrair matrimônio entre si; se o que importa é a relação, basta redefinir a relação dos sodomitas e teremos o mesmo que um casal. A diferença entre um casal e um par de sodomitas é ontológica, e é o ontológico que é negado pelo pensamento moderno).
É ainda esta mesma doentia distorção da realidade que leva, por exemplo, a procurar justificar o aborto afirmando que a criança no ventre da mãe não tem consciência, o que supostamente faria dela um não-humano. Afinal, se o homem é o que ele faz, um bebê – que nada faz – não é um homem. Alguns chegam a levar ainda mais longe este raciocínio e propor a eutanásia dos doentes inconscientes, o morticínio de crianças já nascidas mas ainda incapazes de se comunicar, e ao mesmo tempo a proteção à vida de bichos deambulantes. Este é o caso do Prof. Singer, professor de Bioética em Princeton, por exemplo.
Para a visão cristã clássica, porém, o que é o homem? Ele decididamente não é o que ele faz. Ele é um homem, e pronto. Esta sua condição é ontológica, ou seja, é o que ele *é*. A determinação da virtude e do pecado, portanto, é decorrente desta visão ontológica do homem; não há “listas de pecados” universalmente válidos sem um suporte ontológico.
O que Deus quer de nós não é que violentemos a nossa natureza, que deixemos de fazer isso ou aquilo e nos forcemos a fazer tal e tal outra coisa. Ele quer que sejamos nós mesmos, mas não apenas nós mesmos: nós mesmos o melhor possível. Ele quer que o Rui seja o melhor Rui possível, que o Carlos seja o melhor Carlos possível, que o Antônio seja o melhor Antônio possível, etc. É por isso que dizemos que a graça não tolhe a natureza, mas a aperfeiçoa.
A sociedade moderna, porém, simplesmente é incapaz de compreender este ponto tão importante, que está na base de nossa Fé (posto que Nosso Senhor assumiu a nossa natureza, tornando-se uma só Pessoa substancial de natureza humana e divina; do mesmo modo, o Santíssimo Sacramento é ontologicamente – não apenas epistemologicamente – Nosso Senhor, do mesmo modo o Batismo e a Ordem exercem transformações ontológicas… Sem o pensamento ontológico não há Fé cristã). Esta horrenda negação do Ser, da nossa participação individual no Ser em Si que é Deus, leva a todo tipo de loucura. A mais comum dentre elas é o igualitarismo moderno. Hoje mesmo eu tive a tristeza de ler um texto propõe, crendo na melhor das intenções expôr o sentido da primeira leitura de domingo passado próximo, que os Mandamentos indicariam uma sociedade igualitária.
Donde vem este igualitarismo? Ele vem da mais triste incompreensão do Ser. Nós somos homens, sim, mas além de sermos homens, ou “por cima” de sermos homens, nós somos determinados homens. Eu sou eu, o Rui é o Rui, o Antônio é o Antônio e a Maricota é a Maricota. Somos semelhantes, por sermos todos nós corpos humanos informados por almas humanas. Somos ainda semelhantes – corolário da afirmação anterior – por sermos todos dotados de razão e capazes de escolher livremente entre dois bens aparentes. Somos ainda semelhantes – e este é um ponto central da nossa Fé – por termos sido adotados como filhos de Deus pelo Batismo.
Não somos, contudo, idênticos. Somos ontologicamente diferentes, na medida em que cada um de nós é um ente diferente, um outro homem que não o seu irmão. Cada um de nós tem um lugar no mundo, um lugar diferentíssimo, um lugar que lhe é determinado. A virtude consiste justamente em buscar que estejamos mais e mais ordenados perfeitamente no quadro da Criação. O pecado é o seu oposto: a desordenação, a falta de “alinhamento”. O que é este “alinhamento”, esta ordenação? É, em termos simples mas verdadeiros, ocupar o nosso lugar e sermos nós mesmos, o melhor que pudermos, neste nosso lugar.
Isto implica, entre outras coisas, a existência de uma hierarquia: os lugares não são intercambiáveis. Há quem esteja no seu próprio lugar como leigo e pai de família; outro estará no seu lugar como monge. Há que esteja em seu lugar como rei, e quem esteja no seu lugar como faxineiro. Cada um tem o seu lugar próprio, o lugar onde ele poderá ser ele mesmo melhor, onde ele poderá estar mais completamente ordenado na Criação. Neste seu lugar a pessoa poderá ser, assim, o melhor “si mesmo” possível.
O pecado, por outro lado, é esta desordenação. O pecado é, em última instância, aquilo que impede a pessoa de ser ela mesma o melhor possível. Quando pecamos estamos fazendo algo que está abaixo de nossa condição, algo que compete a outro e não a nós (como compete a um homem casado, não a um sacerdote ou a outro homem casado, ter relações com sua mulher), ou ainda negando a condição ontológica da vítima de nosso pecado (é o caso do assassinato ou da sodomia, por exemplo). O pecado, todo pecado, é sempre um pecado contra a justiça. Justiça é dar a cada um o que lhe compete. Ora, o que compete a um não compete a outro. Os beijos que dou em minha esposa não posso dar a outra mulher, o dinheiro que Fulano ganhou não posso roubar, etc.
A ordenação virtuosa de nossos atos, assim, depende não de uma listinha de regras (“podes” e “não-podes” universais), sim da adequação de nossoa atos a quem somos e a quem cada parte da Criação é. A Criação foi criada ordenada; toda a desordem nela presente é decorrente do pecado. O respeito à ordem da Criação, a inserção nesta ordem – que é a virtude – é assim necessariamente o reconhecimento e a busca (auxiliada pela Graça) de Deus como o fim último de cada ato nosso. A ordenação de nossos atos depende, necessariamente, de quem somos e do que é cada outra criatura dentro da ordem que de Deus vem e a Deus vai.
Há sim coisas que são conformes à natureza humana, limites que necessariamente devem ser seguidos para que um ato de um homem seja ordenado. Há ainda coisas que não afetam necessariamente a ordenação de todos os homens, mas são pecaminosas para alguns – por fazer com que eles se afastem de seu lugar e deixem de ser eles mesmos – e não para outros. Há ainda coisas que são virtuosas quando feitas por qualquer homem. O que varia não é o ato, mas a adequação do ato à nossa natureza humana, que todos partilhamos, e à nossa substância individual e nossa posição na ordem da Criação, que é diferente em cada um. Um mesmo ato, assim, pode ser pecaminoso para um e virtuoso para outro, ou pode ser pecaminoso – ou virtuoso – para qualquer homem.
O pensamento moderno, porém, é incapaz de perceber isto, por uma razão simples: ele nega que haja uma substância, ele nega que haja uma ontologia. Kant, o pai do que passa por moral hoje em dia, pregava que o ato verdadeiramente moral (para ele a única virtude possível e a única religião possível: moral e religião seriam a mesma coisa, respectivamente em estado puro e conspurcado) seria o Imperativo Categórico: aquilo que poderia e deveria ser uma regra universal. O ato moral, para Kant, é apenas o ato que pode ser aplicado universalmente como lei para todos os homens.
Ora, isso é absurdo! O que torna isso absurdo não é nem mesmo o caráter de “porque sim” da sua definição de moral (“não matarás porque é errado, e é errado porque sim”), mas a flagrante ausência da percepção de cada ser humano em suas circunstâncias e em sua individualidade. O que é certo, certíssimo!, para o pai de família pode ser mortalmente pecaminoso para seu filho ou sua mulher. O que é pecaminoso para o sacerdote pode ser virtuoso para a dona de casa. O que é virtuoso para o monge pode ser pecaminoso para o camponês, etc. A cada um compete agir de acordo com quem ele é, e com a ajuda de Deus ser o melhor “ele” que for possível.
Esta igualitarismo pecaminoso (sim, pecaminoso: negar que cada ente seja diferente é em última instância negar a realidade da participação no Ser em Si que é Deus, e assim negar a própria Encarnação do Verbo) expressa-se de várias maneiras hoje em dia: alguns fazem listas de “podes” e “não-podes” universais; esta é a versão protestante da heresia moderna, que nega a existência de uma intrincada rede de relações hierárquicas, tornando cada homem um planeta solitário composto e determinado por ações penduradas no vácuo, ignorando o resto da criação. Outros, ainda, ignoram o homem e pensam apenas na rede de relações, procurando não ordenar os atos individuais de cada homem à sua posição, mas terraplanar as posições de modo a que seja aplicável uma “moral” universal. Esta é a versão “teologia da libertação” da mesma heresia.
Temos assim duas tendências, uma de cada lado da estrada, como sói fazer o Inimigo. Uma nega as relações na Criação, e a outra nega a individuação das criaturas. Ambas, porém, no fundo se igualam. Ambas negam o homem como tal; ambas negam tanto a natureza humana quanto a inserção individual e intransferível de cada um homem individual na ordem da criação.
Quando uma dona de casa tem que cozinhar, lavar, passar, é pelo amor de Deus que ela o deve fazer. Ela deve fazê-lo porque lavar, passar e cozinhar são pertinentes à sua situação, a quem ela é. Fazendo-o, ela se torna melhor e mais ela mesma, a melhor “ela” possível. Do mesmo modo, um monge deve jejuar e passar suas noites a orar e estudar. Ele deve fazê-lo por ser pertinente à sua situação. A dona de casa que queira orar como um monge e deixe de lado a roupa que deve passar está pecando, como peca o monge que passe os dias na cozinha e reze apenas uma ou duas horas por dia (como é virtuoso que a dona de casa faça).
Cada ato que é feito conforme à nossa natureza humana e à nossa posição é um ato virtuoso; cada ato que é contrário à natureza humana ou à nossa condição é um ato pecaminoso. E, mais importante ainda e algo especialmente incompreensível para um moderno, há muitíssimos atos, a imensíssima maioria deles, que não são nem virtuosos nem pecaminosos. São atos que não são contrários à nossa natureza e à nossa posição, mas tampouco as reafirmam ou sedimentam na Graça.
Para o moderno isso é incompreensível, porque ele não vê o homem: ele vê apenas os atos do homem, o homem-que-faz. O fazer torna-se ser aos olhos do moderno. É por isso que o protestante quer um uniforme (terno e gravata, camisetas com dizeres bíblicos…) e o “teólogo da libertação” quer ação social: o primeiro vê cada homem como um planeta isolado, que deve virar assim um out-door para “ser” algo o tempo todo; o segundo vê cada homem como um mero nó em uma rede de relações sociais a terraplanar.
Se não há homem, apenas atos humanos, é incompreensível que haja atos moralmente neutros. Para o moderno, o ato é o homem; cada um é aquilo que ele faz (note a diferença: para o católico, o ato não deve negar o que cada um é; para o moderno, cada um é o seu ato, e só). Assim o “teólogo da libertação” não consegue ver no homem mais que um “alienado” (se seus atos não têm como objetivo último a terraplanagem da ordem social) ou um “profeta” (se eles têm este objetivo); o protestante não consegue ver no homem outra coisa que um “perdido” (se seus atos não demonstram sua suposta “salvação” extrínseca e imputada) ou um “salvo” (se supostamente a demonstram). Não há ato moralmente neutro para nenhum deles, pois isso equivaleria a não haver nada. Para o moderno o ato é o ente, e se não há ato não há ente. Cada ato, assim, é julgado como preto ou como branco sem que se aceite a existência de atos moralmente neutros, de atos que não são bons nem maus. Do mesmo modo, faz-se necessária uma universalização destes atos, já que o moderno nega a individualidade. O ato é bom para todos ou mau para todos. Não há ato que convenha a um e não a outro, ou que seja pecaminoso para um e não para o outro.
Isto os coloca, assim, em uma péssima posição: é-lhes simplesmente impossível compreender o que seja verdadeiramente a moral, e ainda mais impossível fazer um julgamento moral correto. É preciso traçar em cada ato uma linha firme: ele é virtuoso ou pecaminoso para todos, em qualquer momento, em todo lugar. Não há meio termo, não há atos moralmente neutros. Para os “teólogos da libertação”, em geral, a tarefa é mais simples: basta verificar se aquele ato é ou não um ato de “terraplanagem” da ordem social. Para os protestantes, contudo, a tarefa é mais árdua: como eles não querem pensar em uma ordem, mas também não querem reconhecer a individualidade de cada ente, é preciso verificar ato por ato para escrever uma espécie de “manual” do que é virtuoso e do que é pecaminoso, novamente sem meio-termo e sem ato moralmente neutro algum. Depois de escrito o manual, busca-se uma “justificativa” bíblica (ou, para usarmos o vocabulário anglicizado e anti-estético que caracteriza estes grupos de hereges, “escriturística”) ex post facto.
É esta a armadiha do Puritanismo. Como, porém, fabricar estas listas? Nada mais fácil: usa-se, como lembra Chesterton em seu artigo que citei anteriormente neste mesmo debate, “a concrete standard of particular cut and dried customs of a particular tribe”, “um padrão concreto de costumes isolados e catalogados de uma tribo particular”. O protestante, assim, ou mesmo o puritano não abertamente protestante (que contudo não passa a ser homem mau por aderir a um erro: este erro apenas o retira da sua posição na ordem, não é sua nota constitutiva pseudo-ontológica. É caso para exame de consciência e confissão, não para fogueira. O pecador não é um pecado ambulante), passa a considerar que aquilo de que ele não gosta, ou aquilo que seu grupo social (é o que Chesterton significa por “tribo”) não gosta, é pecaminoso. No sentido contrário, o que lhe apraz, ou apraz a seu grupo social, é virtuoso. É o caso, por exemplo, da pseudo-glossolalia que ele defende como quem defende a honra da Virgem.
Isso ocorre por não haver hierarquia possível na ausência de ontologia. Dá na mesma arrancar os testículos e fazer um furico na orelha. Dá na mesma não ser recomendável para um sacerdote e ser terrivelmente pecaminoso para um leigo. Dá na mesma uma tatuagem minúscula debaixo do braço e uma tatuagem gigantesca que cubra toda a face.
Isto vem da falta de percepção não apenas do que seja teologia moral, não apenas do que seja moral, mas – e é isso o que mais me preocupa – do que seja o ser (e, por conseguinte, o que seja o Ser). Não é possível buscar a santidade, ou seja, a plena inserção na ordem da Criação, sendo si mesmo e o melhor “si mesmo” possível, quando não se percebe a ordem, não se percebe cada ente como um ente, cada indivíduo como um indivíduo, com seu lugar, com seus deveres (que decorrem deste lugar e não são nem podem ser fins em si – ai da dona de casa que varra por varrer! Estará estafada em poucos meses, pois é um trabalho que não acaba nunca!) e seus direitos (idem), com seus graus de virtude e pecado, com a existência deles decorrente de atos moralmente neutros, etc. No lugar da santidade, tem-se a falsa “ordem” fascista: legiões e mais legiões de homúnculos de terno e gravata, uniformemente vestidos e barbeados, acompanhados de legiões femininas com saias longas e cabelões maltratados. Uma ausência total da saudável diversidade hierárquica que faz a criação. Não uma floresta, com suas árvores maiores e menores, que por sua vez têm galhos, folhas e flores, mas um deserto uniforme de grãos mortos de areia, todos iguais e todos desordenados. Deus nos dá as graças ditas “de estado”, ou seja, as graças necessárias para que possamos nos desenvolver neste nosso estado e sermos o melhor que pudermos. A moral, assim, não é questão de uma lista de proibidos e permitidos, mas sim daquilo que nos convém e aquilo que não nos convém: aquilo que nos ajuda a estar nesta ordem, aquilo que não fede nem cheira, e – finalmente – aquilo que nos tira desta ordem, que nos tira deste lugar.
Imagine um carro que não anda. Ele ainda tem vários usos possíveis: podemos nos esconder da chuva nele, podemos ouvir rádio, podemos descansar sentado em seus bancos anatômicos, etc. Sem andar, porém, ele não pode cumprir uma de suas missões principais. Ele não pode, em outras palavras, dar tudo de si e ser o melhor carro que ele poderia ser. Ele vai tentar ser outra coisa (sala de música, abrigo da chuva), uma coisa lateral, deixando contudo de lado a sua missão principal, aquilo que faria com que ele pudesse ser o melhor possível.
Nós somos como este carro. Quando pecamos, especialmente em algo grave como nos negarmos a cumprir o fim primeiro do matrimônio, estamos deixando intactos os fins secundários (ser companheiro da pessoa com quem nos casamos, etc.), sem contudo cumprir o fim primeiro (ter filhos e criá-los).
Não se trata de ser um dogma ou deixar de ser um dogma, sim de ser aquilo que é necessário para que possamos nos desenvolver ao máximos, sermos nós mesmos em seu melhor. O pecado, qualquer pecado, é uma recusa da ordem. ao pecarmos estamos fazendo algo que não nos convém, algo que nos retira da ordem. Estamos indo contra o que a natureza humana ordenada deve ser. Imagine uma árvore que não dá frutos, não dá folhas, não tem beleza: ela não está sendo a melhor árvore que ela poderia ser. Uma árvore, contudo, só fica assim se ficar doente. Ela não tem vontade própria. Nós, contudo, temos livre-arbítrio, temos a capacidade de decidir, e é por isso que – ao contrário da árvore – nós pecamos. Temos também uma doença: o fruto do Pecado Original, a vontade de fazer besteira.
Quando nos decidimos a, por exemplo, ter sexo como diversão apenas, ter casamento como companheirismo apenas (em suma, abusar do meio deixando de lado o fim), nós estamos, por vontade própria e decisão consciente, nos tornando como esta árvore. Estamos fazendo algo que nos diminui, algo que nos faz sair da ordem. É como pegar um lixeiro, que tem sua dignidade ao varrer as ruas e trabalhar honestamente, e jogá-lo, com vassoura e suor, no meio de um salão de baile chique. Isso é humilhá-lo, é fazer pouco dele ao colocá-lo em um lugar que não lhe pertence. O mesmo aconteceria se fizéssemos uma senhora vestida para este baile jogar latões de lixo dentro de um caminhão.
Deus nos dá as graças necessárias para que cumpramos nossas funções e assim possmos nos santificar. Ele dá à esposa as graças necessárias para ter todos os filhos que Ele lhe enviar, e ao esposo as graças necessárias para sustentar esta família, esta magnífica bênção de Deus. Ele pode não dar a graça de ter danoninho e Coca-Cola na mesa, mas sem dúvida Ele dá a mais importante: a graça de criar bnem os filhos. Há crianças – como aquela mocinha de S. Paulo – que com tudo na mão tornam-se monstros; outros, vivendo da mão para a boca, tornam-se santos. Não é o dinheiro ou o conforto o que importa, sim a adequação da pessoa a seu papel e seu crescimento em graça e dignidade neste papel, nesta posicão – que é sua – dentro da ordem da criação.
Uma excomunhão – como a dada a quem faz um aborto, ainda que com “pílula do dia seguinte”e não com aspirador, é simplesmente uma declaração de que a pessoa está completamente “de través” na ordem, uma explicitação de que a pessoa está completamente desorientada. Excomungar é um ato de misericórdia, pois faz com que a pessoa perceba que ela está fazendo mal a si mesma. Todo pecado é contra Deus e contra si mesmo: contra Deus por ir contra a ordem que Ele estabeleceu e contra si mesmo por impedir que nos desenvolvamos e sejamos o melhor que podemos ser. Excomungar, assim, é como dizer “esta árvore está de cabeça para baixo, com os galhos no chão e as raízes no ar: ela vai morrer se não for replantada”. É como dizer “este peixe está na areia e não na água; ele vai morrer se não voltar à água”. É avisar, em suma, que a pessoa está completamente fora de lugar, completamente desordenada. A árvore, mesmo de ponta-cabeça, pode ainda ter frutos devido à seiva que ainda estava em seu tronco. Do mesmo modo, o peixe na areia ainda se mexe por algum tempo. Eles estão, porém, condenados, a não ser que sejam recolocados na ordem.
Peixes e árvores, porém, não saem sozinhos de suas posições. Nós, seres humanos, saímos. Freqüentemente tentamos nos definir pelas nossas vontades viciadas, pelos nossos desejos, e assim deixamos de ser nós mesmos, deixamos de estar ordenados. “Ser eu mesmo” não quer dizer me mimar, fazer tudo o que me pareça agradável, sim ser o que eu tenho de bom e curar-me do que eu tenho de mau.
Quando a Igreja nos avisa sobre – por exemplo – a gravidade da contracepção ou – maior ainda – do assassinato de inocentes, ela está simplesmente dizendo, como mãe amantíssima, que estamos como um peixe fora d’água ou uma árvore desenraizada se aceitamos ou fazemos algo tão contrário a nós mesmos.
É freqüentemente necessário que ela o faça, como foi necessário que Deus desse os Mandamentos. Isso pela mesma razão que uma criança, se a deixarmos, vai comer só balas e deixar de lado aquilo de que ela precisa para crescer forte e saudável (vc já reparou que isso não acontece com bichos?): nós estamos marcados pelas conseqüências do Pecado Original, e não fazemos necessariamente aquilo qu eé razoável. Sempre temos a capacidade de fazê-lo, pois Deus sempre coloca Sua graça à nossa disposição. Nem sempre, porém, aceitamos esta graça.
Procure, assim, pensar na questão da contracepção sob esta luz. A mulher grávida, a mulher casada, recebe um encargo de dignidade tremenda: ela é a responsável por um ser humano amado por Deus e chamado à salvação. Matar esta criança ou fazer do matrimônio uma prostituição de freguês único é arrancar as raízes da árvore, é colocar o peixe na areia; é negar-se a cumprir a maior e mais bela missão que Deus pode a alguém confiar.
- Fonte: A Hora de São Jerônimo