As relações históricas da Igreja Católica com o Estado Brasileiro

Resumo:

Não é raro ouvirmos no dia-a-dia, especialmente de mentes pouco formadas, afirmações convictas de que a Igreja Católica é culpada pelas tradicionais mazelas que atravessam os séculos deste país. Para essas pessoas existe uma profunda relação entre desigualdade e fundação católica. No entanto, tais argumentos não resistem à uma breve análise histórica que acabam traçando uma realidade de uma Igreja amiga da justiça e do bem comum, defensora da dignidade e violenta opositora dos regimes de repressão criados neste país, seja da ação defensiva aos índios à oposição dos governos totalitários.

1. A Igreja Católica na fundação do Estado Brasileiro

2. Desenvolvimento do Estado Brasileiro

3. União de Religião e Estado

4. Separação do Estado e da Igreja

4.1. Separação do Estado e da Igreja no Brasil

5. Fiscalização política pela Igreja Católica no Brasil

6. Oposição da Igreja Católica à vida política no Brasil

7. Bibliografia

1. A Igreja Católica na fundação do Estado Brasileiro

Durante os mais de 500 anos de descobrimento do solo brasileiro, diversos foram os fundamentos políticos semeados por aqui, levando o Estado a assumir inúmeras formas de organização política. Em todas elas a desigualdade social foi promovida perdurando até os dias de hoje numa manuntenção que se origina no próprio descobrimento do Brasil e da sua colonização de exploração por Portugal. A idéia de que explorar a nossa gente seria praticar um favor ao povo que aqui residia consta nas próprias bases do descobrimento, e que nos conta é o próprio Pero Vaz de Caminha, no trecho que se segue:

“Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.” (CAMINHA, 1939)

A esta mentalidade de exploração existe também uma contradição no que se refere a salvação dos habitantes, pois não se encontrando ouro nem prata, nem metal ou ferro, o objeto de exploração passou rapidamente para os povos nativos, e consequentemente aos seus filhos originais: a massa popular. É evidente que esta salvação ditada por Pero Vaz deve ser olhada no contexto histórico sem maiores hipóteses negativas, contuda realça o caráter de dominação que esta Terra de Vera Cruz tornou-se diante de Portugal, decadente e carente de maiores forças econômicas.

O Estado colonial luso-jesuítico pode ser considerado como a primeira organização política administrativa no Brasil. Sua origem data da implantação do Governo-Geral em Salvador na Bahia, no ano de 1549. A sua função primeira, além de garantir o funcionamento da indústria açucareira e da extrativista, era a assegurar ao Reino de Portugal a posse, a mais extensa possível, do perímetro litorâneo da terra recém descoberta. Daí pode verificar-se que a preocupação dos governadores-gerais (Tomé de Souza, Duarte da Costa, Mem de Sá, e outros), foi a construção de fortes nos principais pontos considerados estratégicos. O Estado colonial foi, pois, antes de tudo um Estado de conquista.

Mesmo a Companhia de Jesus (Jesuítas), era representada pelo padre Manoel da Nóbrega, e detinha uma aliança junto ao estado absolutista português, ficando encarregada do Apostolado, assumindo desta forma a função de catequese dos índios, segundo o Almanaque Abril, que abaixo explica mais detalhadamente:

“Dividindo a colônia em quatro províncias, os jesuítas fixaram-se na área da Bahia de Todos os Santos (Bahia), em São Luís do Maranhão (Setentrional), em São Sebastião do Rio de Janeiro e em São Paulo de Piratininga (Centro-Oriental) e depois, na Meridional, sendo que sua politica de conversão e proteção dos índios tornou-se a principal razão dos conflitos com os colonos reinóis” (HISTÓRIA DO BRASIL, 2003).

E será justamente nesta aparente proteção dos padres jesuítas para com os índios, que algum tempo depois diversos conflitos entre a Igreja Católica e o Estado se estruturarão. Os jesuítas dedicavam-se então ao pastoreio das almas nativas e à educação dos quadros coloniais por meio de 17 colégios. O governador vindo de Lisboa e o prior da Ordem de Jesus estavam unidos na luta contra a pirataria e contra a heresia e o paganismo.

De 1750 a 1777, Portugal instala um novo regime no país, O Estado colonial-pombalino que viria também como uma solução mantenedora das explorações que aqui se instalavam.

Como citado acima, crescia a tensão entre os jesuítas e os reais interesses do Império para escravização dos índios. Segundo fontes históricas (Hoornaert, 1983, p. 405), os padres jesuítas cada vez mais se incorporavam à cultura índigena e esta por sua vez criava laços de tal vínculo humano que qualquer interesse político sobre os povos nativos faziam-se facilmente ignorado por parte da Companhia de Jesus.  Conforme se extrai da Primeira carta de Roma aos cristãos das Índias Ocidentais na bula Sublimis Deus do Papa Paulo III, 1537:

“Pelas presentes letras decretamos e declaramos, com nossa autoridade apostólica, que os referidos índios e todos os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos cristãos, embora se encontrem fora da fé de Cristo, são dotados de liberdade e não devem ser privados dela, nem do domínio de suas coisas; e ainda mais, que podem usar, possuir e gozar livremente desta liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão; e que é írrito, nulo de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer tempo de outra forma”.

Ao contrário do que muitos pensam, este documento apostólico de Papa Paulo III enfatiza justamente a questão da supremacia da liberdade dos índios e a autoridade sobre todos os cristão e toda a Igreja Católica em uma não complascência a qualquer tipo de denegração da dignidade e da liberdade dos índios. Esse desejo era respeitado a tal ponto que o próprio Império não tardou em responder, conforme fonte citada abaixo:

“O novo regime instalado em Portugal (1750-1777) considerava o poder dos jesuítas como uma ameaça aos princípios centralizadores do Estado, assim sendo o Marquês do Pombal, primeiro-ministro de D.José I, determinou a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e das suas colônias, em 1759. No Brasil, os colégios jesuítas foram fechados e as missões destruídas, sendo substituídos por escolas municipais e pela preocupação cientifica no sentido de fazer os súditos não apenas serem seguidores da fé católica mas obedientes às exigências do Despotismo Ilustrado” (HISTÓRIA DO BRASIL, 2003).

Como demonstra a história, comunidades inteiras protegidas por padres jesuítas foram dizimadas, a exemplo do Filme documentário A Missão (1986, 121min.), e a manutenção de uma organização voltada à exploração e à manutenção dos interesses imperiais resguardados. Para Eduardo Hoornaert, autor da obra História da Igreja no Brasil, esse momento histórico se revela num marco inesquecível e brutal:

“Um povo pode aceitar um religião estranha por meios pacíficos, respeitosos, simplesmente porque se apresenta pelo seu testemunho, sem nenhum uso de força? Foi este poder de testemunho e compromisso manifestado sobretudo sobre os jesuítas que está na origem da mais brutal e violenta perseguição que a Igreja já conheceu durante o período português: a perseguição pombalina” (Hoornaert, 1983, p. 410).

Mais de 500 missionários foram extraditados, presos e assassinados, “E os religiosos por falarem contra essas injustiças e violências são odiados e perseguidos” (FIGUEIRA, 1637, p. 148 [437]). Toda a cultura missionária, que de certa forma era a única esperança daqueles índios fora destruída, como por exemplo o livro “Cultura e Opulência do Brasil’ (1710) de um jesuíta, Antonil, que fora retirado do comércio porque publicava as riquesas do Brasil em benefício de Portugal (Hoornaert, 1983, p.  407).

Desta fase missionária e colonial brasileira pouco se sabe devido a história do medo implantada pelos interesses imperiais que devastaram obras  denunciadoras da injustiça que aqui se aplicava. Porém não há que se duvidar da dizimação de todos aqueles que se rebelavam ante esses interesses de dominação portuguesa, como nos relata o Padre Antônio Vieira nessa impressionante descrição da época:

“Pois sendo o Maranhão conquistado no ano de 1615, havendo achado os portugueses desta cidade de São Luis mais de quinhentas povoações de índios, e que no ano de 1652, tudo isto estava pespovoado, consumido e toda aquela imensidade de gente acabou de sua entrada até aquele tempo eram mortos dos ditos índios mais de dois milhões de almas? e causa única nem é outra que a insaciável cobiça daqueles moradores e dos que lá os vão governar” (Informações sobre as coisas do Maranhão, Lisboa, 31 de julho de 1678).

Portanto em 30 anos, mais de dois milhões de índios são mortos segundo o padre, entre rebelados, escravizados, torturados, crianças e mulheres. Não é surpreendente, desta forma, a busca de escravos africanos para a implementação de mão-de-obra no Brasil, que também não deixarão de experimentar o amargo sabor da injustiça. “Um Estado fundado em tanto sague, só poderia produzir miséria” (Padre Antonio Vieira, citado por Hoornaert. 1983, p. 406).

2.Desenvolvimento do Estado Brasileiro

A próxima etapa do Estado Imperial no Brasil, foi legitimizada após a proclamação da independência, em 1822, adquirida após um pagamento em quantia considerável a Portugal. D.Pedro I incia então um processo para melhorar sua imagem perante a população, tentando desta maneira legitimar sua posição diversas vezes contestada por líderes populares da própria Igreja Católica do Nordeste como Frei Caneca. A partir de agora o governo do Estado Brasileiro, além dos poderes tradicionais ? executivo-legislativo-judiciário ?implanta a novidade de um poder moderador, e que de fato tornou-se uma sobreposição da autoridade do imperador. Os objetivos gerais deste Estado Imperial, que se estendeu até 1889, podem ser caracterizados pela legitimização e consolidação da autoridade imperial centralizada na figura de D. Pedro sobre todo o território brasileiro, a manutenção e manipulação do regime escravagista assim como a preservação de uma paz interna e do reconhecimento da soberania brasileira no contexto internacional. É o que diz abaixo:

“As bases do Estado patrimonialista, herança do colonialismo lusitano, observou Raymundo Faoro, teriam suas raízes ainda mais aprofundadas nesta época, ocasião em que as fortunas privadas eram acumuladas graças aos privilégios auferidos pela nobreza nativa criada por D.Pedro I e reafirmada por D.Pedro II. Ideologicamente pode-se dizer que o Império Brasileiro (que continuou sendo um estado português no ultramar) gradativamente afastou-se dos primados absolutistas dos seus primeiros anos, dominados pelo clima da Santa Aliança, para uma posição similar ao do regime monárquico britânico, onde havia a convivência do soberano com um parlamento bipartidário. Isto, todavia, não significou o afrouxamento do controle central sobre o provincial” (HISTÓRIA DO BRASIL, 2003).

Em 1834 é assumido a derrota do Ato Adicional, já que estimulou uma grande onda de pequenas revoluções populares e insurreições lideradas por fagulhas messiânicas, como na Revolução Farroupilha, Cabanagem, Sabinada, entre outros espalhadas por todo o território, fazendo com que a autoridade retornasse de forma centralizada ao trono do Palácio de São Cristóvão, sem provocar, apesar disto, a tirana imperial. Paradoxalmente, a vitória na Guerra do Paraguai (1864-1870), acabou por derrotar e minar as forças morais do império, já que necessitado de ampliar o poder armado no intuito de derrubar Solano Lopes, D. Pedro II terminou por armar o braço que o derrubou em 15 de novembro de 1889, na posterior crise decorrente da abolição da escravatura determinada pela Lei Áurea, de 13 de maio de 1888.

O novo regime político brasileiro nascia então fortemente idealizado no sistema presidencialista norte-americano, federativo, quando da proclamação da República em 15 de novembro de 1889 aprovava-se a Constituição de 1891. Agora os estados eram liderados políticamente por governadores gozando, desta maneira, de maior autonômia e influência no cenário externo. Em consequência disto, a força da União decai resurgindo os poderes localistas onde a figura dos coronéis ganhava força e poder político. Agora estes coronéis inaugurariam o coronelismo, onde a manipulação das eleições, dos destinos políticos, estariam submissos a esses verdadeiros donos dos seus respectivos estados, compondo as bancadas estaduais e federais, transformando então a república numa versão brasileira do caciquismo da América Hispânica.

O poder central, por sua vez, em pouco tempo caiu sob o controle dos dois estados mais ricos e populosos do Brasil republicano: São Paulo e Minas Gerais, regiões maiores da produção cafeeira, monocultura de exploração, e industrial. A antiga burocracia imperial deu lugar às burocracias estaduais, sem que essas tivessem entretanto a autoridade e o prestigio dos servidores da corte. Se o modelo adotado no Império inspirava-se no sistema britânico de governo de gabinete com dois partidos, o liberal e o conservador alternado-se no poder, o regime republicano tentou seguir as pegadas da democracia liberal americana, sem todavia imitar-lhe o bipartidarismo.

No Estado desenvolvimentista, com a grande depressão econômica de 1929, o poder da velha república do café com leite, mais uma da série de monoculturas brasileiras, acabou por abalar com grande força a hegemonia que existiu durante a República Velha (1889-1930), desautorizando o dogma liberal do não-intervencionismo estatal. A partir daí, com exceção do pequeno, mas influente, grupo de liberais extremados, os destinos do Brasil foram traçados pela ascensão do estado desenvolvimentista, movido pela missão de fazer a transição de uma economia eminentemente agrária para uma industrial. Daí a adoção da concepção hegeliana de que o Estado é a grande alavanca do progresso econômico e social do país.

Octavio Ianni, identifica duas correntes desenvolvimentistas neste período em sua obra Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1971): a Politica Econômica Nacionalista e a Política Econômica Liberal. Durante o vintênio militar se consolidariam  grupos econômicos privados que detinham o acesso aos recursos estatais, como grupos estrangeiros de automóveis entre outros. Essas características do Estado Estamental brasileiro podem ser vistas como uma maneira de reciclar as antigas práticas patrimonialistas e esconder as partes condenáveis, segundo Raymundo Faoro, importante estudioso sobre o assunto, em seu livro Os Donos do Poder (1987) que mostra a formação do patronato político brasileiro.

O Brasil, economicamente abalado graças as eternas inflações dos anos 70 e 80, impulsionados pela descrença da queda do Muro de Berlim, pelo colapso da União Soviética, acabou que por adotando as práticas e as doutrinas do neo-liberalismo num ideal de modelo norte-americano. Essa doutrina neoliberal, antiintervencionista, privatizante, excludente pela sua própria teoria, acaba que por mantendo o poder e os privilégios dos mesmos grupos econômicos.

Hoje encontramos um país onde, segundo dados da FGV, temos 53,11 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, onde metade da população vive com pouco mais de 10% da renda do país e 10% da população vivendo com os 90% restante (Indicadores Sociais. Disponível em: <http://www.fgvdados.fgv.br> Acesso em: 20 nov. 2003).

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