São Jerônimo e a Neovulgata

Por Carlos Martins Nabeto
Quando São Jerônimo foi encarregado pelo Papa S. Dâmaso de preparar uma nova Bíblia latina, o problema que a Igreja ocidental enfrentava era a existência (e o consequente emprego) de *diversas* traduções bíblicas latinas discordantes (que modernamente são chamadas de “Vetus Latina”, doravante “VL”). Algumas dessas traduções eram mais bem cuidadas do que outras, porém isso dificultava muito a liturgia da Palavra, pois numa época em que todo o Ocidente empregava apenas e tão somente o latim, cada igreja local fazia uso – em tese – dos mesmos textos, mas – na prática – com palavras diferentes e, até mesmo, contraditórias.
A ideia do Papa Dâmaso era, assim, excelente: rever as traduções latinas, a partir dos textos bíblicos gregos e obter, finalmente, a unidade da liturgia da Palavra: um só texto com as mesmíssimas palavras. São Jerônimo foi convidado e aceitou o encargo, começando a revisar o Novo Testamento (NT); a seguir, passou para o Antigo Testamento (AT) e, quando chegou aqui, se viu diante de grandes dificuldades… Até então o AT desde sempre adotado por toda a Igreja (do Ocidente e do Oriente) se baseava não nos textos hebraicos/aramaicos (como os temos hoje), mas na tradução da Septuaginta (LXX), realizada entre os séculos III e II a.C. por sábios judeus em Alexandria, no Egito. Inclusive, as antigas traduções latinas (VL) baseavam-se na LXX…
Confrontando os dois textos – o hebraico e o grego – São Jerônimo constatou não só a diferença do cânon (que já havia sido relatado no séc. II d.C., por Melitão, bispo de Sardes), mas também da extensão de alguns textos (como, p.ex., Jeremias, Ester e Daniel) e, ainda, de significados (até porque a tradução de qualquer texto envolve um exercício de interpretação, além de poder ser mais ou menos literal em relação ao original). Deste modo, embora Jerônimo tenha iniciado suas revisões do latim a partir da tradução grega (LXX), uma vez indo residir na Palestina resolveu providenciar uma nova tradução latina do AT a partir dos textos hebraicos, a partir da “verdade hebraica” (“hebraica veritas”; doravante “HV”).
Tal proceder gerou fortes protestos na Igreja ocidental, pois o novo texto latino resultante acabou se tornando, obviamente, bem diferente e discordante, em determinas passagens, dos antigos textos latinos (VL). Memorável se tornou, aliás, a discussão entre os “dois Santos gigantes”: Agostinho (defensor da LXX/VL) e Jerônimo (defensor da HV). A verdade é que a “Vulgata de São Jerônimo” demorou mais alguns séculos para ser aceita, até se tornar o texto predominante na Igreja latina. Um fator que certamente contribuiu para essa dificuldade foi o fato de existir diversas “denúncias” (a mais antiga, encontrada na obra “Diálogo com o judeu Trifão”, de São Justino de Roma, em meados do séc. II d.C.) de adulteração do texto hebraico pelos fariseus do final do séc. I d.C. (sendo que até mesmo estes últimos aceitavam a LXX como inspirada enquanto inexistia a “concorrência” da Igreja cristã).
Com o passar do tempo, inexistindo ainda a prensagem de livros, acaba acontecendo com a Vulgata jeronomiana o mesmo que ocorrera com outros antigos textos (VL, LXX etc.): diversidade de textos e palavras, causando novo desconforto na Igreja. O advento da prensa de tipos móveis e, também, da chamada “Reforma Protestante”, faz urgir uma revisão geral da Vulgata. O Concílio de Trento passa tal encargo ao Papa. Uma 1ª revisão surge em 1590, sob o pontificado de Sisto V (chamada de “Vulgata Sistina”); dada a grande quantidade de erros de impressão, uma “revisão da revisão” é lançada em 1592, sob o pontificado de Clemente VIII (denominada “Vulgata Clementina” ou, dada sua “definitividade”, “Vulgata Sisto-Clementina”).
Enquanto isso, a Igreja oriental manteve, sempre, a LXX grega como seu AT e as igrejas protestantes, surgidas a partir do séc. XVI, se voltariam para o texto massorético (TM) hebraico/aramaico (cujo representante mais antigo procede do séc. X d.C.). Ocorre que o texto hebraico adotado por S. Jerônimo (HV) também não se confunde com o TM, sendo aquele bem mais antigo do que este, sem os acentos massoréticos, permitindo portanto e adotando consequentemente leituras e interpretações diferentes em várias passagens…
Com as novas descobertas arqueológicas e avanços da filologia e outras ciências, Pio XII e outros Papas, já no séc. XX, oferecem novas orientações para o estudo bíblico católico e, inclusive, a constituição de uma Comissão para uma nova revisão da Vulgata, que possa também se valer destas novas descobertas e avanços. Vem então à lume a “Neovulgata” ou “Nova Vulgata” em 25.04.1979, durante o 1º ano de pontificado de S. João Paulo II. Este escreve:
– “Nessa revisão ‘teve-se em conta, palavra por palavra, o texto antigo da edição latina da Vulgata, quando os textos primitivos são referidos exatamente, tais como os apresentam as atuais edições críticas; mas esse texto foi prudentemente corrigido quando deles se afasta ou os refere com menor exatidão. Para isso, foi usado o latim cristão bíblico, de maneira que a devida estima da tradição se conjugasse com as justas exigências da ciência crítica’. O texto, como resultou desta revisão [é] mais profundo em alguns livros do Antigo Testamento em que São Jerônimo não pusera as mãos. No passado, julgava a Igreja que a antiga edição da Vulgata bastava e constituía suficiente autoridade para transmitir a Palavra de Deus ao povo cristão; com mais razão poderá agora prestar o mesmo serviço esta edição da Neovulgata” (Constituição Apostólica Scripturarum Thesaurus).
Assim, a Neovulgata passa a adotar, para os livros protocanônicos do AT, o TM, mantendo a tradução de S. Jerônimo onde for possível e retraduzindo onde este texto difere daquele empregado pelo Santo Doutor. Para os deuterocanônicos, procede a partir do grego e faz as adaptações necessárias conforme a praxe empregada por outras Bíblias modernas (p.ex.: inserindo as partes deuterocanônicas de Ester dentro das partes protocanônicas e não em capítulos à parte, como fizera S. Jerônimo).
Considerando que a Neovulgata, desde 1979, tornou-se o texto latino oficial da Igreja Católica, inclusive e sobretudo para o uso litúrgico, seria de se esperar que a mesma fosse fielmente traduzida pelas Conferências Nacionais dos Bispos, em todo o mundo, e – também – adotada oficialmente por estas. Até porque uma vez que a Igreja liberou o vernáculo para as Missas, a tradução e o uso de uma mesma fonte bíblica para a liturgia da Palavra – a Neovulgata – seria o mínimo a se esperar para demonstrar simbolicamente a total preservação da unidade católica.
Fonte: https://www.facebook.com/carlosmartins.nabeto
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