– “Não terá sido erro de Jesus oferecer o paraíso ao bom ladrão no mesmo dia em que o próprio Jesus ia morrer para descer aos infernos e lá passar três dias? E, se Cristo desceu aos infernos, não haverá salvação no inferno?” (Rubem – Rio de Janeiro-RJ).
As dificuldades acima se resolvem distinguindo-se as duas acepções do termo “inferno” na linguagem cristã corrente.
“Inferno” vem do latim “infernus”, adjetivo derivado de “infra”, abaixo. Designando o “lugar situado infra ou debaixo”, a palavra entrou no vocabulário dos cristãos com os seguintes matizes:
1) “Infernus” pode equivaler ao termo hebraico “sheol”. Este designava, segundo as concepções dos antigos judeus, um lugar subterrâneo para onde iam promiscuamente as almas de todos os defuntos, bons e maus. A teologia judaica, nas proximidades da Era Cristã, distinguia no “sheol” diversas regiões, entre as quais a dos pecadores réprobos (cf. Judas 6) e a dos justos também chamada “seio de Abraão” (cf. Lucas 16,22), “Paraíso ou novo Éden” (cf. Lucas 23,43), “tesouro das almas” (cf. 1Samuel 25,29), região situada “sob o trono de Deus” (cf. Apocalipse 6,9; vejam-se outrossim Sabedoria 3,1-5-10; 2Macabeus 15,12-15). Os judeus tinham consciência de que não era possível passar de uma dessas regiões para outra (cf. Lucas 16,26).
2) A Revelação do Novo Testamento distingue com mais clareza a sorte póstuma dos justos e a dos pecadores. Àqueles é atribuído o “céu”, a bem-aventurança celeste, ao passo que o termo “inferno” (correspondente a “sheol”) fica reservado para designar o estado dos réprobos (já era esta, aliás, a tendência dos rabinos contemporâneos a Cristo). Note-se, porém, que os conceitos cristãos de bem-aventurança celeste e inferno não estão presos a alguma topografia; designam primariamente um estado de alma, independente de determinada localização geográfica (não se queira elucubrar a geografia do Além).
Sendo assim, quando se diz que Cristo desceu aos infernos no tríduo após a sua morte (cf. 1Pedro 3,19), entende-se que a sua alma santíssima se manifestou aos justos do Antigo Testamento que no “sheol” (seio de Abraão) aguardavam a Redenção; o Salvador lhes anunciou que esta já se dera e, por conseguinte, poderiam gozar da visão de Deus na bem-aventurança celeste. Manifestando-se aos fiéis, o Senhor não apareceu aos réprobos, pois tal manifestação carecia de razão de ser; não há possibilidade de conversão após esta vida (cf. “Ainda devemos crer na existência do inferno?”). Vê-se, pois, que, quando se fala da descida de Jesus aos infernos, este último termo é tomado em sua acepção vétero-testamentária (a primeira acima exposta).
Quanto ao vocábulo “descida”, tem sentido metafórico, derivado da maneira de falar popular dos hebreus; não se poderia afirmar que a alma de Jesus se tenha deslocado para regiões subterrâneas. Costuma-se dizer equivalentemente que “Jesus desceu ao limbo dos Pais”; “limbo” (de “limbus”, “orla” em latim) seria a parte superior das regiões subterrâneas, a menos distanciada do céu. Este “limbo dos Pais”, mansão provisória, deixou de existir, como se compreende, desde que os justos do Antigo Testamento receberam a bem-aventurança eterna. Hoje em dia os teólogos falam do “limbo” em outra acepção, ou seja, para designar o estado póstumo das crianças que morrem sem batismo.
Prometendo ao bom ladrão o paraíso para o mesmo dia, Jesus não queria dizer que este justo arrependido O precederia na bem-aventurança celeste; à santíssima humanidade de Cristo ressuscitado devia, sem dúvida, tocar a primazia da entrada nos céus. Cristo, porém, dava certeza ao bom ladrão de que, logo após a morte de cruz, a sua alma estaria com a de Cristo, indo com esta ao “seio de Abraão” ou ao paraíso (conforme a terminologia dos judeus) ou ainda à mansão dos justos defuntos da Antigo Testamento, a fim de aguardar a ressurreição do Senhor e a entrada na visão de Deus. O simples fato, porém, de estar inseparavelmente associada a Jesus já acarretaria suma felicidade para o pecador agraciado:
– “Estar com Cristo é viver; por isso, onde se acha Cristo, aí se acha a vida, aí se acha o reino. Vita est enim esse cum Christo; ideo ubi Chrístus, ibi vita, ibi regnum”) (Santo Ambrósio, Com. in Lc., ed. Migne 15, 1834).
Sobre as noções acima, veja-se Estêvão Bettencourt, “A vida que começa com a morte”, Rio de Janeiro: Agir, 2ª ed., 1958, cap.12, §2; e Para entender o Antigo Testamento”, Rio de Janeiro: Agir, 1956, pp.190-191.
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 8:1957 – dez/1957