O “Direito da Primeira Noite”

– “O chamado ‘ius primae noctis’, ‘direito da primeira noite’, constitui escândalo dentro dos costumes matrimoniais da Idade Média. Não será mais uma expressão da barbárie favorecida pelo Cristianismo medieval?” (História do Cristianismo Jurista – São Paulo-SP).

1. O “ius primae noctis”, como se conjectura, atribuía aos senhores feudais, na Idade Média, a licença de passarem a primeira noite com as esposas de seus súditos após o casamento dos mesmos.

Essa presumida praxe recebeu vários nomes. Assim:

– na França: ‘droit du seigneur’, ‘braconnage’, ‘culage’, ‘couchet’, ‘deschaussage’, ‘jambage’, ‘gerson’;
– na Itália: ‘cazzagio’, ‘fodero’;
– na Flândria: ‘bednood’, ‘burmede’;
– na Inglaterra: ‘amobr’, ‘amachy’, ‘gobr’, ‘merch’, ‘marchetum’;
– na Alemanha: ‘veit-schoss’, ‘lecher-wite’, ‘legergeldum’.

A existência de tal direito na Idade Média é assaz controvertida entre os estudiosos. Foi o historiador escocês Heitor Noece quem em 1526, pela primeira vez, a afirmou. Como se compreende, escritores posteriores, não somente juristas, mas também romancistas tendenciosos, exploraram o tema em obras e escritos de valor decadente.

Sendo assim, nossa resposta procederá distinguindo o que há de certo e o que fica nebuloso em torno da questão.

2. Tenha-se por certo que, entre os pagãos, não era raro mandasse um esposo deflorar a sua esposa por um personagem de autoridade, da sua própria tribo ou da sua família mesma; julgavam muitos que desta forma obteriam uma prole mais sadia ou mais heroica. Outros motivos pagãos podem ter inspirado esse abuso.

Na civilização medieval, construída sobre as ruínas da antiga cultura romana pagã e sobre as dos povos bárbaros que haviam ocupado o cenário europeu, era, humanamente falando, inevitável que se prolongassem costumes recebidos dos séculos anteriores. Foram principalmente os senhores feudais que os sustentaram. Assim, por exemplo, pretenderam atribuir a si direitos sobre as esposas de seus súditos, já que estes eram tidos como servos da gleba: não lhes era estranho exigir dos servos que se casassem, uma taxa a ser paga uma vez por todas ou parceladamente (todos os anos, todas as semanas…). Acontecia também exigirem que os súditos lhes pedissem licença para usar do matrimônio após o casamento ou pagassem determinada quantia em vista de tal fim; ainda em outros casos (e isto parece menos certo, advertem alguns historiadores) os senhores feudais arrogavam a si o direito de passar com a esposa dos respectivos súditos a primeira noite após as núpcias.

3. Em qualquer caso, não resta dúvida de que esta última praxe (se realmente esteve em vigor) nunca foi reconhecida por lei oficial da Igreja, nunca se tornou objeto de um direito legal cristão; ter-se-á transmitido de época em época à guisa de abuso. Não se poderia portanto responsabilizar a Igreja ou a civilização cristã de haver sugerido ou ao menos reconhecido como lícito tão indigno procedimento; este sempre contrariou frontalmente os princípios da Moral cristã. É, aliás, o que bem atesta a Enciclopédia Larousse (obra notoriamente anticlerical):

– “É mister reconhecer que o direito do senhor não se originou por inteiro nas populações européias dos primeiros séculos da nossa era. A Idade Média, apesar de toda a sua barbárie, nem sequer era capaz de gerar tal monstruosidade. Os costumes anteriores e os exemplos dos antepassados necessariamente contribuíram para a eclosão dessa praxe. Por mais que os historiadores pretendam abstrair, as nações não podem abstrair umas das outras; entre elas existe, como entre os homens, uma espécie de solidariedade, que a história antiga e a história contemporânea apontam a cada página. Ora pode-se afirmar, sem receio de errar, que as tradições antigas devem ter exercido grande influência sobre a jurisprudência que os povos bárbaros impuseram aos vencidos” (Pierre Larousse, “Drbit” em «Grand Dictionnaire Universel du XII siècle», t.VI, pág. 1269).

4. Ainda com referência à legislação eclesiástica, sabe-se que, conforme antiga tradição, esta em alguns lugares pedia dos nubentes a abstenção da cópula sexual durante a primeira ou as três primeiras noites após o casamento; os cônjuges deveriam assim seguir o exemplo de Tobias e Sara…

Com efeito. Assim preceituava o anjo Rafael ao jovem Tobias, que estava para se casar com Sara:

– “Quando a tiveres esposado, após ter entrado no aposento, vive com ela em abstinência durante três dias, pensando apenas em orar a Deus com ela” (Tobias 6, 18).

Caso, porém, os cônjuges cristãos não quisessem observar tal reserva, dela podiam ser dispensados, ficando então sujeitos a entregar certa espórtula ou esmola à Igreja (não seria consentâneo com a realidade equiparar tal esmola a um resgate do hipotético “ius primae noctis”, nem à “compra da esposa” praticada pelos germanos).

5. Nas questões referentes ao “direito da primeira noite”, pode-se dizer que o apologeta cristão só tem um interesse propriamente dito: não o de demonstrar que tão hediondo costume jamais foi praticado entre os cristãos (estes nunca foram isentos dos assaltos da fraqueza humana), mas o de comprovar que, caso tenha estado em vigor, ele nunca logrou foros de liceidade perante o Direito Eclesiástico; só abusivamente pôde ser chamado “ius” ou “direito”. Quanto à hipótese de que os cristãos medievais o tenham praticado, não deve surpreender o observador sincero, pois os cristãos terão cometido tal abuso não por inspiração da Igreja, mas justamente à revelia desta.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 49, janeiro de 1962.
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