Respostas a alguns “erros” dos livros deuterocanônicos

As igrejas protestantes historicamente rejeitam os livros deuterocanônicos, apesar de há poucos séculos atrás trazerem-nos em suas Bíblias. Obviamente, é uma rejeição sem fundamento algum, seja historicamente ou escrituristicamente. Porém existem algumas questões que permanecem no inconsciente coletivo do protestantismo, que fazem com que não percebam que apenas se fundamentam em falácias.

Apresento aqui rápidos comentários a algumas destas questões.

Afirmação: como podem os católicos chamar livros como Judite e Tobias de deuterocanônicos e pertencentes à Bíblia? Judite, por exemplo, mente. Rafael dá um nome falso.

Resposta: nós podemos afirmar que existem várias dificuldades na interpretação dos livros que nós, católicos e protestantes, aceitamos comumente como canônicos, mas isso de modo algum indica que possam ensinar um erro. Não devemos pretender usar o natural para medir o sobrenatural (algo que, diga-se, deixa uma tremenda dificuldade para os protestantes, pois estes rejeitaram a possibilidade de um Magistério Infalível para reconhecer e guiar os cristãos na verdade, ficando então isolados consigo mesmos e com a Bíblia, que não se explica sozinha). Existem exemplos, em outros livros, de “mentiras”. As parteiras dos hebreus mentiram ao faraó a respeito do nascimento de Moisés (Ex 1,15-21), e Deus as “tornou eficazes” (Ex 1,20). Jacó mentiu a seu pai, Isaac, mas recebeu a bênção especial (Gn 27,19). Jael mentiu para Sísara, ao dizer “não temas“, quando na verdade “enterrou o prego na fonte de Sísara, pregando-o assim na terra enquanto ele dormia profundamente por causa da muita fadiga” (Jz 4,18-21). Mesmo assim Deus lhe disse: “Bendita seja entre as mulheres Jael, mulher de Heber, o quenita! Entre as mulheres da tenda seja bendita!” (Jz 5,24). Obviamente não podemos dizer que estes livros ensinam o erro, mas podemos dizer que Deus abençoa pessoas imperfeitas que apresentam boas intenções.

Não consideramos que Rafael esteja mesmo mentindo (Tb 5,15-18). Na realidade, ele se identificou com outro nome ao invés de dar sua identidade completa. Isso não pode ser um pecado porque mesmo Jesus possuiu vários nomes e Ele não se revelou por completo. Quando os judeus lhe perguntaram a respeito de sua autoridade para realizar milagres, Ele não a revelou (Mt 21,23-27). Jesus também era chamado de Emanuel, que significa Deus conosco. Jesus e Rafael podiam ter nomes diferentes, pois o nome revela a essência dessa pessoa e manifesta qualidades espirituais. Da mesma forma Maria pode ser chamada de “cheia de graça”, etc.

Afirmação: como pode o livro de Judite ser verdadeiro se logo no começo ele afirma que o Nabucodonosor foi rei dos assírios (Jd 2,1), quando na verdade ele foi rei dos babilônios (2Rs 24,1)?

Resposta: o mais importante no livro de Judite não é quem foi o rei dos assírios, pois na realidade ele tem como objetivo mostrar verdades espirituais a um povo oprimido e lhes dar esperança, o que é mais importante. O livro não enganou os seus leitores porque eles, assim como o autor, conheciam quem era o rei Nabucodonosor. Nós podemos perceber em outros livros passagens com semelhantes “enganos” dos autores, livros estes que os protestantes não mencionam por aceitarem como canônicos. Por exemplo, Jó menciona que a terra é sustentada por colunas (Jo 9,5-6), e Jesus, que disse que o grão de mostarda é o menor grão que existe (Mc 3,41). Temos também que, no começo da criação, Deus criou a luz antes de criar as estrelas (Gn 1,3.14). Alguns destes “erros” se explicam porque Jesus, no exemplo do grão de mostarda, estava usando o que era de conhecimento comum, pois ele mais confundiria que explicaria suas palavras se, no meio do discurso, dissesse que, na verdade, ainda existem os esporos…

Vejamos a necessidade de se interpretar informações que aparentemente são conflitantes.

Mc 2,25-26: “Nunca lestes o que fez Davi, quando se achou em necessidade e teve fome, ele e os seus companheiros? Ele entrou na casa de Deus, sendo Abiatar príncipe dos sacerdotes, e comeu os pães da proposição, dos quais só aos sacerdotes era permitido comer, e os deu aos seus companheiros”.

1Sm 21,1-6: “Davi foi para Nobe. Chegando à casa do sacerdote Aquimelec, este saiu-lhe ao encontro muito inquieto, dizendo: Por que estás só? Não há ninguém contigo? Davi respondeu-lhe: O rei confiou-me uma missão, com a ordem de não revelar a ninguém o motivo por que me enviou. Combinei com os meus servos um encontro em certo lugar. E agora, se tens à mão alguma coisa, dá-me cinco pães ou qualquer outra coisa que tenhas disponível. Aquimelec respondeu: Não tenho à mão o pão ordinário, mas só pães consagrados, com a condição, no entanto, de que teus servos se tenham abstido de mulheres. Respondeu-lhe Davi: Não tivemos comércio com mulher alguma desde que parti, há três dias. Todos os objetos que pertencem aos meus servos estão puros; e, se nossa missão é profana, pode ser santificada por aquele que a cumpre. Então o sacerdote deu-lhe os pães consagrados, porque não havia ali senão os pães da proposição, que tinham sido tirados da presença do Senhor e imediatamente substituídos por pães frescos”.

Nós vemos aqui que Jesus diz que Abiatar era o príncipe dos sacerdotes. Mas A Bíblia nos diz que quem ocupava tal posto era Aquimelec, na verdade pai de Abiatar (1Sm 23,6))? Como explicar isso?

Abiatar é citado porque representa o fim de sua linhagem. Foi o último sacerdote que apoiava Saul como rei. Foi o único que escapou quando Saul matou toda sua família. Quando Davi morreu e Salomão subiu ao trono, seu irmão mais velho, Adonias, armou um plano para usurpar o poder (1Rs 2,17). “E o rei Salomão disse à sua mãe: Por que queres que Abisag, a sunamita, seja dada a Adonias? Pede também para ele o reino, que é meu irmão primogênito, assim como para o sacerdote Abiatar e para Joab, filho de Sarvia…” (1Rs 2,22). Salomão matou Adonias (vv.24-25), Abiatar foi destituído e em seu lugar nomeado Sadoc (1Rs 2,27.35).

Sadoc apoiou o reinado de Salomão e representava a nova linhagem de sacerdotes. Sadoc agora representava a nova ordem, pois apoiava o novo rei, o filho de Davi, o rei Salomão. Em Cristo nós temos uma nova ordem e um novo reino. Abiatar representava a antiga ordem, o antigo reino. Ele representa Abimelec, seu pai, e a antiga ordem sacerdotal. Este é um tipo dos fariseus que falharam em reconhecer a nova ordem do filho de Davi, o verdadeiro rei de Israel. Assim como ele foi destituído, os fariseus também foram. Assim, citando Abiatar, que representava a antiga ordem, o evangelista Marcos alude ao antigo sistema dos fariseus, que seria substituído.

Diante da dificuldade que a interpretação oferece, infelizmente, os protestantes preferem rejeitar os livros deuterocanônicos a tentarem buscar neles exemplos e mensagens que nada tem de contrário a todo o resto da Bíblia.

Traduzido para o Veritatis Splendor por Rondinelly Ribeiro Rosa.

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