Santidade como perfeição ontológica

Somos todos chamados à santidade. O que é, contudo, a santidade? Será que somos todos chamados à conformidade, a apagar nossas diferenças individuais e virar versões levemente diferentes dos mesmos serezinhos de mãos postas, andando a passos curtos e olhando compungidos para cima?

Não é isso que a Igreja ensina. Podemos perceber, na imagem da rosácea que adorna a fachada de muitas igrejas, uma representação da Comunhão dos Santos, que nos aponta esta diversidade na unidade. Do centro da rosácea partem raios, em todas as direções. Este centro simboliza Deus, e estes raios a Sua graça. Onde eles chegam, nas extremidades da rosácea, temos os santos. São santos muito diferentes entre si: São Tomás de Aquino é um intelectual dedicado aos estudos. São Luís é rei. São Benedito José Labre é andarilho de beira de estrada. Santa Gianna é pediatra.

O que é, então, esta santidade que todos eles têm em comum?

A santidade é, na verdade, a perfeição a que é chamado cada ser humano. Com suas diferenças, com seus talentos, com suas capacidades, no seu estado de vida, nas suas circunstâncias. Com tudo isso, não apesar disso tudo. Cada santo é um santo diferente, e o chamado à santidade é um chamado a ser plenamente quem se realmente é. Ser santo é ser a si mesmo, de modo pleno.

Explico:

Ensinam-nos a metafísica e a Sagrada Escritura[1] participa deste Ser-em-Si, que é Deus. Ou seja: não apenas Deus nos criou, como Ele nos mantém em existência. Nós somos na medida em que participamos do Ser de Deus. Isto vale para tudo, para todas as criaturas. Vale para os planetas e estrelas distantes, vale para os micróbios e partículas subatômicas. Vale para os passarinhos e para as leis da física.

Todo o universo, assim, existe e se mantém em existência por participação no Ser de Deus. Assim como um ferro em brasa participa do fogo sem ser fogo, assim como a cerveja gelada[2] participa do gelo sem ser gelo, tudo o que existe participa do Ser de Deus, sem ser Deus.

Os seres humanos, contudo, têm uma diferença crucial em relação às demais criaturas: o livre arbítrio. A gravidade não escolhe entre atrair e repelir. O pássaro não escolhe comer ou deixar de comer. Cada criatura não humana desempenha o papel que lhe foi dado, seguindo para isso os seus instintos, as leis da física ou da biologia, sem que lhe seja possível negar-se à obediência.

O ser humano, contudo, tem esta capacidade de escolher entre dois bens aparentes. Uma coisa parece boa; outra também. Nós conseguimos escolher qual delas queremos, conseguimos escolher o que faremos; conseguimos, em suma, ir além dos instintos. E assim podemos agir de modo asqueroso ou de modo sublime. A escolha é nossa. O grande escritor inglês G. K. Chesterton dizia que não é possível ao homem agir como um animal: quando age como deveria agir, coloca-se muito acima dos anjos; quando age mal, coloca-se muito abaixo dos animais. Este privilégio da escolha constante é o que nos faz diferentes de todo o resto da criação.

Este privilégio, contudo, também é o que nos dá a oportunidade de não nos encaixarmos nesta ordem de toda a Criação. Ao contrário de todas as outras criaturas, nós escolhemos a cada instante se agiremos de acordo com a ordem ou se seremos um elemento de caos. Se seremos plenamente parte desta ordem, ou se seremos um vão, um buraco na ordem dos seres.

A ordem de toda a Criação, chamada por São Tomás de “ratio divina”, é uma ordem hierárquica. Toda existência já é um bem, mas há criaturas superiores e criaturas inferiores. Os animais, plantas e pedras são naturalmente inferiores ao homem, por não serem criaturas espirituais. Os anjos são naturalmente superiores, por o serem. O homem é a única criatura que é ao mesmo tempo corpórea e espiritual, e é isso que lhe dá esta capacidade de livremente acolher a graça que o aperfeiçoa até que ele esteja acima dos anjos ou negá-la, fazendo com que – como lembra Chesterton – um cãozinho fiel esteja mais ordenado à vontade divina, ao sumo bem, que ele mesmo.

Cada ser humano é diferente. Todos temos em comum a mesma dignidade humana, que podemos negar com nossos atos mas não destruir; é isso que faz com que um cachorro atropelado na beira da estrada seja ruim, mas um ser humano atropelado seja uma tragédia.

Além desta dignidade comum, no entanto, temos nossas diferenças. A uns Deus confia uma coisa, a outros Deus confia outra. Cada um recebe de Deus algo, e é chamado por Deus a aprimorar o que recebeu[3].

O que é, contudo, este aprimoramento?

Vimos que só Deus é, e que somos por participação no Ser-em-Si que é Deus. Este aprimoramento a que somos chamados, portanto, é um aprimoramento do nosso próprio ser, do que cada um de nós é. Buscar a santidade é esforçar-se para, com a ajuda da graça divina e por livre e espontânea vontade, ser uma pessoa melhor. Muito melhor. Muito melhor do que poderíamos ser por conta própria. Afinal, nosso ser é participação no Ser de Deus, e só Ele pode levar cada pessoa a ser plenamente quem Ele a criou para ser, a ser plenamente ela mesma.

A santidade, assim, é uma participação mais plena no Ser de Deus, sendo de maneira perfeita quem se é, quem Deus criou cada um para que fosse. Ele criou São Tomás para ser um estudioso e São Benedito Labre para ser um andarilho. A perfeição do ser de São Benedito Labre só poderia ser encontrada como andarilho, e de São Tomás como estudioso. Saísse São Tomás do seu convento para mendigar pela beira da estrada, ele estaria fugindo de si mesmo. Se São Benedito se trancasse numa biblioteca, ele estaria se impedindo de ser plenamente quem Deus o chamou a ser.

Esta perfeição de ser quem se é, esta perfeição de participação no Ser divino é o que torna compreensíveis as diferenças entre os Santos. Eles são diferentes por serem pessoas diferentes, criadas diferentes por Deus e tendo em comum a plenitude da participação no Ser de Deus.

Convém notar, nestes tempos de ideias estranhas no ar, que isto é o oposto do panteísmo pregado pelos orientais. Dizem os pagãos que “tudo é deus”, que “temos um deus dentro de nós”. Nada mais falso. É justamente a diferença entre Criador e criaturas que está na base não só da santificação de cada um, como da própria ordem do universo.

Participar do Ser de Deus não significa ser Deus. Muito pelo contrário, aliás. A cerveja gelada é mais, não menos, cerveja por participar do gelo. O que ela é (cerveja) é tornado mais adequado a seu fim (matar a sede num dia quente). Ela não pode ser substituída por gelo, nem o gelo por ela: são coisas diversas.

É esta diversidade que possibilita que haja a ordem de todas as coisas, a ratio divina. Se tudo fosse Deus, nada mudaria, nada poderia aperfeiçoar-se. Não haveria diversidade, logo nada poderia ser ordenado. Assim como é impossível organizar uma coleção de 500 cópias do mesmo livro, seria impossível que houvesse ordem na criação se tudo fosse o mesmo deus, como querem os pagãos orientais.

Havendo, contudo, esta bem-aventurada diferença, há uma ordenação. É nesta ordenação, querida por Deus, que nos encaixamos mais completamente ao nos tornarmos mais perfeitamente nós mesmos, ao, em suma, nos santificarmos.

Quando, ao contrário, escolhemos não ser em Deus, nós nos tornamos um buraco na estrutura, um furo no telhado, uma rachadura na coluna.

Assim como o frio é a ausência de calor e a escuridão é a ausência de luz, o mal é a ausência de bem. O pecado, assim, é uma ausência, um vazio, que vem de uma escolha por basear o nosso ser em alguma criatura, não em Deus. Quando uma pessoa escolhe pecar contra a castidade, por exemplo, o que ela está fazendo é basear o seu ser naquele prazer passageiro. Quando escolhe a cobiça, está tentando basear o seu ser nos bens materiais. Mas não há prazer sexual ou bem material que possa servir de base para o ser; é possível iludir-se um pouco, por algum tempo, mas a própria condição de coisa criada, transitória, de todas estas falsas opções faz com que elas não bastem. E daí quem escolheu “ser” pelo dinheiro precisa de mais, cada vez mais. Quem escolheu “ser” nos prazeres sensíveis vai precisando de prazeres cada vez mais complicados e pervertidos para atingir uma saciedade cada vez mais passageira.

Já quem escolhe – e continua escolhendo, pois esta é uma escolha que se faz a cada momento – ser si mesmo, baseando assim o seu ser em Deus e adequando-o à ordem de todas as coisas, consegue se tornar uma pessoa melhor. Consegue colocar-se, pela graça de Deus, acima dos anjos.

Já vimos, portanto, que há formas de tentar inutilmente basear o próprio ser em uma criatura. Como, porém, conseguimos baseá-lo em Deus? Como, em suma, podemos ser santos?

A primeira coisa a perceber é que temos, todos nós, além das diferenças um ponto em comum: a natureza humana. Ou seja: assim como nosso corpo precisa de oxigênio, água, nutrição, uma temperatura condizente com a vida, precisa evitar certos micro-organismos, etc., nosso ser precisa permanecer dentro de alguns limites. Estes limites espirituais não são arbitrários, ou ao menos não são mais arbitrários que os corpóreos. Assim como não podemos substituir o oxigênio por outro gás e permanecer vivos, assim como não podemos matar a sede com chumbo derretido ou mercúrio, nós não podemos, se quisermos ser plenamente quem realmente somos chamados a ser, violar certas “instruções do Fabricante”.

Estas instruções, aplicáveis a todo ser humano, são expressas nos Dez Mandamentos. Quando Deus nos diz para não pecarmos contra a castidade, por exemplo, não se trata de uma maluquice que Lhe veio à cabeça, mas de um aviso: pecar contra a castidade vai nos esvaziar, nos aprisionar numa tentativa de ser baseada em criaturas. Vai impedir que alcancemos nosso potencial.

É claro que na hora o pecado pode parecer delicioso. Também parece maravilhoso tornar-se o possuidor de algo obtido através de roubo, ver-se livre do chato a quem matamos, passar o domingo lavando o carro… Mas tudo isso vai nos arrastar para baixo. Vai nos esvaziar, nos tornar menos reais, mais vazios, menos ajustados à ordem de todas as coisas. Com o passar do tempo, o prazer vai virar dependência, a dependência vai se tornar mais forte, e vai ficar cada vez mais difícil recuperar a própria integridade. O vazio se torna um buraco negro, pois se o tenta encher com algo que passa.

Ainda dentre os auxílios dados por Deus para todos os seres humanos, além das instruções, que são os Mandamentos, encontramos os remédios, que são os Sacramentos.

A graça de Deus, que nos santifica, que torna coeso o nosso ser e nos auxilia e conduz no caminho da perfeição, nos vem através destes “sinais visíveis e eficazes de uma realidade invisível”. O Batismo nos dá a adoção filial divina e a graça santificante, que é o combustível que nos leva a sermos plenamente nós mesmos, a argamassa desta construção real de si.

O Crisma nos confirma estes dons e nos fortalece. O Santíssimo Sacramento nos alimenta, no contato íntimo com Quem nos criou. A Confissão sacramental nos restabelece na graça e nos possibilita recuperarmos, pela penitência, oração e caridade, os pedaços de nós mesmos que arrancamos. A Ordem garante que a cada geração tenhamos acesso a estes dons. O Matrimônio faz da união de um homem e uma mulher para ter filhos e cria-los uma fonte de graças e um local de santificação. A Unção dos Enfermos nos devolve, no final da corrida, os pedaços de nós mesmos que arrancamos ao longo do caminho.

Mais não me é possível escrever aqui, por ausência de espaço; vejo-me forçado a passar logo àquilo que é de cada um, aquilo que difere de pessoa para pessoa.

Até agora vimos aquilo que Deus nos deu a todos, como instrução e como meio de santificação. Veremos agora as armadilhas e os remédios que temos dentro de cada um de nós, agindo de maneira diversa em cada indivíduo.

Cada um tem potencialidades diversas, para bem e para mal. O que para uns é tentação fortíssima é para outros completamente indiferente. O que para uns é o caminho da santificação, para outros é uma fuga de si mesmo.

Encontramos, apontados pela sabedoria da Igreja, os bons e os maus hábitos individuais que nos aproximam ou nos afastam da perfeição do ser. Aos bons hábitos, chamamos Virtudes; aos maus, Vícios.

O rei de todos os maus hábitos, aquele que está na origem de todos, paradoxalmente, é aquele que mais parece, à primeira vista, corresponder à busca da plenitude do ser: o Orgulho.

Dele decorrem todos os outros. O orgulho é um amor desordenado pela própria excelência. É achar que já se tem, que já se é, que, em suma, o nosso ser é a própria base. É tentar basear o ser não no Ser de Deus, mas em si mesmo.

Do orgulho, quando ele é dirigido a coisas externas, nasce a avareza; quando é dirigido ao que deveria ser nosso sustento, nasce a gula; quando é dirigido ao que deveria servir à nossa multiplicação, nasce a luxúria; quando é dirigido ao bem do próximo, nasce a inveja; quando é dirigido ao mal do próximo, nasce a ira; quando é dirigido ao esforço, nasce a preguiça.

Podemos notar, à luz do que já vimos, como estes pecados, ditos capitais, são também desigualmente distribuídos, e como todos têm a mesma origem. Para alguns, a luxúria é o maior perigo, enquanto para outros a avareza fala mais forte. Discernir a qual destes vícios tendemos, em qual destes vícios caímos, é discernir em que direção se precipita o vazio do ser, que é o Orgulho.

Para combater os Vícios, devemos incentivar as virtudes que lhes são opostas. Delas, a mais importante é a Humildade, oposta ao Orgulho. Ela consiste simplesmente em perceber o quanto somos dependentes de Deus, perceber que é n’Ele que devemos basear o nosso ser. Perceber, em suma, que d’Ele viemos, e que deve ser Ele o fim último de cada um de nossos atos; só assim seremos plenamente quem somos chamados a ser.

—–
NOTAS

[1] Êxodo 3,14: “Deus disse a Moisés: EU SOU O QUE SOU. E disse: assim dirás aos filhos de Israel: AQUELE QUE É enviou-me a vós”.
[2] “Gelada” é o particípio passado do verbo “gelar”: a gramática ainda apresenta alguns traços da filosofia clássica.
[3] Mateus 15,14-30.

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.