INTRODUÇÃO
Uma das maiores disputas entre católicos e protestantes é, sem dúvida alguma, quanto ao uso das imagens sagradas na Igreja de Deus. Desde o princípio, a Igreja Católica sempre defendeu seu uso, ao contrário da esmagadora maioria das igrejas protestantes que preferem encarar o problema como um insulto ao Mandamento divino que proíbe confeccionar imagens (Ex 20,4). Não raro, costumam a chamar os católicos de idólatras, ou seja, adoradores de ídolos, como se as imagens fossem algum tipo de ídolo ou – pior ainda – dando a entender que a Igreja Católica ordena adorar essas imagens.
Diante de tal matéria, qual dos lados estaria com a razão? Estaria a Igreja Católica infringindo o Mandamento de Ex 20,4 ou estaria a Igreja aplicando-o conforme a vontade de Deus? Este artigo visa, especificamente, esclarecer tal questão, tomando como base as dezenas de perguntas que já respondi, principalmente aquelas formuladas por nossos irmãos separados.
IMAGEM
Antes de mais nada, convém explicar o que é uma imagem.
A imagem é muito mais do que uma simples escultura: na verdade é qualquer coisa que permite excitar a nossa vista, pouco importando se é uma escultura, um desenho, uma pintura, um objeto. Até mesmo os dicionários não religiosos são unânimes em afirmar que a imagem é a representação de um objeto pelo desenho, pintura, escultura, etc. Logo, uma pintura de Michelangelo é uma imagem da mesma forma que o desenho do tio Patinhas e o busto do Duque de Caxias também o são, de modo que não importa se a imagem está em "segunda dimensão" (podendo ser representada num plano x-y) ou em "terceira dimensão" (representada no plano x-y-z), mas que ela excite a vista e, por consequência, a imaginação, que é a capacidade de conceber abstratamente aquilo que é concreto, real.
Desta forma, uma imagem – principalmente a imagem religiosa – encerra um sentido muito mais profundo do que o próprio objeto. Ela, sem precisar – necessariamente – fazer uso da palavra, consegue falar e sensibilizar as pessoas com muito mais facilidade que ótimos oradores, pois carrega uma linguagem própria que nem sempre precisa excitar nossos ouvidos. É inegável o poder de persuasão da imagem: a TV (imagem) não suplantou o rádio (palavra)? São Paulo não se converteu ao Evangelho graças à visão resplandescente de Cristo no caminho de Damasco? Quantos homens também não se converteram por um simples olhar para uma imagem ou crucifixo mudos no interior de uma igreja? Até mesmo a Bíblia afirma que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27). Vemos, assim, que o velho ditado "uma imagem vale mais do que mil palavras" é mais do que verdadeiro: é uma realidade.
ÍDOLO
Ídolo não é – e jamais foi! – sinônimo de imagem. Ambos são distintos e inconfundíveis…
Ao contrário da imagem, que excita a vista, o ídolo é aquilo que substitui o único e verdadeiro Deus. Um bom exemplo, que confirma a nossa tese, é o episódio do bezerro de ouro narrado em Ex 32: como Moisés demorava para descer do Monte Sinai, os hebreus fugitivos do Egito não tardaram a confeccionar um bezerro em ouro, a quem cultuaram como se fosse o verdadeiro Deus.
"O povo reuniu-se em torno de Aarão e lhe disse: 'Vamos! Faze-nos deuses que caminhem à nossa frente…'. Aarão lhes disse: 'Tirai os brincos de vossas mulheres, vossos filhos e vossas filhas, e trazei-os a mim'. […] Recebendo o ouro, ele o moldou com o cinzel e fez um bezerro fundido. Então eles disseram: 'Aí tens, Israel, os deuses que te fizeram sair do Egito!' […] Levantando-se na manhã seguinte, ofereceram holocaustos e apresentaram sacrifícios pacíficos" (Ex 32,1b-2.4.6a).
Esses versículos permitem-nos distinguir os elementos que caracterizam o ídolo:
Percebamos bem como o milagre da fuga do Egito foi atribuído ao objeto que tinha a imagem de um bezerro de ouro. Notemos também como esse bezerro passa a substituir o verdadeiro e único Deus assim como também lhe são oferecidos sacrifícios devidos a Deus.
Observando isto com muito cuidado e sem preconceitos, podemos reparar que o culto prestado ao bezerro de ouro bem como a proibição bíclica de confeccionar imagens de ídolos não podem ser confundidos contra as imagens cristãs, uma vez que falta-lhes os elementos que as constituam como ídolos: quando a Igreja Católica afirmou que devemos adorar as imagens dos santos? Quando a Igreja atribui-lhes poderes de salvar a humanidade do pecado ou conferiu-lhes título de todas-poderosas? Quando a Igreja prestou-lhes culto de adoração?
Vemos, assim, que a imagem não implica na superstição como obriga o ídolo, que substitui Deus atribuindo ao objeto ou à coisa imaterial poderes que ele por si só não possui. A imagem é um objeto que lembra algo fora dele; o ídolo é o ser em si mesmo. A quebra de uma imagem não destrói o ser que representa; já a destruição de um ídolo implica da destruição da falsa divindade.
LATRIA x DULIA
Uma vez apresentadas as diferenças entre imagem e ídolo, faz-nos necessário situá-los em seu verdadeiro contexto religioso, isto é, demonstrar o respeito que cabe a cada um deles.
Para isto, precisamos distinguir entre latria e dulia. Antes, porém, gostaria de observar que, oportunamente, pretendo disponibilizar um artigo onde são estudadas mais profundamente as diferenças entre os dois tipos de conceito. Para o momento, entretanto, basta mencionar a diferença básica.
Uma visão clara sobre o assunto pode ser retirada de um antigo manual de religião publicado em 1858 em Portugal:
"Cumpre venerar (=dulia) todos os Sanctos que estão no céo, como a servos e amigos de Deus; porem invocando-os e venerando-os (=dulia), não os adoramos (=latria), e fazemos sempre grande differença entre Deus e as creaturas. Rogando aos Sanctos não os olhamos nem consideramos senão como nossos intercessores para com Jesu-Christo, que é o Medianeiro que nos remio com seu sangue, e por quem podemos sêr ouvidos e alcançar a salvação" (Manual Portuguez, ed. d'Aguiar Vianna, Lisboa, Portugal, 1858, pág. 17).
Tal texto é muito interessante porque explica em poucas linhas, mas com grandes detalhes a diferença básica entre adoração/latria e veneração/dulia: a primeira é destinada ao Criador, a segunda – bem inferior à primeira – às criaturas servas e amigas de Deus. Adoramos a Deus porque Ele é todo-poderoso e nosso Salvador; veneramos os santos – representados nas imagens – porque seus exemplos de vida nos apontam para o verdadeiro caminho: Jesus Cristo (cf. Jo 14,6), único Mediador e Redentor da humanidade.
Assim, se passarmos a adorar uma criatura (seja ela criatura de Deus ou criatura do próprio homem) estaremos cometendo o pecado da idolatria, severamente punido por Deus. Um bom exemplo disto são as pessoas que atribuem todo poder ao dinheiro, acreditando que ele pode com tudo neste mundo: um caso não muito raro de idolatria nos dias de hoje!
A BÍBLIA CONDENA AS IMAGENS?
Depende do contexto!
Se folhearmos a Bíblia, encontraremos várias passagens onde as imagens são condenadas. Por ex.: Ex 20,4-5; Lv 26,1; Dt 7,25; Sl 97,7; 115,8…
Estaria, portanto, a Igreja Católica errada ao permitir a colocação e o uso de imagens em seus templos e nas casas dos fiéis?
Ora, a Igreja Católica é a única Igreja que possui ligação direta com os tempos apostólicos; ela também ficou responsável pela guarda do depósito da fé, em especial das Sagradas Escrituras. Certamente, se quisesse mesmo agir contra a Palavra de Deus, adulteraria a Bíblia nessas passagens que condenam as imagens. O livro da Sabedoria – não reconhecido como Inspirado pelos protestantes, mas apenas pelos cristãos católicos e ortodoxos – condena, como nenhum outro livro do Antigo Testamento, a idolatria (cf. Sb 13-15). Não seria mais fácil para ela fazer como os protestantes e repudiar o citado livro?
E por que não o fez? Simplesmente porque a Bíblia deve ser lida dentro de seu contexto e de forma completamente imparcial!
Dessa forma, perceberemos que a própria Bíblia também defende o uso de imagens! Veja-se, por exemplo: Ex 25,17-22; 37,7-9; 40,18; Nm 21,8-9; 1Rs 6,23-29.32; 7,26-29.36; 8,7; 1Cr 28,18-19; 2Cr 3,7.10-14; 5,8; 1Sm 4,4; 2Sm 6,2; Sb 16,5-8; Ez 41,17-21; Hb 9,5…
Como compreender essa curiosa "contradição", já que o texto do Êxodo parece ser tão contundente:
"Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra" (Ex 20,4)
Fácil… Observando sempre os critérios de contexto e imparcialidade, devemos saber quando e em quais casos as imagens são proibidas ou aceitas.
Analisemos, primeiro, o mandamento acima, repetido novamente em Dt 5,8 fala explicitamente de ídolo que, conforme vimos, é aquela coisa material ou imaterial que é colocado para substituir o verdadeiro Deus. Em Dt 13, temos a confirmação de que a função do ídolo é ser Deus; são os chamados falsos deuses. Mesmo com o mandamento acima, podemos perceber que os israelitas eram inclinados à idolatria, tendo-se em vista que eram escravos no Egito onde, mesmo mantendo a fé, assimilaram muitos costumes religiosos desse país, como prova a passagem do bezerro de ouro, onde este é confeccionado em virtude de uma simples demora da parte de Moisés.
Isto justifica a existência de um mandamento contra a idolatria: Israel estava cercada de nações pagãs, politeístas e idólatras; cultuava-se o sol, os astros, os crocodilos, os reis, os gatos, etc. O verdadeiro povo de Deus devia se afastar de tudo isso pois era monoteísta!
Tentemos, agora, compreender porque a mesma Bíblia que proíbe, também permite a confecão de imagens. Para isso, vamos recorrer a Nm 21,4-9, onde o próprio Deus ordena a Moisés a fabricar uma serpente de bronze para curar todos aqueles que para ela olhassem e tivessem sido picados por cobras no deserto. Neste caso a imagem não serviu para afastar o povo de Deus, mas para aproximá-lo, para demonstrar o Seu poder, sem contudo fazer esquecer o real motivo das picadas: o descontentamento de Deus com a teimosia de seu povo (v.5).
Alguém poderia objetar: "Mas 2Rs 18,4 mostra que essa serpente foi depois destruída por Ezequias e que esse gesto agradou a Deus (v.3)!". Contudo, tal argumentação é descabida porque em Ex 21,8 vemos que a serpente também foi confeccionada por ordem direta do Senhor a Moisés… Na verdade, o gesto de Ezequias pode ser compreendido pelo contexto do mesmo versículo 4 de 2Rs 18: a serpente de bronze deixara de cumprir a função de aproximar o povo de Deus e passara a ser vista como uma deusa: adquirira o nome de Noestã e incenso (símbolo de culto à divindade) era-lhe dedicado. Em outras palavras, a imagem da serpente (símbolo da compaixão de Deus Salvador para com seu povo) virara ídolo, substituindo o verdadeiro Deus Javé pela nova deusa "salvadora" Noestã: um crime flagrante contra o Mandamento que condena a idolatria. É desnecessário mencionar que esse desvirtuamento da função da serpente de bronze foi culpa única e exclusiva do povo que passou a idolatrá-la. Isso, porém, de forma alguma legitima ou justifica a destruição ou retirada das imagens sagradas!
Logo, o que a Bíblia condena é a idolatria, a substituição de Deus por uma criatura, isto é, o uso negativo da imagem que fazem as pessoas a terem uma idéia errônea sobre Deus. Se o uso for positivo, aproximando as pessoas do verdadeiro Deus, então seu uso é justificado e permitido. A imagem simplesmente ajuda a criar um clima favorável à oração e é um meio eficaz de evangelizar principalmente os pobres e iletrados.
APENAS OS CATÓLICOS E ORTODOXOS CONFECCIONAM IMAGENS?
Antes de tratarmos sobre este tema, é interessante citar que os próprios judeus entenderam muito bem o tipo de proibição que a Bíblia impõe quanto ao uso das imagens: confeccionaram querubins de ouro para colocar sobre a Arca da Aliança (Ex 25,17-22), ornamentaram seus palácios e templos com imagens de bois, touros, leões e querubins (1Rs 23-29). Também famosa foi a sinagoga de Dura-Eurôpos, na Babilônia, cujo interior apresentava imagens de Moisés e a sarça ardente, a saída do Egito, o sacrifício de Abraão e a visão de Ezequiel.
Entre os cristãos também não foi diferente: a partir do momento em que se crê e se adora um Deus único passa a ser contraditório e impossível oferecer o mesmo grau de adoração para qualquer outro ser (material ou imaterial) sem cair no pecado da idolatria.
As imagens sempre foram usadas por Jesus e pelos apóstolos como instrumentos eficazes e reveladores da realidade invisível: para anunciar o Reino de Deus usaram imagens de lírios, pássaros, sal, luz, etc., coisas que estimulavam a compreensão do abstrato através de imagens retiradas do mundo concreto. São Paulo também nos ensina que o Deus invisível tornou-se vísivel em Jesus Cristo (cf. Cl 1,15). As catacumbas cristãs também apresentam, nas mais difersas formas (esculturas, pinturas e desenhos) imagens bíblicas como a multiplicação dos pães, o Bom Pastor, Noé e o dilúvio, a Virgem Maria, etc.
Os cristãos orientais (ortodoxos) também devotam grande respeito às imagens, as quais chamam de ícones. Os ícones gregos e russos são tidos como os mais belos da iconografia cristã. Também os mosaicos gregos e latinos são exemplos de imagens da arte cristã à serviço da evangelização.
Aliás, o uso catequético das imagens sempre foi defendido pelos doutores da Igreja principalmente para ensinar a fé cristã às crianças e analfabetos. Já em 394, São Gregório de Nissa, escreveu:
"A figura muda sabe falar nas paredes das igrejas e muito ajuda" (Panegírico de São Tenório).
Depois, em 604, o papa São Gregório Magno escreveu o seguinte ao bispo de Marselha:
"Vós não devieis quebrar o que foi posto nas igrejas, não para ser adorado, mas simplesmente venerado. Uma coisa é adorar uma imagem e outra coisa é aprender, através dessa imagem, a quem as tuas orações são dirigidas. O que as Escrituras representam para os letrados, a imagem o é para os iletrados: são por essas imagens que aprendem o caminho a seguir. A imagem é o livro dos que não sabem ler" (Epístola XI,13).
São João Damasceno (749) também defendia o uso didático das imagens. Com a eclosão da iconoclastia (isto é, a destruição das imagens sagradas) nos séculos VIII e IX, o Segundo Concílio de Nicéia, em 787, reafirmou solenemente a validade da veneração das imagens, não pelo valor do material em si, mas pelo valor das figuras que representam; seu culto, assim, é relativo, explicando-se pelo oferecimento indireto das orações àqueles que as imagens representam. Assim se definiram os padres conciliares na Sessão de 13 de outubro de 787:
"Definimos […] que, como as representações da Cruz, […] assim também as veneráveis e santas imagens, em pintura, em mosaico ou de qualquer outra matéria adequada, devem ser expostas nas santas igrejas de Deus, nas casas e nas estradas. O mesmo se faça com a imagem de Deus Nosso Senhor e de Jesus Cristo Salvador, com as da […] Santa Mãe de Deus, com as dos Santos anjos e as de todos os Santos e justos. Quanto mais os fiéis contemplarem essas representações, mais serão levados a se recordar dos modelos originais, a se voltar para eles, a lhes testemunhar… uma veneração respeitosa, sem que isso seja adoração, pois esta só convém, segundo a nossa fé, a Deus".
TODOS OS PROTESTANTES REPUDIAM AS IMAGENS?
No séc. XVI, a Reforma Protestante retomou a luta contra as imagens e passou a arrancar e destruir as imagens sacras. Alguns historiadores indicam Martinho Lutero como o responsável por tal "violência", ao combater o culto aos santos. Entretanto, tomando contato com livros luteranos, parece-me que a versão tradicional não condiz com a realidade, já que os luteranos parecem não se posicionar contra o uso das imagens.
Muito pelo contrário, o teólogo e historiador luterano Martin N. Dreher, em sua obra "A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma" sustenta uma posição bem favorável ao uso das imagens. Seguem alguns trechos dessa sua obra, em especial do capítulo 5, entitulado "Palavra e Imagem":
"Na primavera de 1522 aconteceu, em Wittenberg, o início de uma das maiores catástrofes na história da humanidade. O conselho da cidade determinara a retirada das imagens das igrejas. Quando se começou a executar a decisão dos conselheiros municipais, a multidão reunida na frente da igreja da cidade invadiu o templo, arrancou as imagens das paredes, quebrou-as e terminou por queimar tudo do lado de fora. Em questão de minutos, uma paixão brutal destruiu o que para gerações de cristãos fora objeto de veneração religiosa. […] Onde os iconoclastas passaram, os templos ficaram como lavouras após uma chuva de granizo. […] Igual a uma epidemia o iconoclasmo se alastrava por todas as regiões. […] E o mais interessante é que são poucos os historiadores que se referem a ele, permitindo que o iconoclasmo continue a ser praticado até os nossos dias. […] O terrível disso tudo é que cristãos, munidos de machados e martelos, se levantaram contra objetos sacros, em locais consagrados, ante os quais até há pouco se haviam ajoelhado. […] Cristãos destruíram a linguagem da imagem que durante séculos havia orientado os cristãos. E o culpado pela destruição não foi o povo, mesmo que ele tenha realizado a ação; os culpados foram os pregadores que, a partir do púlpito, incitaram ao iconoclasmo. […] O mentor intelectual do iconoclasmo em Wittemberg foi Andreas Bodenstein, de Karlstadt. […] Ardoroso em sua maneira de ser, mas falho no tocante à reflexão sobre a consequência de seus atos, Karlstadt assumiu a direção do movimento reformatório em Wittemberg enquanto Lutero se encontrava no Wartburgo. […] No inverno de 1521/22, [Karlstadt] escreveu e publicou livreto com o título 'Da Eliminação das Imagens'. O livro é diminuto, tem poucas páginas, mas teve grandes consequências, provocando a destruição de muitas obras-de-arte. Segundo Karlstadt, não se pode tolerar imagens nas igrejas, pois afrontam o primeiro mandamento. Os 'ídolos de óleo' colocados sobre os altares, são invenção do demônio. Karlstadt tomou posição não somente contra esculturas, mas contra pinturas, a nova tendência na arte do Renascimento e da Reforma. […] Há autores que consideram Karlstadt o primeiro puritano. Assim, o emergente puritanismo seria responsável pelo iconoclasmo. […] Um outro momento parece ser importante para entender a onda iconoclasta: o biblicismo. […] Na Reforma se expressou a convicção de que somente a palavra havia de vencer. […] Para o mundo da Reforma, que tomava o cristianismo primitivo como norma e exemplo, não podia haver lugar para a imagem. Não é de se admirar que parte considerável do protestantismo tenha assumido as concepções de Karlstadt e que Calvino tenha em sua 'Institutas' um capítulo dedicado a todos os argumentos que podem ser usados contra as imagens. […] Quais as consequências desse fato? O século XVI não mais entendeu a linguagem das imagens e, por isso, as destruiu, produzindo consequências caóticas e cegueira. […] Com a retirada das imagens do interior das igrejas protestantes destruiu-se o pensamento simbólico tão constitutivo para o cristianismo. E o pensamento simbólico é pensamento religioso propriamente dito. É na linguagem simbólica que se expressa a experiência do espiritual. Quando essa forma de pensamento não-conceitual deixa de ser usada ou é ridicularizada, produz-se a destruição de uma das disposições religiosas do ser humano. Quando se destruíram as imagens, destruiu-se o elemento que deixa o que é cristão transformar-se em sentimento. A imagem provoca e confirma o pensamento simbólico, sem o qual não se pode imaginar religiosidade viva. Observando imagens religiosas aprendemos a sentir simbolicamente. A melhor forma de introduzir crianças no mundo de concepções cristãs é através de imagens. Quando aprendemos a ver a imagem apenas como 'ídolo', destruímos a percepção para o pensamento simbólico. […] Quando o ser humano não é mais capaz de pensar e de ver símbolos em uma tradição cristã viva, sua consciência religiosa fica esclerosada. […] No início, Lutero tinha dificuldades com as imagens e afirmava que seria melhor se não existissem. […] Mas quando Karlstadt deu início à onda iconoclasta, nela nada mais viu do que vandalismo, que estava prestes a destruir a liberdade evangélica e a reintroduzir a lei. Por isso, Lutero passou pouco depois a afirmar que imagens são memoriais e testemunhos e como tais devem ser toleradas. Além disso, chegou a afirmar que, se pudesse, mandaria pintar toda a Bíblia dentro e fora das casas. Sua postura em favor da pintura e das imagens tornou-se mais do que evidente desde a publicação dos catecismos (1529). As imagens movem a fé das crianças e dos simples. A fé cristã não se dirige, para ele, apenas aos ouvidos, mas também aos olhos das pessoas. […] A arte sacra deve ser meditada, e meditação não é pensamento lógico. Meditar é silenciar para que Deus possa falar. Nos últimos 500 anos, em razão do iconoclasmo, o pecado humano não tem deixado Deus falar; só fala o homem" (autor e obra citados, ed. Sinodal, São Leopoldo/RS, 1996, págs. 53-57; grifos nossos).
As palavras acima demonstram que o mundo protestante vem se abrindo para o uso das imagens. É interessante notar como a posição de Dreher é semelhante à da Igreja Católica, especialmente por repudiar o iconoclasmo e por reconhecer a importância que as imagens representam para o pensamento abstrato e catequético. Antes disso, em 1956, um congresso luterano lançou a questão: "por que admitir as impressões auditivas na catequese e rejeitar as impressões visuais? Estas parecem ainda mais eficientes do que aquelas".
CONTRADIÇÕES DO MUNDO PROTESTANTE
Ainda que alguns protestantes se manifestem a favor do uso de imagens, é muito comum encontrarmos posições críticas a esse respeito. Mesmo assim, o mundo protestante apresenta algumas inconsistências dignas de serem observadas:
- A própria Bíblia é uma imagem: as palavras impressas sobre o papel nada mais são do que símbolos gráficos que excitam os olhos resultando na imaginação responsável pela compreensão do texto. Em verdade, a Bíblia é a imagem da Palavra de Deus.
- Imagem não é apenas escultura: muito pelo contrário, abrange também pinturas, gravuras, desenhos e quaisquer outras formas que estimulem a visão. É, portanto, inconcebível que as mesmas igrejas que atacam as imagens sacras defendidas pelos católicos distribuam folhetos, Bíblias e estudos bíblicos ilustrados, quer para crianças, quer para adultos – pois senão também estarão afrontando o Mandamento divino de Ex 20,4, como dizem que os católicos afrontam…
Abaixo, apresento algumas imagens distribuídas pelos protestantes que costumam a acusar os católicos de idólatras:
Imagem do rosto de Cristo no folheto "Ele é a solução", produzido e distribuído pelos Adventistas do 7º Dia: qualquer semelhança com as imagens católicas de Cristo não é mera coincidência. | |
Imagem de Jesus Cristo no folheto "Quem realmente governa o mundo", produzido pela Sociedade Torre da Vigia e distribuído pelas Testemunhas de Jeová: Cristo representado com barba e cabelos longos concordam com as imagens católicas. | |
Estátua de um anjo sobre o templo Mórmon de Salt Lake City, segundo revista "Despertai", de 08.11.1995: exemplo de imagem em escultura no meio protestante. | |
Imagem desenhada representando a visita dos Reis Magos no "Caderno Bíblico nº 1/NT" da Sociedade Bíblica do Brasil: a cena se refere a Mt 2,1-12, porém concorda com a tradição católica de 3 reis magos, já que esse número não é explicitamente citado pela Bíblia. Bom exemplo do uso de imagens para a catequese. | |
Marcador de livro distribuído por um candidato membro da Assembléia de Deus de Santos, durante as Eleições'98: a cena apresenta Moisés e os hebreus atravessando o Mar Vermelho. Outro ótimo exemplo do uso de imagens para fins catequéticos. | |
História em quadrinhos produzida pelo americano J.T.C. e distribuída por diversas igrejas protestantes: embora sua real intenção seja combater Maria Santíssima, acaba retrantando-a de acordo com a tradição católica. |
A DOUTRINA OFICIAL CATÓLICA
Falta-nos ver, finalmente, a posição oficial da Igreja sobre as imagens. Esta pode ser retirada do Catecismo da Igreja Católica:
- 476. Visto que o Verbo se fez carne assumindo uma verdadeira humanidade, o corpo de Cristo era delimitado. Em razão disto, o rosto humano de Jesus pode ser 'representado' (Gl 3,1). No VII Concílio Ecumêncio [=II Concílio de Nicéia] a Igreja reconheceu como legítimo que Ele seja representado em imagens sagradas.
- 1159. A imagem sacra, o ícone litúrgico, representa principalmente Cristo. Ela não pode representar o Deus invisível e incompreensível; é a encarnação do Filho de Deus que inaugurou uma nova 'economia' das imagens: "Antigamente Deus, que não tem nem corpo nem aparência, não podia em absoluto ser representado por uma imagem. Mas agora, que se mostrou na carne e viveu com os homens, posso fazer uma imagem daquilo que vi de Deus. (…) Com o rosto descoberto, contemplamos a glória do Senhor" (São João Damasceno, Imag. 1,16).
- 1160. A iconografia cristã transcreve pela imagem a mensagem evangélica que a Sagrada Escritura transmite pela palavra. Imagem e palavra iluminam-se mutuamente: "Para proferir sucintamente a nossa profissão de fé, conservamos todas as tradições da Igreja, escritas ou não escritas, que nos têm sido transmitidas sem alteração. Uma delas é a representação pictórica das imagens, que concorda com a pregação da história evangélica, crendo que, de verdade e não na aparência, o Verbo de Deus se fez homem, o que é também útil e proveitoso, pois as coisas que se iluminam mutuamente têm sem dúvida um significado recíproco" (II Concílio de Nicéia, DOC 111).
- 1161. Todos os sinais da celebração litúrgica são relativos a Cristo: são-no também as imagens sacras da santa mãe de Deus e dos santos. Significam o Cristo que é glorificado neles. Manifestam a 'nuvem de testemunhas' (Hb 12,1) que continuam a participar da salvação do mundo e às quais estamos unidos, sobretudo na celebração sacramental. Através dos seus ícones, revela-se à nossa fé o homem criado 'à imagem de Deus' e transfigurado 'à sua semelhança', assim como os anjos, também recapitulados por Cristo […].
- 1162. "A beleza e a cor das imagens estimulam a minha oração. É uma festa para os meus olhos, tanto quanto o espetáculo do campo estimula meu coração a dar glória a Deus" (São João Damasceno, Imag. 1,27). A contemplação dos ícones santos, associada à meditação da Palavra de Deus e ao canto dos hinos litúrgicos, entra na harmonia dos sinais da celebração para que o mistério celebrado se grave na memória do coração e se exprima em seguida na vida nova dos fiéis.
- 2129. O mandamento divino incluía a proibição de toda representação de Deus por mão do homem. O Deuteronômio explica: "Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que o Senhor vos falou no Horeb, do meio do fogo, não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de ídolo…" (Dt 4,15-16). Eis aí o Deus absolutamente transcendente que se revelou a Israel. "Ele é tudo" mas, ao mesmo tempo, ele está "acima de todas as suas obras" (Eclo 43,27-28). Ele é a própria fonte de toda beleza criada" (Sb 13,3).
- 2130. No entanto, desde o Antigo Testamento Deus ordenou ou permitiu a instituição de imagens que conduziriam simbolicamente à salvação através do Verbo encarnado, como são a serpente de bronze (cf. Nm 21,4-9; Sb 16,5-14; Jo 3,14-15), a arca da aliança e os querubins (cf. Ex 25,10-22; 1Rs 6,23-28; 7,23-26).
- 2131. Foi fundamentando-se no mistério do Verbo encarnado que o sétimo Concílio Ecumênico, em Nicéia (em 787), justificou, contra os iconoclastas, o culto dos ícones: os de Cristo, mas também os da Mãe de Deus, dos anjos e de todos os santos. Ao se encarnar, o Filho de Deus inaugurou uma nova 'economia' de imagens.
- 2132. O culto cristão de imagens não é contrário ao primeiro mandamento que proíbe os ídolos. De fato, "a honra prestada a uma imagem se dirige ao modelo original" (São Basílio, Spir. 18,45), e "quem venera uma imagem, venera nela a pessoa que nela está pintada" (II Concílio de Nicéia, DS 601). A honra prestada às santas imagens é uma 'veneração respeitosa', e não uma adoração, que só compete a Deus: "O culto da religião não se dirige às imagens em si como realidades, mas as considera em seu aspecto próprio de imagens que nos conduzem ao Deus encarnado. Ora, o movimento que se dirige à imagem enquanto tal não termina nela, mas tende para a realidade da qual é imagem" (São Tomás de Aquino, S.Th. 2-2,81,3,ad 3).
- 2691. […] A escolha de um lugar favorável não é sem importância para a verdade da oração: para oração pessoal, pode ser um 'recanto de oração', com as Sagradas Escrituras e imagens sagradas, para aí estar 'no segredo' diante do Pai. Numa família cristã, essa espécie de pequeno oratório favorece a oração em comum; […]
- 2705. A meditação é sobretudo uma procura. O espírito procura compreender o porquê e o como da vida cristã a fim de aderir e responder ao que o Senhor pede. Para tanto é indispensável uma atenção difícil de ser disciplinada. Geralmente, utiliza-se um livro, e os cristãos dispõem de muitos: as Sagradas Escrituras, o Evangelho especialmente, as imagens sagradas, os textos litúrgicos do dia ou do tempo, os escritos dos Padres espirituais, as obras de espiritualidade, o grande livro da criação e o da história, a página do 'Hoje' de Deus.
Vemos, assim, que o ensino oficial da Igreja não escapa ao que dissemos neste artigo. Logo, não se pode acusar a Igreja Católica de praticar idolatria.
OBSERVAÇÃO E COMENTÁRIO FINAL
A questão das imagens está intimamente relacionada à comunhão dos santos. Assim que possível, também disponibilizarei um artigo sobre os santos e o assunto ficará melhor esclarecido. No entanto, como ficou bem claro neste artigo, a Igreja Católica não erra ao usar imagens, pois estas não são adoradas e também não substituem a Deus; ao invés disso, criam um ambiente propício à oração e ajudam muito na catequização e na formação de um pensamento simbólico, intimamente ligado ao meio religioso.
É bom, contudo, observar que não existe imagem milagrosa, nem objeto poderoso: na verdade, o que existe é a fé do homem, que pode crescer mais com a ajuda das imagens. Não devemos esperar um milagre daquele pedaço de gesso, barro ou madeira, nem é recomendável ficar tocando e beijando as imagens esperando que elas atendam algum pedido. Somente Deus pode concretizar um milagre e, mesmo assim, não foi por intermédio da imagem, mas pela fé do fiel e da pessoa representada pela imagem.
Assim sendo, aquele que acusa o católico de idólatra, demonstra grande falta de conhecimento religioso por não saber a diferença entre adoração e veneração. Como bem salienta o pe. Arthur Betti, em sua obra "O que o Povo Pergunta" (ed. Vozes), "a Sagrada Escritura apresenta-nos imagens que têm ouvidos e não ouvem, têm asas e não voam, têm boca e não falam, mas que nem por isso deixam de ter seu valor e significado. Deus apenas ordenou fazer imagens significativas. É claro que, sendo símbolos significativos, não podem ser, de maneira alguma, objeto de adoração, nem de desprezo, como fazem alguns 'ilustres', sem as devidas distinções". Fica bem claro, assim, que a Igreja Católica, em perfeita sintonia com a Bíblia, condena tudo o que for ídolo – seja material ou imaterial – pois, como falso deus, tem a pretensão de ocupar o lugar reservado exclusivamente ao Deus Vivo, Criador e Salvador da Humanidade.
Para encerrar, lembro que na nossa área de Documentos da Igreja está disponível a Carta Apostólica "Duodecim Saeculum", que celebra o 12º século da realização do Segundo Concílio de Nicéia, que tratou sobre a veneração das imagens.