É verdade que Martinho Lutero morreu como católico?

  • Autor: José Miguel Arráiz
  • Fonte: Site “ApologeticaCatolica.org”
  • Tradução: Apostolado Veritatis Splendor

Esta é uma pergunta que ouço às vezes: Lutero se arrependeu no final da sua vida por ter se afastado da Igreja Católica? Expressou algum desejo de regressar ao seu sei? Na verdade, não encontrei nenhuma bibliografia séria (nem católica, nem protestante) que narrasse tal coisa; pelo contrário, ao que tudo indica, infelizmente morreu – segundo as suas próprias palavras – cheio de ódio para com o Papa e a Igreja Católica. Deus tenha tido piedade da sua alma!

Reproduzo abaixo, para os leitores, um extrato da obra de Ricardo García Villoslada, intitulada “Martín Lutero”, Tomo II: “En Lucha contra Roma” (Martinho Lutero, em luta contra Roma), que narra o que ocorreu nos últimos dias da sua vida[*]:

A VÉSPERA DA MORTE DE MARTINHO LUTERO

Possuímos vários relatos das últimas horas de Martinho Lutero, redigidos imediatamente após a sua morte por testemunhas presenciais, de modo que nos resta muito fácil reconstruir a cena final. Talvez tenham exagerado tendenciosamente quanto ao seu espírito de piedade e contínua oração, como se pintassem a morte de um daqueles Santos a quem tão pouca devoção o Reformador possuía; porém, substancialmente, parecem objetivos e exatos.

  • “Desde o dia 29 de janeiro até 17 de fevereiro, inclusive – lemos no relato de J. Jonas y M. Coelius – esteve em Eisleben conferenciando (com os condes), e entretanto pregou quatro vezes; uma vez recebeu publicamente a absolvição de um sacerdote estando no altar e duas vezes comungou. Na segunda destas comunhões, ou seja, no domingo dia 14, festa de São Valentino, ordenou e consagrou dois sacerdotes segundo o uso dos Apóstolos (…) Em todos esses 21 dias, ao anoitecer, se levantava da mesa da grande sala (no andar debaixo) para subir para a sua câmara por volta das oito ou antes. Todas as noites passava um tempo junto à janela, orando a Deus com tanta seriedade e diligência, que nós, Dr. Jonas, M. Coelius, Ambrósio, seu servo, e Juan Aurifaber Weimariense, que estávamos em silêncio, ouvíamos algumas palavras e nos admirávamos. Depois voltava alegremente da janela, como que aliviado de um grande peso, e conversava conosco pela metade de um quarto de hora; a seguir, ia para a cama” (Bericht vom christlichen Abschied… D. Martini Lutheri: WA 54,488; STRIEDER, Authentische 25-26).
  • “Todo o tempo que estivemos em Eisleben, nestes negócios dos condes e senhores, normalmente foi comer e ceiar; e à mesa comeu e bebeu muito bem; e elogiou a comida e a bebida que tanto apreciava, sendo da sua terra. Também dormiu e descansou bastante todas as noites. Seu criado Ambrósio, eu, dr. Jonas, seus dois filhos menores, Martinho e Paulo, juntamente com um ou dois servos, ficávamos com ele no seu aposento e, ao ir para a cama, todas as noites, o aquecíamos com os almofadões, conforme o seu costume” (W. KAWERAU, Der Briefwechsel des J. Jonas II 177. Carta de Jonas a João Federico da Saxônia, escrita no dia 18 de fevereiro “umb vier Hor frue” (STRIEDER, 3))

Deve-se observar que o aposento era grande; segundo Grisar, media 8,00 x 2,58 mestros; segundo Paulus, 7,42 metros de comprimento e, de largura, 2,45 metros num extremo e 3,75 no outro. Nesta parte mais larga, abria-se outro quartinho ou alcova, reservado para Lutero. Na quarta-feira, 17 de fevereiro, já não interveio na pacificação dos condes, porque tanto estes senhores quanto outros amigos, vendo-o bastante cansado, pediram-lhe que não viesse mais às reuniões, que ocorriam no andar debaixo, mas que permanecesse descansando em seus aposentos. Com efeito, nesse dia permanecer na sua habitação, deitado num sofá ou cama de coro, sem as calças, ou passeando e orando. Porém, ao meio-dia, quando a ceia desceu para a grande sala, ficou sentado na cadeira de sempre.

  • “Na noite da mesma quarta-feira, antes da ceia, começou a se queixar de uma opressão no peito, não no coração, e pediu que lhe esfregássemos com panos quentes; após isso, disse: ‘A opressão reduziu um pouco’. Para a ceia, desceu até a grande sala inferior, porque dizia: ‘Estar só não causa alegria’. Na ceia, comeu bastante e esteve de bom humor, contando piadas” (KAWERAU, Der Briefwechsel 177; STRIEDER, 4.).
  • “Foi falado também de coisas sérias, da vida e da morte; e Lutero disse que na vida futura, eterna e bem-aventurada, reconheceremos aqueles que aqui foram amigos. Ao ser perguntado como isso se daria, respondeu: ‘Como Adão que, sem ter visto Eva anteriormente, a reconheceu assim que o Senhor a apresentou, uma vez que não perguntou: ‘Quem és?’, mas disse: ‘Tu és carne da minha carne'” (Bericht vom christlichen Abschied: WA 54,489; STRIEDER, 26.).

Terminada a cena, se levantou e subiu para o seu aposento (inn sein Stüblin).

‘NAS TUAS MÃOS ENTREGO O MEU ESPÍRITO”

Sigamos ouvindo o relato mais longo das testemunhas presenciais:

  • “Atrás dele subiram os seus dois filhos, Martinho e Paulo, e M. Coelius. Segundo o seu costume, foi orar na janela do seu aposento. Coelius saiu e veio Juan Aurifaber Weimariense. Então o Doutor [Lutero] disse: ‘Me vem uma dor e angústia, como dantes, em torno do peito’. Aurifaber observou: ‘Quando eu era preceptor dos pequenos condes, vi que quando lhes doía o peito ou sentiam algum outro mal, a condessa lhes dava unicórnio; se quiseres, mandarei trazer-te’. ‘Sim’, disse o Doutor (…) Quando subimos, ele se queixava de forte dor no peito. Imediatamente começamos a esfregar-lhe com panos quentes, segundo costumava a fazer em casa. Sentindo alívio, disse: ‘Estou melhor’. Veio correndo o conde Alberto com o mestre João (Aurifaber), trazendo unicórnio. Falou o conde: ‘Como estás, querido senhor Doutor?’ Respondeu o Doutor: ‘Não é necessário, ilustre senhor; já estou ficando melhor’. O mesmo condeu raspou o unicórnio e, quando o Doutor se sentiu melhor, se retirou, deixando conosco um de seus conselheiros, Conrado de Wolfframsdorff, Dr. Jonas, M. Celio, João e Ambrósio. Por desejo do Doutor, lhe foi administrado por duas vezes pó de unicórnio em uma colher com vinho. Por volta das nove, deitou-se na cama ou sofá (Rugebetlin), dizendo: ‘Se eu pudesse dormir meia horinha, creio que tudo ficaria melhor’. Dormiu hora e meia tranquilo e suavemente até as dez (…) Quando acordou por volta das dez, disse: “O quê? Ainda estais aqui? Por que não vão para a cama?’ Respondemos: ‘Não, senhor Doutor. Agora precisamos velar e cuidar de ti’. Então quis se levanta e andou um pouco pelo local (…) Ao voltar novamente para a cama, que estava bem preparada com tábuas quentes e almofadões, despediu e deu boa noite a todos, dizendo: “Doutor Jonas, mestre Coelius e demais: orai para Nosso Senhor e por seu Evangelho para que tudo ocorra bem, porque o Concílio de Trento e o Papa miserável estão duramente bravos contra Ele’. Passaram a noite ao seu lado, em seu aposento, o Doutor Jonas; os dois filhos, Martinho e Paulo; o criado Ambrósio e outros servos (…) Dormiu bem, com uma respiração natural, até que o relógio deu uma [hora]. Despertando então, chamou o seu criado Ambrósio, e mandou que esquentasse o aposento (…) Perguntando-lhe novamente o Doutor Jonas se estava se sentindo fraco, respondeu: “Ai, Senhor Deus! Quão mal me sinto! Ah, querido Doutor Jonas! Penso que eu, nascido e batizado em Eisleben, aqui ficarei’ (…) Então ele, sem o apoio ou auxílio de ningém, deu alguns passos pelo aposento até a camarilha, exclamando no umbral: ‘In manus tuas commendo spiritum meum. Redemisti me, Domine, Deus veritatis'” (Ibid., 489-490; 26-28).
  • “Como a opressão do peito não cessava, encostou-se no sofá. Temendo por sua vida, mandou avisar alguns amigos, apesar do avançado da hora. A toda pressa vieram: o secretário da cidade, Juan Albrecht, com sua mulher e dois médicos; pouco depois, o conde Alberto, com sua esposa, e o conde e a condessa de Schwarzburg. Esta última teve a precaução de trazer unguentos e outros remédios, com os quais pensava poder aliviá-lo e fortalecê-lo. Jonas e Coelius, aproximando-se da cabeceira, sugeriram: ‘Reverendo Padre: invocai o vosso amado Senhor Jesus Cristo, nosso sumo sacerdote e único mediador’. E como notaram que tinha a camisa empapada de suor [acrescentaram]: ‘Suaste muito, o que é bom. Deus te outorgará a graça de recobrar a saúde’. Ele respondeu: ‘Meu suor é o suor frio da morte’. E rezou esta prece – segundo transmitem Jonas e Coelius, sempre concordes em tudo: ‘Ó meu Pai celeste; Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo; Deus de toda consolação! Eu te agradeço por ter me revelado o teu amado Filho Jesus Cristo, em quem creio; a quem tenho pregado e confessado; a quem amei e louvei; a quem desonram, perseguem e blasfemam o miserável Papa e todos os ímpios. Eu te rogo, meu Senhor Jesus Cristo, que a minha alma te seja encomendada. Ó Pai celeste: já tenho que deixar este corpo e partir desta vida, mas esteja certo que contigo permanecerei eternamente e ninguém me arrebatará das tuas mãos'” (Ibid., 491; 28-29).
  • “Prosseguiu recitando alguns versículos do Evangelho e dos Salmos. Depois repetiu três vezes: ‘Pater, in manus tuas commendo spiritum meum. Redemisti me, Deus veritatis’. E permaneceu tranquilo, imóvel, silencioso”. O descanso eterno. Conservava ainda a mente? “O balançaram um pouco, o esfregaram, o arejaram, o chamaram… mas ele fechou os olhos sem responder. A esposa do conde Alberto e os médicos esfregaram o seu pulso com toda espécie de águas confortativas (…) Estando ali tão quieto, o Doutor Jonas e o mestre Coelius gritaram ao seu ouvido: ‘Reverendo Padre: queres morrer em conformidade com a doutrina e o Cristo que pregaste?’ Com uma voz claramente perceptível, respondeu: ‘Sim’. E virando-se para o lado direito, começou a dormir, por quase um quarto de hora, de modo que os presentes, com exceção dos médicos, esperavam uma melhora (…) Então chegou o conde João Henrique de Schwartzenburg com a sua mulher. Imediatamente a face do Doutor empalideceu por completo; o nariz e os pés se tornaram frios e com uma respiração funda, mas suave, entregou a sua alma, com tanta paciência e serenidade que não moveu um dedo nem mexeu a perna. E ninguém pôde notar – o testemunhamos perante Deus e sobre a nossa consciência – a mínima inquietitude, tortura do corpo ou temor da morte, simplemente dormiu pacífica e suavemente no Senhor, como cantou Simeão” (Ibid., 492; 29).
  • “Era quinta-feira, 18 de fevereiro de 1546, às três menos um quarto de uma manhã bastante fria. Martinho Lutero tinha falecido. Aquela mão que tinha esgrimido incansavelmente a pena como uma espada invencível, caía agora languidamente sobre o seu corpo inerte. Aqueles lábios de eloquência torrencial estavam fechados para sempre. Aqueles olhos cintilantes tinham se apagado, cobertos pelas grandes pálpebras. Aquele coração que tão acesas fogueiras de ódio havia alimentado, já não tornaria a bater. A face – conforme o desenho que pouco tempo depois Fortenagel faria – ficou bastante inchada, com sua barba por fazer, porém não ficou repulsiva. Afirma Ratzeberger que, encerrada a ceia do dia 17, Lutero tomou em sua mão um pouco de giz e escreveu na parede aquele conhecido verso: ‘Em vida, fui tua peste; morto, serei tua morte, ó Papa’ (‘Pestis eram vivus, mo riens ero mors tua, papa’). No entanto, Ratzeberger não estava presente e nenhuma das testemunhas, que narram minuciosamente tudo o que ocorreu naquelas últimas horas, fazem referência a tal fato, muito embora tanto Jonas quanto Coelius demostrem conhecer esse antigo verso luterano. Por isso, devemos pensar que Ratzeberger se equivocou no tempo: Lutero não escreveu esse verso em Eisleben pouco antes de morrer, mas em Altemburg, em sua viagem de regresso de Coburg, no início de outubro de 1530; verso que em sua grave doença de Esmalcalda (1537) deixou com seus amigos, para que o colocassem em sua sepultura como sua melhor inscrição funerária” (M. RATZEBERGER, Die handschriftliche Geschichte 138).
  • “Eu morro odiando o malvado (=o Papa), que se alçou acima de Deus” (“Ego morior in odio des Boswichts, qui extulit se supra Deum”, cf. Tischr. 3543b III 393).

Estas [últimas] palavras foram também pronunciadas em Esmalcalda, mas poderia igualmente tê-las pronunciado em Eisleben por ocasião da sua morte, porque não resta dúvida que seu peito encorajou sempre toda a força do seu ódio inveterado contra o “anticristo” de Roma.

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NOTA

[*] Na verdade, não se sabe ao certo qual foi a “causa mortis” de Lutero, pois seus biógrafos, inclusive de origem protestante, possuem opiniões bastante diversas quanto aos diversos relatos contemporâneos e fontes documentárias que chegaram até nós. As hipóteses variam bastante: apoplexia, derrame cerebral, infarto e até suicídio (N.doT.).

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