Entre a Cruz e o Código de Barras

Por Bruno Valadão

Se é verdade que a história não se repete, mas rima, como dizia Mark Twain, então o pontificado do Papa Leão XIV pode ser lido como um poderoso eco de tempos esquecidos, em que a Igreja ainda ousava falar com voz própria diante das engrenagens esmagadoras do mundo moderno. Diferente, porém, de seus predecessores mais recentes, o novo Sumo Pontífice parece ter lido com mais atenção os sinais dos tempos — não para adaptar-se a eles, mas para batizá-los.

Ora, a Doutrina Social da Igreja (DSI) sempre foi, desde Rerum Novarum, uma tentativa de pôr limites à besta apocalíptica que devora o homem sob as vestes do progresso. E se ela hoje jaz empalhada nas prateleiras das faculdades de teologia — onde é muitas vezes citada, raramente compreendida e quase nunca vivida — talvez seja justamente o momento de deixá-la ressuscitar sob o cajado de um novo Leão.

Leão XIV, imigrante e filho do exílio, formado no Peru andino e não em Roma ou Paris, traz na pele o pó da cordilheira e na alma a mística dos pobres de espírito. Sua formação tomista — sólida, silenciosa, estranhamente anacrônica — escapa ao tecnocratismo dominante da teologia pós-conciliar. E aqui está a primeira chave para entender sua sensibilidade social: ele enxerga o homem concreto antes da estatística, a comunidade antes da corporação, a dignidade antes da produtividade.

Como advertia o grande Jacques Maritain — esse francês indomável que sonhava com uma cristandade sem cristianismo oficial —, a ordem social não é apenas a distribuição de bens, mas a harmonia das finalidades humanas. E é justamente aí que Leão XIV parece mirar: não na crítica econômica por si só, mas na restauração de uma antropologia cristã.

A Doutrina Social da Igreja é, em sua medula, uma tradução política do realismo tomista. Tomás de Aquino nunca foi liberal, nem progressista, nem reacionário. Foi, antes de tudo, alguém que enxergava o homem como um ser em busca do bem, situado numa ordem que lhe é anterior e superior. Assim, o bem comum não é a soma dos interesses individuais, mas a finalidade da vida em sociedade.

Como nos lembra o Pe. Henri Grenier, um dos mais notáveis tomistas do século XX, “o bem comum é mais divino que o bem individual”, pois ele reflete mais diretamente a ordem da Providência. Ora, se isso é verdade, então qualquer projeto político que coloque a liberdade como valor absoluto em detrimento da verdade está, de fato, condenado à dissolução — seja ele globalista ou tribal, capitalista ou socialista.

É aqui que a crítica de Leão XIV ao mundo globalizado ganha densidade. Ele não é, como alguns supõem, um papista anticapitalista à moda latino-americana. Sua crítica é mais profunda: trata-se da denúncia de uma nova idolatria — a idolatria da eficiência, da fluidez e da ruptura de laços.

A economia global tornou-se uma espécie de liturgia invertida, onde o templo é o mercado e o altar é a planilha. A família, a paróquia, o bairro — tudo aquilo que é local e resistente ao cálculo — é tratado como anomalia. Como bem dizia Alasdair MacIntyre, o moderno homem ocidental perdeu os referenciais morais justamente porque perdeu a linguagem da virtude, substituindo-a pela linguagem da utilidade.

Leão XIV, neste sentido, parece ecoar as advertências de um Romano Guardini ou de um Charles De Koninck: não se trata de combater a técnica, mas de recolocá-la em seu devido lugar. A técnica deve servir ao homem, e o homem deve servir a Deus — não ao contrário.

Não se enganem: este Papa não se ilude com os fetiches da política internacional. Onde muitos veem apenas fluxos de capitais e tratados multilaterais, Leão XIV enxerga almas. Ele sabe que a financeirização da vida não é apenas uma questão de ganância, mas de visão de mundo: o homo oeconomicus substituindo o homo viator.

É nesse ponto que a Doutrina Social da Igreja se choca frontalmente com o dogma do globalismo. Para a Igreja, o ser humano não é uma unidade de consumo, nem um vetor de crescimento do PIB. É uma criatura de Deus, destinada à bem-aventurança eterna. Substituir essa teleologia pela lógica do mercado é, para usar uma expressão cara a Chesterton, trocar uma catedral por um galpão.

Resgatar a DSI, porém, não é um exercício de nostalgia. Não se trata de querer reviver uma Idade Média idealizada, mas de aplicar princípios perenes a contextos novos. Leão XIV parece compreender isso ao buscar um novo vocabulário para antigas verdades. Ele sabe que a mensagem de Quadragesimo Anno ou Mater et Magistra continua válida, mas precisa ser traduzida para um mundo que não distingue mais o bem do útil.

O desafio é duplo: por um lado, enfrentar o reducionismo economicista que enxerga a pobreza apenas como problema técnico; por outro, resistir à tentação de tornar a DSI refém de bandeiras ideológicas. Aqui a lição de Charles Journet é fundamental: a Igreja deve ser politicamente virgem para ser moralmente fecunda.

Leão XIV, ao contrário de tantos eclesiásticos fascinados pelos fóruns de Davos, parece buscar inspiração nos santos sociais: São José Maria Escrivá, com sua visão da santificação do trabalho; Dorothy Day, com sua radicalidade evangélica; e, mais recentemente, figuras como Chiara Lubich, cuja economia de comunhão ainda desafia os paradigmas do capitalismo selvagem.

Há, porém, uma pedra no sapato: a própria inércia da máquina eclesial. Muitos bispos e conferências episcopais preferem o conforto das ONGs à incômoda missão de anunciar um Evangelho que contesta as estruturas de pecado. A DSI, para eles, é um acessório de marketing pastoral — jamais um imperativo profético.

O povo fiel, por sua vez, sente no corpo o peso de uma economia desumanizante, mas carece de formação para compreender que a resposta católica já existe. Falta catequese, falta ousadia, falta, sobretudo, exemplo.

A esse cenário soma-se a fragmentação cultural. Em um mundo onde cada indivíduo vive em sua bolha digital, como propor uma visão de bem comum que vá além do individualismo narcísico? Como articular uma política do enraizamento, da comunidade e da solidariedade, quando até a própria palavra “solidariedade” foi sequestrada por tecnocratas sem alma?

Leão XIV sabe que não há solução mágica. Não há atalhos. A resposta está na paciência das pequenas fidelidades. Na paróquia que resiste ao entretenimento fácil. No sindicato que não vende sua alma. Na escola que forma, não deforma. Em suma: na construção, tijolo por tijolo, de uma cristandade subterrânea.

É precisamente esse trabalho de base que a DSI exige. Um trabalho que não rende likes, não conquista manchetes, mas que, como a semente do Evangelho, cresce em silêncio. Aqui, talvez, ressoe com mais força a intuição de Santo Tomás: o bem é difusivo de si mesmo (bonum est diffusivum sui). Uma sociedade que reencontre o bem será, inevitavelmente, mais justa, mais humana, mais verdadeira.

Mas para isso será preciso enfrentar o martírio da impopularidade. Leão XIV terá contra si não apenas os poderosos do mundo, mas os covardes de dentro. E, no entanto, é exatamente nesse campo de batalha que se decide o futuro da Igreja.

Se a Igreja ceder ao canto de sereia do globalismo, será irrelevante. Se, ao contrário, permanecer fiel à sua doutrina social, mesmo que em minoria, será fermento, será luz, será, como sempre, sinal de contradição.

Leão XIV não veio para agradar. Veio para recordar ao mundo que o homem não vive de pão — nem de PIB, nem de ESG, nem de indicadores de competitividade — mas de toda Palavra que sai da boca de Deus.

E talvez seja esse o verdadeiro começo de uma nova cristandade: não a nostalgia do passado, mas a coragem do testemunho. Uma Igreja pobre, livre e fiel. Uma Igreja capaz de ensinar aos homens que, entre a cruz e o código de barras, há uma escolha a ser feita.

E essa escolha é, sempre foi, radical.

Fonte: https://substack.com/inbox/post/163678370

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