– Como se explica o caso de Galileu? (M.L.M. – Salvador-BA).
Para se entender o caso de Galileu, torna-se indispensável reconstituir em primeiro lugar:
1. O ambiente religioso e científico dos séculos XVI/XVII
A Idade Média foi animada pelo ideal da «Cidade de Deus», em que o homem procurava unir em harmoniosa síntese os valores naturais e sobrenaturais, em particular a Ciência e a Religião. O Humanismo ou Renascimento do séc. XVI foi solapando este ideal, afirmando os valores do homem em termos ora mais, ora menos autônomos. No início do séc. XVII, os sintomas de mentalidade leiga, mesmo ateia, já eram tantos que começaram a inquietar os ânimos tradicionais.
Foi-se alastrando, sim, um ateísmo revestido da capa de ciência. Esta, sem dúvida, progredira muito no séc. XVI: já se apoiava em observações empíricas, levadas a efeito segundo métodos novos, afastando-se, assim, das conclusões formuladas de antemão, sem muito contato com a realidade concreta, quais eram as conclusões da Filosofia e da Física medievais. Enfim, a Ciência, dotada de instrumentos de trabalho cada vez mais esmerados, tendia a se emancipar da Filosofia e de qualquer argumento de autoridade (inclusive da Fé). A «vertigem da inteligência» ia-se apoderando de alguns pensadores que, de maneira mais ou menos confessada, chegavam a lançar um brado de «morte a Deus»; tal é, por exemplo, a exclamação de Campanela (1568-1639), frade que chegou a abandonar momentaneamente a sua profissão religiosa (mas que acabou tranquilamente os seus dias no convento de Saint-Honoré em Paris):
– “Alguns cristãos descobriram a imprensa; Colombo descobriu um novo mundo; Galileu, novas estrelas (…) Acrescentai o uso dos canhões, da bússola, dos moinhos, das armas de fogo e todas essas invenções maravilhosas. Os pensadores de ontem eram crianças junto a nós! Nós somos livres!”.
A humanidade que assim pensava ter atingido a idade de adulto, julgava que para o futuro poderia dispensar a «tutela de Deus».
Ao lado dos que, nos termos acima, se entusiasmavam por uma ciência quase absoluta, havia os céticos, representados principalmente por Michel de Montaigne (1533-1592), que não menos perigosamente corroíam as tradicionais concepções cristãs. Montaigne peregrinava aos grandes santuários da Europa, mas – como dizia um seu contemporâneo, o Pe. Garasse (sj) – «sufocava suavemente, como que com um cordel de seda, o senso religioso», mediante as suas proposições ambíguas.
Diante dessas novas correntes do pensamento, que atitude tomavam as autoridades eclesiásticas?
Nos casos de flagrante impiedade e ateísmo, reagiam fortemente, desconfiando da nova ciência, movidas pelo desejo de preservar a verdade e a síntese de todos os valores da cultura (daí a sua reação contra Campanella, Tanini, Teófilo de Viau). Quando, porém, a rebeldia era habilmente dissimulada por seus autores, parece que os juízes eclesiásticos não avaliavam plenamente a gravidade do perigo; Montaigne, por exemplo, submeteu, com todos os sinais de respeito, suas obras aos censores eclesiásticos; estes, em resposta delicada, lhe pediram que em consciência tratasse de retocar o que julgasse dever retocar!
Estas reações são sintomáticas, pois revelam bem um período de transição e incertezas em que os pensadores (sejam tradicionais, sejam inovadores) ainda não veem plenamente o significado de valores novos que vão surgindo no cenário da civilização. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte dos inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar à justa assimilação dos elementos em causa ou à incorporação dos elementos novos na síntese antiga.
Foi, por conseguinte, num ambiente de certa reação contra a Fé – reação encabeçada por uma ciência aparente – que viveu Galileo Galilei (1564-1642). Examinemos agora:
2. O processo de Galileu
O sistema geocêntrico de Ptolomeu (+150 d.C.) estivera em vigor durante toda a Idade Média, quando, em 1543, o cônego Nicolau Copérnico publicou o livro «De revolutionibus orbium caelestium», em que sugeria outra concepção: a terra e os demais planetas giram em torno do sol.
A obra foi dedicada ao Papa Paulo III, que a aceitou sem contradição. Os doze Pontífices Romanos subsequentes não se mostraram em absoluto infensos a Copérnico; verdade é que, por falta de provas seguras, ninguém atribuía grande verossimilhança à nova teoria. Quando, porém, Galileu entrou no cenário da história, esta mudou notavelmente de face.
Galileu, depois de ter aderido ao sistema ptolemaico, a partir de 1610 professou as ideias de Copérnico, baseadas sobre observações de astronomia recém realizadas. Com isto, mereceu numerosos encômios, principalmente por parte de sábios jesuítas (Clavius, Griemberger e outros), que o aplaudiram como «um dos mais célebres e felizes astrônomos do seu tempo». Em março de 1611, tendo ido a Roma (era natural de Pisa), lá foi recebido pelo Papa Paulo V em audiência particular; prelados e príncipes pediram-lhe que lhes explicasse as maravilhas que havia descoberto. O Cardeal Del Monte, em carta ao Grão-Duque de Florença atestava:
“Galileu convenceu cabalmente da veracidade de suas descobertas todos os sábios de Roma. E, se estivéssemos ainda nos tempos da antiga República Romana, não há dúvida de que, em homenagem às suas obras, lhe mandariam erguer uma estátua no Capitólio” (Favaro, “Le opere di Galilei” 9, p.119).
Até essa época Galileu se mantivera exclusivamente no domínio da astronomia. Era inevitável, porém, que entrasse no da Teologia. Com efeito, havia quem desconfiasse das teses de Galileu e o quisesse impugnar em nome de textos bíblicos, como Salmo 103,5; Josué 10,12-14; Eclesiastes 1,4-6. Foi o que fez Ludovico delle Colombe.
Galileu defendeu-se em carta a seu discípulo Benedetto Castelli (osb), fazendo considerações escriturísticas que foram posteriormente ratificadas pelos exegetas e até hoje conservam seu pleno valor na Igreja:
A Sagrada Escritura não pode nem mentir nem se enganar. A veracidade das suas palavras é absoluta e inatacável. Aqueles, porém, que a explicam e interpretam, podem-se enganar de diversas maneiras; cometer-se-iam funestos e numerosos erros se se quisesse sempre seguir o sentido literal das palavras; chegaríamos a contradições grosseiras, erros, doutrinas ímpias, porque seríamos forçados a dizer que Deus tem pés, mãos, olhos, etc. Em questões de ciências naturais, a Sagrada Escritura deveria ocupar o último lugar. A Sagrada Escritura e a natureza provêm ambas da Palavra de Deus; aquela foi inspirada pelo Espírito Santo; esta, executa fielmente as leis estabelecidas por Deus. Mas, ao passo que a Bíblia, acomodando-se à compreensão do comum dos homens, fala em muitos casos, e com razão, conforme as aparências, e usa de termos que não são destinados a exprimir a verdade absoluta, a natureza se conforma rigorosa e invariavelmente às leis que lhe foram dadas; não se pode, pois, em nome da Sagrada Escritura, pôr em dúvida um resultado manifesto adquirido por maduras observações ou por provas suficientes (…) O Espírito Santo não quis ensinar-nos se o céu está em movimento ou se é imóvel; se tem forma de globo ou forma de disco; se ele ou a terra se move ou permanece em repouso (…) Já que o Espírito Santo não intencionou instruir-nos a respeito dessas coisas, porque isto não importava aos seus desígnios – que são a salvação das nossas almas -, como se pode, agora, pretender que é necessário sustentar nesses assuntos tal ou tal opinião? que uma é de fé e a outra é errônea? Uma opinião que não diz respeito à salvação da alma, poderá ser herética? (Favaro, Opere 5, pp.279-288).
Por mais sábias que fossem as ponderações de Galileu, a muitos católicos pareciam naquela época inovações inspiradas pelo principio do «livre exame da Bíblia» propugnado por Lutero. Foi o que deu novo aspecto ao curso da História, motivando a intervenção do Santo Oficio: uma comissão de teólogos, tendo examinado as teses do heliocentrismo de Copérnico, acabou por dar parecer contrário às mesmas, aos 24 de fevereiro de 1616; em consequência, o Santo Oficio comunicou a Galileu a ordem de “abandonar por inteiro a opinião que pretende que o sol é o centro do mundo e imóvel, e que a terra se move”, assim como lhe proibia “sustentasse essa opinião como quer que fosse, a ensinasse ou defendesse por palavras ou por escritos, sob pena de ser processado pelo Santo Ofício” (Favaro, “Galilei e LInquisizione” 62).
O astrônomo aceitou docilmente a intimação.
Em consequência, aos 5 de março de 1616, a Congregação do Índice condenou as obras que defendiam a doutrina de Copérnico, até que fossem corrigidas, sem mencionar em absoluto o nome de Galileu. O processo do Santo Ofício fora secreto e o sábio astrônomo voltou para Florença a fim de continuar seus estudos, plenamente prestigiado pela Santa Sé.
Terminou assim a primeira fase da história de Galileu.
Compreende-se, porém, que, continuando a estudar astronomia, o famoso autor não podia deixar de se envolver no novo no sistema de Copérnico. Após alguns anos, provocado a se pronunciar sobre o assunto, passou a defender em termos cautelosos o heliocentrismo; em 1623, chegava a propugná-lo no escrito «Il Saggiatore»; este opúsculo, ofertado ao novo Papa, Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu (ambos eram poetas), foi aceito e lido com prazer pelo Pontífice. O Cardeal Hohenzollern, por essa ocasião pediu mesmo a Sua Santidade que se pronunciasse em favor do heliocentrismo; Urbano VIII respondeu que esta doutrina jamais fora condenada como herética e que pessoalmente ele nunca a mandaria condenar, embora a considerasse bastante ousada (esta resposta é de importância, pois sugere que o decreto da Congregação do Índice, emanado em 1616, era tido como decreto meramente disciplinar, não como decisão doutrinária).
Muito estimulado pelos sucessos, Galileu pôs-se a escrever nova obra em favor do copernicismo: o célebre «Diálogo…». Tendo-a submetido à censura eclesiástica, esta lhe concedeu o «Imprimatur», com a condição de que propusesse o heliocentrismo não como tese certa (os argumentos apresentados ainda não eram tais que fornecessem certeza), mas como hipótese. Galileu, porém, não o fez; em 1632, publicou o livro como estava, incluindo, além do mais, a aprovação dos censores de Roma e Florença!
Este gesto causou grande agitação em Roma; o sábio deixava naturalmente de gozar da confiança da autoridade eclesiástica.
Chamado perante o Santo Ofício, Galileu respondeu insistentemente que em consciência jamais admitira como certo e definitivo o sistema de Copérnico. Já que nada mais se podia apurar, o processo foi encerrado em junho de 1633: o astrônomo teve então que abjurar publicamente o heliocentrismo e foi condenado a prisão branda, onde, com alguns amigos, continuou a se dedicar aos estudos.
Morreu, finalmente, em Florença, aos 8 de janeiro de 1642, tendo recebido em seu leito de morte a bênção do Sumo Pontífice. Galileu, tido como réu, foi tratado de maneira que, à luz da praxe vigente na época, era notavelmente benigna (foi detido como prisioneiro em palácios de nobres e embaixadores).
3. Um juízo sobre a condenação de Galileu
A questão «Galileu» tem provocado calorosos debates cujo interesse se compreende, feito o seguinte raciocínio: a Igreja ensina que goza da assistência de Cristo, a qual lhe garante infalibilidade em matéria de crenças religiosas; ora, no processo de Galileu, ela se pronunciou erroneamente em assuntos de crenças religiosas. Por conseguinte, vão é o dogma da infalibilidade da Igreja.
– Para se rebater este silogismo, têm-se feito considerações e distinções várias.
Há quem diga que os decretos da autoridade eclesiástica não tinham caráter doutrinário, mas meramente disciplinar; não resta dúvida, porém, de que a doutrina do heliocentrismo foi de perto ou de longe atingida pela condenação pronunciada sobre as obras de Copérnico e sobre Galileu.
Na verdade, a solução do problema religioso é muito mais simples do que parece.
Concedamos que Galileu foi condenado porque o heliocentrismo era tido como heresia (parecia, sim, contradizer a certas afirmações da Sagrada Escritura). Ora, tal condenação ainda não redunda em detrimento do Magistério infalível da Igreja. Com efeito, este só se exerce quando um Concilio Ecumênico (universal) ou quando o Sumo Pontífice, ex cathedra, isto é, exercendo o seu cargo de pastor e mestre de toda a Cristandade, define que determinada doutrina dogmática ou moral deve ser aceita pela Igreja universal.
Ora, nem o Papa Paulo V nem Urbano VIII proferiram, no caso de Galileu, uma definição ex cathedra. Os decretos de 1616 e 1633 foram promulgados não pelos Sumos Pontífices, mas por Congregações Romanas, que são órgãos do governo eclesiástico. É verdade que estas Congregações trabalharam de acordo com os Papas; Paulo V e Urbano VIII intervieram nas fases do processo de Galileu, deram instruções a respeito do mesmo, mas as decisões finais foram assinadas pelos membros das Congregações do Índice e do Santo Ofício, não pelo Papa reinante, de sorte que as Congregações eram juridicamente responsáveis pelos decretos referentes a Galileu.
Outro é o trâmite de uma infalível definição pontifícia: o Papa fala então diretamente; pode pedir o parecer das Congregações Romanas, mas apenas a título de consulta; o autor da definição fica sendo o Sumo Pontífice.
Muito interessante é que grandes pensadores e críticos católicos contemporâneos de Galileu entenderam bem que a condenação do astrônomo não punha em causa o Magistério infalível da Igreja (é o que atesta o estudo publicado por Léon Petit: “LAffaire Galilée vue par Descartes et Pascal”, em «XVIIe. siècle», junho de 1955, pp.231-239): em 1634, por exemplo, Descartes comunicava ao Pe. Mersenne que nutria dúvidas sobre a condenação do Galileu porque provinha apenas da «Congregação de Cardeais nomeados para a censura dos livros». Em abril de 1634, Descartes declarava ao mesmo correspondente que ele (Descartes) tinha o direito de sustentar o seguinte: «o que os Inquisidores de Roma haviam decidido não era artigo de fé, pois para tanto seria necessária a intervenção de um Concílio».
Conclui-se então que os teólogos e certos órgãos particulares do governo eclesiástico os quais não coincidem com os órgãos do Magistério infalível da Igreja se manifestaram erroneamente no caso de Galileu. Isto não surpreende o católico. Fora os casos acima mencionados, o Senhor não extingue a deficiência humana nos seus ministros, apenas providencia para que esta não redunde em detrimento da salvação das almas.
Mas ainda se insistirá: como entender tão drástica reação dos homens da Igreja contra Galileu, que objetivamente tinha razão?
– Como dissemos, o modo de ver da Idade Média ainda estava muito arraigado em certos círculos eclesiásticos posteriores à Renascença.
A Bíblia, dentro desta perspectiva, era o manual utilizado para todos os estudos («psalmos discere», aprender os salmos, significava então «aprender a ler»). Era, por conseguinte, à Bíblia que os medievais iam pedir um juízo sobre as suas noções de astronomia.
Ora, eis que, no início do séc. XVII, depois de alguns inovadores, surgiu Galileu: queria ter razão propugnando como certa uma tese de astronomia que parecia contradizer à Bíblia. E – note-se bem – Galileu só podia apresentar argumentos débeis, ainda sujeitos a discussão científica; não obstante, não cedia às intimações da autoridade que lhe pedia proferisse suas ideias como simples hipótese. Além disto, intervinha no terreno da exegese, formulando princípios para a interpretação da Escritura. Ora, esse proceder não podia deixar de desagradar ao zelo dos homens da Igreja.
Auscultando depoimentos proferidos no séc. XVII mesmo, crê-se que, se Galileu houvesse ficado no plano de uma hipótese e não se tivesse explicitamente envolvido em questões de exegese, não teria provocado a intervenção do Santo Ofício.
As descobertas da Ciência aos poucos deram a ver aos teólogos que a Bíblia não quer ensinar conhecimentos profanos; passaram então a distinguir e aceitar o que no séc. XVII parecia quase monstruoso, isto é, dois planos que não se contradizem mutuamente, mas não interferem um no outro: o plano das Ciências Naturais e o da Bíblia ou da Teologia.
A fim de ilustrar quão árduo devia ser a um cristão imbuído da mentalidade dos séculos XVI/XVII admitir o heliocentrismo, seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do novo sistema:
– Lutero julgava que as ideias de Copérnico eram ideias de louco, que tornavam confusa a astronomia.
– Melancton, companheiro de Lutero, declarava que tal sistema era fantasmagoria e significava a rebordosa das ciências.
– Kepler (1571-1630), astrônomo protestante contemporâneo de Galileu, teve que deixar a sua terra [protestante], o Wurttemberg, por causa de suas ideias copernicanas.
– Em 1659, o Superintendente Geral de Wittemberg, Calovius, proclamava altamente que a razão se deve calar quando a Escritura falou: verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o último, rejeitavam a teoria de que a terra se move.
– Em 1662 a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de Estrasburgo, afirmou estar o sistema de Copérnico em contradição com a Sagrada Escritura.
– Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante do Upsala (Suécia) condenou Nils Celsius por ter defendido o sistema de Copérnico.
Ainda no séc. XVIII, a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em 1744 o pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que a teoria do heliocentrismo era abominável invenção do diabo.
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 4 – abr/1958