O processo de dissolução do matrimônio rato e não consumado

Devemos considerar, antes de nos aprofundarmos neste tema, que o processo para a dissolução do matrimônio rato e não consumado é administrativo e não judicial. É certo que em determinados casos é o próprio Tribunal que realiza a instrução, mas isto não altera sua consideração administrativa, já que:

1. O juiz não atual como tal, mas como delegado do bispo;

2. O processo termina com uma dispensa e não com uma sentença;

3. As partes não produzem verdadeira ação, de forma que são denominados oradores ou peticionários e não autores (como ocorre nos processos judiciais).

4. Não há a intervenção de advogado; no máximo é permitida a presença de um perito em Direito como assessor das partes, autorizando-se-lhe o exame das atas e a apresentação das alegações.

 

A legitimidade ativa

O cânon 1697 estabelece o seguinte:

Cânon 1697 – Apenas os cônjuges, ou um deles ainda que o outro se lhe oponha, têm o direito de pedir a graça da dispensa do matrimônio rato e não consumado.

Igualmente, o cânon 1142 aponta:

Cânon 1142 – O matrimônio não consumado entre batizados, ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido por justa causa pelo Romano Pontífice, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, ainda que a outra se lhe oponha.

Apenas os cônjuges têm legitimidade ativa para iniciar o processo – seja de forma conjunta, ou também individualmente – pois sendo o consentimento matrimonial um ato pessoal e intransferível, se configura lógico que apenas a um ou a ambos os cônjuges corresponde a tarefa de solicitar a dispensa. Nenhuma outra pessoa poderá pedir a dispensa de matrimônio rato e não consumado, ainda que tal pedido seja reconhecido por algum dos esposos.

Há um segmento da doutrina que entende a possibilidade do interesse público aconselhar ex officio o pedido de dispensa, ou então, por iniciativa do Tribunal Eclesiástico, que durante o curso de um procedimento de nulidade vê surgir a possibilidade da não consumação do matrimônio. Igualmente, há autores que sustentam que o Romano Pontífice pode conceder a dispensa sem a necessidade de que esta seja pedida previamente pelos cônjuges, em razão da plenitude de seu poder. No entanto, não faltam os que negam a possibilidade da dissolução do matrimônio sacramental não consumado sem pedido prévio de algum dos esposos.

 

O período introdutório

A competência para outorgar a dispensa pertence – como já adiantamos – ao Romano Pontífice. Apenas à Sé Apostólica corresponde o período decisório, de forma que a fase introdutória deve realizar-se nas dioceses ou circunscrições equiparadas e a instrução nas Igrejas particulares, seja nos Tribunais ou na Cúria administrativa.

O processo pode ser iniciado em dupla via:

1ª Via: Judicial – Quando em um processo de nulidade surge dúvida provável da inconsumação do matrimônio, convertendo-se – em conformidade com as partes – o processo judicial em processo administrativo; ou se as partes (ou uma delas) iniciam o processo de nulidade e, ao mesmo tempo, apresentam ao bispo diocesano o pedido de dispensa de matrimônio rato e não consumado.

2ª Via: Administrativa – Se os cônjuges apresentam ao bispo diocesano, ou a um prelado equiparado, o pedido no qual pedem a graça da dispensa super rato. Tal pedido é redigido de forma muito semelhante à de uma demanda de nulidade matrimonial.

De acordo com o cânon 1699, §1, a instrução é da competência dos bispos diocesanos: “§1 – Para receber o escrito pelo qual se pede a dispensa é competente o bispo diocesano do domicílio ou quase-domicílio do peticionário, o qual, se constar que o pedido tem fundamento, deve ordenar a instrução do processo”. Assim, conforme este preceito, nem todo bispo diocesano tem competência para a tramitação da primeira fase do processo, mas é competente apenas o bispo onde o peticionário tenha seu domicílio ou quase-domicílio.

 

O período instrutório

Terminadas as atuações prévias, o bispo encomendará a instrução ao Tribunal de sua diocese. Neste caso, devemos entender o termo “Tribunal” em um sentido amplo, isto é, que deverá ser composto pelo Vigário Judicial (e Vigário Judicial Adjunto) como Instrutor, pelo Defensor do Vínculo e pelo Notário-atuante. A designação do Instrutor poderá se dar, na hipótese de existência de demanda de nulidade, por uma dupla via:

1º) Conversão do processo judicial para administrativo: quando no transcurso de um processo de nulidade surgir “uma dúvida muito provável de que não se produziu a consumação do matrimônio, pode o Tribunal, suspendendo a causa de nulidade com o consentimento das partes, realizar a instrução do processo para a dispensa do matrimônio rato e logo transmitir as atas para a Sé Apostólica junto com o pedido de dispensa feito por ambos os cônjuges ou por um deles, e com o voto do Tribunal e do bispo” (cânon 1681).

2º) Pedido conjunto da causa de nulidade com dispensa super rato: a causa de nulidade e a dissolução do matrimônio por inconsumação podem ser apresentadas em conjunto ou separadas. Nesta hipótese, não se exige o consentimento de ambos os cônjuges. No caso das demandas serem apresentadas em diversos Tribunais, ficará encarregado da tramitação da dispensa o Tribunal que conhecer a causa de nulidade. No entanto, o que se acumula é a instrução num mesmo Tribunal e não as demandas em um mesmo libelo.

No período instrutório terá lugar a prova da inconsumação, que poderá se dar por uma tripla via:

1. Impossibilidade de constatação do ato conjugal;

2. Argumento físico;

3. Argumento moral.

Esta última será formada pela declaração das partes e de testemunhas (quanto à credibilidade e conhecimento), pela prova documental e pelas presunções e indícios. Se não houve tempo, nem lugar, nem forma de consumação do matrimônio, decai a presunção do cânon 1061, §2.

 

A conclusão do processo

Segundo o cânon 1599, “uma vez concluído tudo o que se refere à apresentação das provas, chega-se à conclusão da causa”, que ocorrerá quando as partes não tiverem mais nada o que dizer ou já tiver transcorrido o prazo estabelecido pelo instrutor.

Quando o juiz tiver consultado o Defensor do Vínculo e os cônjuges (ou um deles) e chegar à conclusão de que todas as provas foram recolhidas no sumário, ditará o decreto.

Nos processos de dissolução de matrimônio não consumado, em geral, não ocorre a publicação, a discussão e a sentença, embora em determinados casos se preveja a possibilidade de publicação parcial das atas.

Os autos que posteriormente serão enviados para a Sé Apostólica não são nada mais que o conjunto de diligências praticadas pelo instrutor duranto o processo: declaração das partes, provas periciais, documentais, testemunhais e, sobretudo, o relatório ou relatio. Neste relatório, o instrutor não se pronuncia sobre a causa, mas apresenta uma síntese da instrução que servirá para o bispo elaborar seu voto fundamentado sobre o fato da inconsumação: “concluída a instrução, o instrutor transmitirá ao bispo todas as atas com o relatório oportuno, e este expressará seu voto acerca da verdade tanto sobre o fato da inconsumação como sobre a justa causa para a dispensa e a oportudade de que se outorgue esta graça” (cânon 1704, §1).

O voto pro rei veritate do bispo deve ater-se à verdade dos fatos, expressando seu parecer pessoal, ponderando os depoimentos e os fatos contidos nos autos. Neste voto – que, segundo o cânon 1704, §2, corresponde ao bispo que “efetuou a comissão” – se pronunciará tanto sobre a inconsumação do matrimônio, como sobre a justa causa e a oportunidade da dispensa. Será o bispo, independentemente do Tribunal que praticou a instrução, que enviará para a Sé Apostólica as atas, seu voto e as observações do Defensor do Vínculo. As atas serão enviadas em três vias, numeradas, ordenadas e encadernadas; deverão ser íntegras, fiéis e autênticas, sendo todas as cópias autenticadas pelo notário.

 

O período decisório

Cabe à Sé Apostólica – concretamente à Sagrada Congregação para o Culto Divino e Sacramentos – a decisão sobre a concessão ou não da graça. Chegando os autos do processo à Sagrada Congregação, esta acusa o recebimento dos mesmos ao bispo diocesano. “Se, a juízo da Sé Apostólica, se necessitar de um suplemento da instrução, se fará saber ao bispo, indicando-lhe os aspectos sobre os quais deve versar” (cânon 1705, §1).

O procedimento que se segue dependerá do grau de dificuldade da causa. Na hipótese de ser evidente a clareza da existência ou inexistência da inconsumação, a decisão é tomada na Comissão, com prévio ditame ou relatório de um consultor. Considerando-se que houve inconsumação (após ser discutida a causa e tomada a decisão por maioria dos assistentes), é recomendada ao Romano Pontífice a concessão da dispensa. Do contrário, na hipótese de se constituir em caso de difícil resolução, será estudado pelo Congresso, presidido pelo Cardeal-Prefeito.

Se a decisão for negativa, o processo é dado por findo, acordando-se em não aconselhar ao Sumo Pontífice a concessão da dispensa. Posteriormente, comunica-se a denegação da graça ao bispo correspondente, sem que sejam argumentados os motivos que levaram a tal decisão. Também é solicitado àquele que comunique às partes sobre a não concessão da dispensa por falta de motivo ou justa causa.

Se, de outro modo, a decisão é afirmativa, o Cardeal-Prefeito apresenta o Folium pro Audientia Pontificia ao Romano Pontífice e comunica (vivae vocis oraculo) sua conformidade com a recomendação da Sagrada Congregação. A dispensa tem validade a partir do momento em que é concedida pelo Papa. É então enviado o rescrito ao bispo competente. Na hipótese de resposta afirmativa, cabem duas possiblidades [de dispensa]:

a) Absoluta: neste caso, não haverá restrição alguma para a concessão da dispensa. Uma vez recebida pelo bispo, deverá este comunicá-la às partes, ao pároco da paróquia onde foram batizados e da paróquia onde contraíram matrimônio.

b) Com cláusula proibitória: aqui se proíbe a um ou a ambos os cônjuges contrair(em) novas núpcias até que não desapareça o motivo que levou à inconsumação do matrimônio, de forma que seja assegurada a licitude do vínculo posterior em razão do cânon 1085, §2. Ou seja: a celebração de um matrimônio posterior, quando existe cláusula proibitória, é válida visto que a dissolução do primeiro foi absoluta, a não ser que a Sé Apostólica estabeleça uma cláusula dirimente. Dentro deste tipo de cláusula, existem duas hipóteses: (1) Ad mentem e (2) Vetitum. A primeira delas é estabelecida se a falta de consumação do matrimônio se deu em razão de alguma causa de menor importância, sendo confiada ao bispo sua remoção. Na hipótese da cláusula vetitum, a inconsumação do matrimônio se deu por algum defeito físico ou psíquico de maior gravidade, de forma que sua remoção está reservada à Santa Sé.

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