“Gostaria de tirar uma dúvida: ouvi falar sobre o 7º céu… O que seria?” (R.)
Observo que os povos antigos, de fato, dividiam o céu em diversos níveis ou graus, que variavam, normalmente de 3 a 10. Inclusive, Santo Ireneu nos dá conta que determinada escola gnóstica chegava ao cúmulo de proclamar a existência de 365 céus!!! (cf. Contra as Heresias 1,24,3). Mas sabe-se que outros homens, ainda mais audazes, ultrapassaram a marca dos 900!!!
São Paulo – que realmente escrevia inspirado pelo Espírito Santo – afirmou ter sido arrebatado ao 3º céu em 2Coríntios 12,2, restando assim biblicamente comprovado que existe mais do que 1 (um) ou 2 (dois) céus. São Tomás de Aquino, por sua vez, abordando a questão, tentou também demonstrar a existência de mais do que 1 céu em sua Suma Teológica Ia,q.68,a.4 e II-IIae,q.175,aa.1-6, baseando-se para isto nas Escrituras, em São João Damasceno, Rábano e Santo Agostinho. Em especial, o escritor Dante Aligheri parece crer na existência de diversos céus, propondo um esquema celeste composto por 10 céus na sua obra “A Divina Comédia”…
Não obstante o silêncio do Antigo Testamento (que só pode ser empregado implícita e precariamente), a tradição judaica especulava a existência de 3, 5, 7 ou 10 céus. É interessante notar, aliás, que em hebraico o termo “céu” é sempre empregado no plural (=céus, shamayim) no AT, enquanto que a Septuaginta (tradução grega do AT hebraico) e o Novo Testamento usam o termo às vezes no singular (=céu, oupxos) e outras vezes no plural (=céus, oupavoi)…
Pois bem. Um dos principais esquemas hebraicos (e, por sinal, bem desligado da influência pagã dos povos vizinhos) propunha a divisão do céu em 3, a saber:
1: o céu “auronos”, “atmosférico” ou “aéreo” (o céu das aves, dos ventos e das nuvens) – cf. Salmo 8,9;
2: o céu “mesoranios”, dito “o firmamento” (o céu das estrelas e dos astros) – cf. Salmo 8,4; Deuteronômio 4,19; e
3: o céu “eporanios”, “superior” ou “Céu dos céus” (a morada de Deus, e muito possivelmente o Paraíso) – cf. Salmo 115.
Muito embora alguns Padres gregos e latinos distingüissem, como alguns judeus, o “3º Céu” (lugar onde os justos ressuscitados gozarão da glória) e o Paraíso (lugar onde os justos descansam, aguardando a ressurreição), boa parte dos Santos Padres (inclusive Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) concordam que o 3º céu apontado por São Paulo deve ser identificado com o próprio Paraíso – em atenção ao que parece declarar o próprio Apóstolo dois versículos depois, em 2Coríntios 12,4 – tendo em vista que este seria o lugar onde os justos gozariam da felicidade e da companhia de Deus (Gênesis 2-3; Ezequiel 28,13-15; Mateus 25,46; Lucas 23,43), ou seja, onde se constituía, por excelência, a “morada dos bem-aventurados junto a Deus”.
Mesmo assim, não é possível determinar com certeza absoluta se o cristão São Paulo, nesta passagem, estava fazendo uso do esquema judaico de 3 ou de 7 céus, já que este último esquema tradicionalmente situava o Paraíso no 3º céu, tornando-se compatível com o versículo 4. A propósito, sendo São Paulo um ex-fariseu (cf. Atos 23,6), não seria de se estranhar que estivesse empregando o esquema de 7 céus, pois era de fato o mais difundido entre os judeus daquele tempo, compreendendo cada céu como um diferente grau de glória experimentado pelos bem-aventurados. Por outro lado, se Paulo estiver aqui se referindo ao esquema de 3 céus, estará afirmando claramente ter sido arrebatado ao “mais alto dos céus”, isto é, à própria morada de Deus e dos anjos e justos bem-aventurados (o que, salvo melhor interpretação, parece corresponder melhor ao teor de 2Coríntios 12,4, que fala de “Paraíso” e, ao mesmo tempo, de “palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir”, possivelmente proferidas pelo próprio Deus; de outra forma, o arrebatamento de São Paulo ainda o situaria muito distante de Deus…)!
Convém recordar, aliás, que os esquemas que adotavam/adotam mais que 3 céus geralmente estavam/estão impregnados de cultura pagã, gnóstica e/ou esotérica. O próprio Santo Ireneu acima citado registra, por exemplo, uma outra doutrina gnóstica, que dividia o céu em 7 e possuía uma estranhíssima “explicação” (situando, contudo, o Paraíso no 4º céu):
“Dizem que o Demiurgo se tornou Pai e Deus dos seres exteriores ao Pleroma, visto que era o Autor de todos os seres psíquicos e hílicos. Com efeito, ele separou uma da outra estas duas substâncias confusas e de incorporais fê-las corporais; fez os seres celestes e terrestres e tornou-se Demiurgo dos psíquicos e dos hílicos, dos da direita e dos da esquerda, dos leves e dos pesados, dos que vão para o alto e dos que vão para baixo. Fez sete céus sobre os quais -dizem – está o Demiurgo. É por isso que o chamam Hebdômada e a Mãe Acamot denominam Ogdôada, porque conserva o número da primitiva e primária Ogdôada do Pleroma. Segundo eles os sete céus são de natureza inteligente: supõem que sejam Anjos e o próprio Demiurgo um Anjo semelhante a um Deus, assim como o paraíso situado sobre o terceiro céu é, pela sua virtude, o quarto Arcanjo e que Adão recebeu dele alguma coisa quando esteve ali” (Contra as Heresias 1,5,2).
No caso dos judeus em específico, verifica-se que a sua tradição de “7 céus” encontra-se apoiada por escritos apócrifos, como o Livro de Henoc Eslavo, o Apocalipse de Baruc e o Testamento dos Doze Patriarcas (que foram, entretanto, rejeitados pelo Sínodo de Jâmnia, o qual definiu o cânon bíblico dos fariseus no século I d.C.), além de outras fontes que podem muito provavelmente terem sido influenciadas pela cultura [pagã] persa e babilônica – que professavam [originalmente] a crença nos 7 céus – durante o período de Cativeiro.
Talvez em razão da “antiguidade” dessa tradição judaica, acabou sendo “importada” para o islamismo (v. Alcorão, Sura 41,12) e para alguns círculos cristãos, entre eles o de nosso já conhecido Santo Ireneu de Lião, que em sua obra “Demonstração da Pregação Apostólica” escreveu, no capítulo 9:
“Este mundo é rodeado por sete céus, nos quais habitam inúmeras potências, anjos e arcanjos, que asseguram um culto a Deus todo-poderoso e criador do universo. Não porque tenha necessidade deles, mas para que não estejam, ao menos, sem fazer nada, como inúteis e malditos. Por isso, é múltipla a presença interior do Espírito de Deus e o profeta Isaías a enumera em sete formas de ministério, que descansaram no Filho de Deus, a saber, o Verbo, em sua vinda humana. De fato, disse: ‘Sobre Ele pousará o Espírito de Deus, Espírito de sabedoria e inteligência, Espírito de conselho e fortaleza, [Espírito de ciência] e piedade; lhe conquistará o Espírito do temor de Deus’ (Is. 11,2-3). O primeiro céu, pois, a partir do alto, que contém os restantes, é a sabedoria; o segundo é a inteligência; o terceiro é o conselho; o quarto, em linha descendente, é a fortaleza; o quinto é a ciência; o sexto é a piedade; o sétimo, que corresponde ao nosso firmamento, está repleto de temor deste Espírito que ilumina os céus. Daí Moisés adotar o modelo do candelabro de sete braços, que arde ininterruptamente no Santuário. De fato, organizou o culto segundo este esquema celeste, com o que lhe havia apontado o Verbo: ‘Te ajustarás ao modelo que te foi mostrado na montanha’ (Ex. 25,40).”
Porém, o que faz aqui Santo Ireneu é simplesmente interpretar alegoricamente o conceito de “7 céus” da tradição farisaica, moldando-o ao conceito judaico-cristão dos “7 dons do Espírito Santo”, atribuindo para cada céu um dom. Portanto, mais que afirmar a existência real de 7 céus, quer Ireneu inculcar os dons do Espírito Divino. Isto fica ainda mais patente quando descobrimos como a “doutrina dos 7 céus” do judaísmo veio a se desenvolver posteriormente… Eis um pequeno reflexo extraído do “Livro do Esplendor”, o qual é uma espécie de resumo da Cabala judaica:
“E Deus criou sete céus acima e sete terras abaixo, sete oceanos e sete rios, sete dias e sete semanas, sete anos e sete vezes sete anos, e os sete mil anos de duração do mundo. E cada um dos sete céus acima tem suas estrelas, seus corpos astrais e seus sóis. Cada um tem sua hierarquia, com poder de executar a vontade soberana. E os que servem são diferentes em cada céu: em alguns, os servos têm seis asas; em outros, quatro asas. Em alguns, têm seis faces; em outros, duas faces. Alguns são feitos de fogos; alguns de água; e alguns de ar. E todos os céus estão colocados uns dentro de outros, como as folhas da cebola. Todos obedecem a palavra do Criador, pois acima de todos está Deus – bendito seja Ele!
E cada um dos sete céus tem suas estrelas fixas e suas estrelas móveis. Levaria cem anos para percorrer andando cada céu. E a altura de cada um é cinco vezes maior que sua superfície; e a distância que separa um céu de outro levaria quinhentos anos para percorrê-la. E por cima de todos eles encontra-se o céu Araboth, o mais alto, cuja superfície levaria mil e quinhentos anos para percorrê-la e sua altura exatamente outro tanto. A luz do Araboth é tão forte que ilumina todos os céus. Acima do Araboth encontra-se o céu da Fera Sagrada. Uma garra da pata da Fera Sagrada é tão grande quanto sete vezes a distância que existe entre a terra e o céu. É como um cristal ígneo. Aqui se encontram as legiões da direita e da esquerda.
Em cada céu existe um governante, que governa a terra e o mundo. Apenas a Terra Santa não é governada por qualquer destes governantes, mas apenas pelo próprio Deus. E o poder que emana de cada um deles é atraído do céu para a terra, pois cada governante está investido a partir do alto com o poder que é dado ao mundo de baixo. No meio de todos os céus existe uma porta chamada Gabillon, sob a qual se encontram setenta outras portas, protegidas por setenta chefes, de onde sai um raio de luz equivalente a duas mil lâmpadas.
Nosso mundo forma o centro do mundo celeste. É cercado por portas que conduzem aos reinos superiores. Em cada porta se encontram legiões de anjos. Estes anjos são alimentados por uma imensa árvore invisível, já que sua luz é oculta pelos ramos. Este mundo pode exercer seu poder apenas quando as sombras da árvore o cobrem e quando todas as portas que se comunicam com o mundo superior estão fechadas. Quando os sinais de louvor se elevam a partir da garganta do homem, duas portas se abrem, uma ao norte e outra ao sul, e a chama celestial desce até a terra e envia sua luz em seis direções. Se todas as portas do mundo não estivessem protegidas pelos anjos, os demônios teriam entrado e o teriam destruído há muito tempo. Porém, quando se elevam ao céu os hinos de louvor, o próprio Deus desce até a terra e fortalece o mundo com sua divina presença.
Quando Deus quis criar todas as coisas, Ele começou criando algo que era por sua vez macho e fêmea; e a estes, por sua vez, Ele os fez dependentes de alguma outra forma que, por sua vez, é macho e fêmea. E a sabedoria (chochma), que é a primeira sephira depois da coroa (keter), foi manifestada pelo Criador e brilha a forma de ambos, macho e fêmea. E quando a sabedoria se tornou manifesta, produziu a inteligência (binah). E novamente temos macho e fêmea: a sabedoria é o pai; a inteligência, a mãe; e estes são os dois pratos da balança. Por causa deles, tudo se manifesta na forma de macho e fêmea. Sem a sabedoria não haveria princípio algum, já que a sabedoria é o pai dos pais, a origem de todas as coisas. Desta união nasce a fé e se estende ao mundo. A binah se produz pelas duas letras do nome de Deus: Yod, Heh. Assim, a binah é realmente Ben-Yah, Filho de Deus, o qual é a perfeição de tudo o que existe. Quando o Pai, a Mãe e o Filho (que é a misericórdia, chesed) estão juntos, ocorre a síntese perfeita. E quando eles estão juntos, a filha (que é o rigor, gebourah) está também com eles.
Porém, sabeis que isto é o resumo de tudo o que ouvistes: que tudo no mundo inferior foi feito à imagem do mundo superior. Tudo o que existe no mundo superior nos parece aqui como que uma pintura. Tudo é uno e a mesma coisa” (Sepher-ho Zohar).
Como se vê, há aqui uma forte tendência para a gnose e o esoterismo, afastando-se radicalmente das Sagradas Escrituras e denunciando, em especial, sua total incompatibilidade com a fé cristã.
Considerando tudo isto, concluímos que embora possamos falar de “céu” no plural (indicando a existência de vários céus) ou no singular (para apontar o céu inteiro, incluindo suas prováveis divisões), INEXISTEM fontes seguras ou de reconhecida autoridade – apostólica ou eclesiástica – que nos obriguem ou, ao menos, nos autorizem a crer ou defender a existência dos “7 céus” ou qualquer outro número que ultrapasse a 3.
- Fonte: Veritatis Splendor