Devemos usar a violência para evangelizar, “como os Jesuítas”?

Deus abençoe e proteja a todos.

Eu gostaria se foi correto os jesuítas converterem os índios a força ao Cristianismo.

Podemos forçar alguém a se converter ao Cristianismo?

Devemos converter os budistas, islâmicos,Judeus e todas as outras culturas que sejam contrárias ao ensinamento de Cristo?

Jesus abençoe a todos e tenham um ótimo trabalho de evangelização.


Olá caríssimo Gláucio. A Paz do Senhor esteja com você e com os seus. Agradecemos pela vossa confiança em nosso apostolado e contamos com suas recorrentes orações.

A sua pergunta, ainda que não explicitamente, contém uma alta dose da ideologia relativista tão presente e enraizada nas pessoas do nosso tempo. Não julgo vossa intenção e honestidade, de modo algum. Mas é preciso ter grande atenção e cuidado para que as ideologias da sociedade moderna não obscureçam nossa razão e nosso pensamento na análise da realidade. É muito comum e muito característico do relativismo perguntas como essa; são dúvidas compreensíveis num mundo aonde o politicamente correto tem valor magno. Elas se inserem num contexto aonde não existem verdades absolutas, aonde nada é definitivo, aonde a noção de sentido e de fundamento é a medida do eu.

É por isso que sua pergunta já considera como fato consumido e inquestionável os missionário jesuítas serem violentos e bárbaros; embora em dissonância com o fato histórico, está em conformidade com a idéia atual de que é arrogância a evangelização das culturas. Para um mundo relativista como o nosso é sumo sinal de prepotência irracional acreditar que uma religião possa desejar se oferecer a uma outra. Tal pensamento sim acontece, e em boa parte é porque a religião católica, o cristianismo em geral, deixou de ser considerado um bem que confere sentido e verdade ao ser humano. Porque o testemunho dos católicos nem sempre é coerente com aquilo que se prega, porque deixou de ser atraente a fé simples e alegre, hoje transformada num livro negro de regras e nãos.

Mas será que o simples fato de crer que se está com a verdade, com o bem, e de oferecê-la as demais culturas é realmente pretensão insuportável? Vejamos por exemplo nossas sociedades democráticas. Todos os que vivem nela, ou sua maioria, acreditam que este modelo de organização do Estado representa uma evolução e um bem ainda não superado por nenhuma outra. Não é verdade que existe uma grande pressão, da mídia, da política, do senso comum, para que estados ditatoriais, tribais, comunistas, se abram ao modelo democrático? No entanto ninguém aponta para a democracia como uma tirana destruidora de culturas e tradições; vê se aqui um bem, e como tal, a que todos tem direito. Vejamos também o exemplo do domínio da técnica na sociedade tecnológica. Não é verdade que o mundo encaminha para um tempo aonde a noção de tecnologia se confunde tanto com a idéia de bem, que surge cada vez mais um senso comum de que ninguém pode ser privado dos acessos a tais técnicas? Não vemos um tempo aonde a tecnologia passa a se tornar um direito a ser reclamado por todos? É, a tecnologia possui críticos bem menos ferozes do que o cristianismo.

Pois bem caro Gláucio, imagine-se agora num tempo aonde o valor máximo de uma sociedade era a salvação da alma, aonde o fundamento das relações interpessoais era a medida do amor e aonde o céu era a meta e o dever de todos. Neste tempo, noções sobrenaturais eram caros a todas as pessoas, e a verdade era um abraçar antes de uma busca, acessível a todos mediante a escuta e a simples adesão de um estilo de vida. Neste tempo não existem dúvidas, existe uma resposta para tudo, baseado no prisma de um homem que se proclamou filho de Deus e que deu a sua vida para que todos se salvassem. Neste tempo, acolher a fé neste filho de Deus dava sentido e conferia virtudes que de tão ricas, não poderiam ser escondidas e nem negadas a quem quer que fosse. Aliás, distribuir essas riquezas era considerado um sumo bem e um direito de todos, um dever de quem os detinha.

Este tempo era aquele em que a cristandade era a verdadeira “aldeia global”, a granda argamassa que unia a todos numa mesma fé e numa mesma doutrina no mundo ocidental e onde a Igreja de Cristo era o referêncial para a vida de todos. Essa época foi uma época extraordinária, a era de ouro da cristandade, bem comum durante a descoberta do continente americano. Esse era o contexto. Essa era a motivação e o desejo dos contemporânes do Cristovão Colombo: levar o caminho, a verdade e a vida a todos. Essa era a meta e o valor.

Depois dessa análise que busca retirar preconceitos e sombras ideológicas sobre o tema, passemos a outro ponto importante. Você afirma categoricamente que os jesuítas usaram de violência para a catequização. Será mesmo? Não é o que diz os fatos.

É sabido de longa data que o papel do catolicismo na ação evangelizadora, especialmente no Brasil, gozou de heroicidade e méritos no tocante da defesa da dignidade humana, aqui encontrada na figura dos indíos. Os exemplos são muitos e históricos. Vejamos alguns.
Ano de 1537, Papa Paulo III, na Primeira carta de Roma aos cristãos das Índias Ocidentais na bula Sublimis Deus:

“Pelas presentes letras decretamos e declaramos, com nossa autoridade apostólica, que os referidos índios e todos os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos cristãos, embora se encontrem fora da fé de Cristo, são dotados de liberdade e não devem ser privados dela, nem do domínio de suas coisas; e ainda mais, que podem usar, possuir e gozar livremente desta liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão; e que é írrito, nulo de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer tempo de outra forma”.

Este pronunciamento firme e veêmente do Papa Paulo III demonstra plenamente o desejo e o comprometimento da Igreja Católica para com a liberdade humana dos povos indígenas encontrados nas terras do “novo-mundo”, e demonstra que imposição e violência não foram as palavras de ordem para a conquista de um rebanho católico nos povos pré-colômbianos.

No entanto aqui é importante parar e refletir: colonizar não é evangelizar. Não existem dúvidas de que o colonizador português teve grave responsabilidade em ocasionais ataques aos povos nativos do nosso país e nas nossas terras, que suas colônias foram instaladas com o intuíto assumido de explorar e que a Terra de Santa Cruz tratou de ser uma grande mina de ouro para o império Português. Aliás, esse posicionamento do colonizador traçou desde o início o destino entre os evangelizadores jesuítas e os povos indígenas, que se uniram num dado momento contra os abusos e explorações:

“Dividindo a colônia em quatro províncias, os jesuítas fixaram-se na área da Bahia de Todos os Santos (Bahia), em São Luís do Maranhão (Setentrional), em São Sebastião do Rio de Janeiro e em São Paulo de Piratininga (Centro-Oriental) e depois, na Meridional, sendo que sua politica de conversão e proteção dos índios tornou-se a principal razão dos conflitos com os colonos reinóis” (HISTÓRIA DO BRASIL, 2003).

Como citado acima, crescia a tensão entre os jesuítas e os reais interesses do Império para escravização dos índios. Segundo fontes históricas (Hoornaert, 1983, p. 405), os padres jesuítas cada vez mais se incorporavam à cultura índigena e esta por sua vez criava laços de tal vínculo humano que qualquer interesse político sobre os povos nativos faziam-se facilmente ignorado por parte da Companhia de Jesus.
“O novo regime instalado em Portugal (1750-1777) considerava o poder dos jesuítas como uma ameaça aos princípios centralizadores do Estado, assim sendo o Marquês do Pombal, primeiro-ministro de D.José I, determinou a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e das suas colônias, em 1759. No Brasil, os colégios jesuítas foram fechados e as missões destruídas, sendo substituídos por escolas municipais e pela preocupação cientifica no sentido de fazer os súditos não apenas serem seguidores da fé católica mas obedientes às exigências do Despotismo Ilustrado” (HISTÓRIA DO BRASIL, 2003).

Como demonstra a história, comunidades inteiras protegidas por padres jesuítas foram dizimadas, e ambos, padres e indíos, queimados juntos. Um ótimo suplemento para este tema seria a análise do filme documentário A MISSÃO (1986, 121min.). Vemos portanto a partir do colonizador o uso da violência e do terror como instrumento real da manutenção de uma organização voltada à exploração e ao atendimento dos interesses imperiais. Para Eduardo Hoornaert, autor da obra História da Igreja no Brasil, esse momento histórico se revela num marco inesquecível e brutal:

“Um povo pode aceitar um religião estranha por meios pacíficos, respeitosos, simplesmente porque se apresenta pelo seu testemunho, sem nenhum uso de força…Foi este poder de testemunho e compromisso manifestado sobretudo sobre os jesuítas que está na origem da mais brutal e violenta perseguição que a Igreja já conheceu durante o período português: a perseguição pombalina” (Hoornaert, 1983, p. 410).

Mais de 500 missionários foram extraditados, presos e assassinados, “E os religiosos por falarem contra essas injustiças e violências são odiados e perseguidos” (FIGUEIRA, 1637, p. 148 [437]). Toda a cultura missionária, que de certa forma era a única esperança daqueles índios fora destruída, como por exemplo “O livro Cultura e Opulência do Brasil (1710) de um jesuíta, Antonil, foi retirado do comércio porque publicava as riquesas do Brasil em benefício de Portugal” (Hoornaert, 1983, p.  407).

“Pois sendo o Maranhão conquistado no ano de 1615, havendo achado os portugueses desta cidade de São Luis mais de quinhentas povoações de índios, e que no ano de 1652, tudo isto estava pespovoado, consumido e toda aquela imensidade de gente acabou de sua entrada até aquele tempo eram mortos dos ditos índios mais de dois milhões de almas… e causa única nem é outra que a insaciável cobiça daqueles moradores e dos que lá os vão governar” (PADRE ANTÔNIO VIEIRA, Informações sobre as coisas do Maranhão, Lisboa, 31 de julho de 1678).

Portanto em 30 anos, mais de dois milhões de índios são mortos segundo o padre entre rebelados, escravizados, torturados, crianças e mulheres. Não é surpreendente, desta forma, a busca de escravos africanos para a implementação de mão-de-obra no Brasil, que também não deixarão de experimentar o amargo sabor da injustiça. “Um Estado fundado em tanto sague, só poderia produzir miséria” (PADRE ANTONIO VIEIRA, citado por Hoornaert. 1983, p. 406).

Veja como a tese implícita em sua pergunta não se sustenta nem numa primeiríssima análise e como sua resposta já vai sendo tecida. Tanto não é correto usar de violência para a conversão de culturas diferentes como a Igreja Católica jamais promoveu tal comportamento. Seria como rasgar a sua tradição, o magistério, as sagradas escrituras e a própria verdade revelada. A noção de salvação católica só sobrevive com o exercício do livre-arbítrio e de uma liberdade plena na adesão da fé. Com efeito, Deus fez o homem livre, e oferece-se como caminho de redenção pelo uso da liberdade, jamais pelo uso da violência, que é um ato irracional e portanto indiferente de Deus, Logos e Razão suprema de todas as coisas. Neste sentido vem insistindo muito o nosso beatíssimo papa Bento XVI em suas últimas declarações e no seu diálogo com o mundo islâmico.

O cristão verdadeiro, que vive e portanto compreende sua fé como dom, que abraça a verdade revelada e encara na totalidade da sua vida o sumo bem que possui em suas mãos, tende naturalmente e necessariamente à evangelização dos povos. Seja por entender que todos são predestinados a salvação e que todos merecem compartilhar da fé em Cristo, seja por observância do mandamento do Senhor de “sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria e até os confins do mundo”(Atos 1, 8), é que todo o cristão deve buscar anunciar o evangelho da boa nova a todas as culturas do mundo, com palavras e testemunho; “nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo. 13,35). Mas sem jamais perder de vista que conversão é transformação, jamais destruição. Pode-se muito bem uma cultura alheia ao evangelho acolher a fé cristã sem por isso perder suas características e tradições em consonância com a verdade do ser humano, mas fazer antes elevar ao máximo todo seu contexto à cultura cristã, que responde aos maiores anseios de todo o ser humano.

Espero ter sido útil, em Cristo Jesus:

Silvio L. Medeiros

Bibliografia:

HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1977-1992. 2 v

MISSÃO, A. Direção de Roland Joffé. Inglaterra: Produtora: Flashstar Home Vídeo, 1986. 121 min. Português, Inglês, colorido,16mm.

ALMANAQUE ABRIL. História do brasil/ História da igreja no brasil. Disponível em: < http://www/uol.com.br/biblioteca> Acesso em: 15 out. 2003.

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