Por Donald S. Prublo
Tradução por Alex Dias de Oliveira *
Alguns dias atrás, o Catholic Family News publicou uma entrevista com o professor italiano Roberto de Mattei. O assunto da entrevista, que certamente deveria ser lido antes de examinar minhas próprias considerações, é sobre o assunto das próximas canonizações dos Papas João XXIII e João Paulo II. Em particular, de Mattei discute suas preocupações a respeito das recentes canonizações, e desafia o consenso teológico aceito sobre a infalibilidade papal na proclamação dos santos. Professor de Mattei é um especialista nas bases cristãs da Europa, e eu mesmo sou grato por seu estudo na defesa das raízes cristãs da sociedade ocidental. Com relação à esta parte, todavia, eu gostaria de oferecer uma perspectiva alternativa.
Existe muita coisa que eu concordo nessa curta entrevista, que dá um resumo das posições sustentadas por alguns intelectuais no lado tradicionalista da Igreja. Como um historiador dos santos e santidade, eu concordo com muitas de suas afirmações sobre o estado atual do processo de canonização. Em particular, eu também gostaria muito de desacelerar o processo, e fornecer maior escopo para uma mediação cuidadosa e análise acadêmica. Embora eu aprove a mudança de um mecanismo simplesmente jurídico para uma análise histórica e contextual nas reformas de 1983, eu também temo que a transição distante de um processo contraditório tenha reduzido seu rigor de alguma forma. O professor também levanta uma preocupação sobre o constante ímpeto para reconhecer a santidade de ocupantes recentes do ofício papal, enquanto muito poucos nos últimos 700 anos tenham sido elevados às honras dos altares. Essa pressão recente levanta questionamentos sobre as motivações daqueles que buscam as causas. Todos esses são questionamentos válidos levantados pelo Professor de Mattei.
Como um historiador da santidade, minha maior hesitação com o processo atual decorre das canonizações feitas pelo próprio João Paulo II. Embora sua louvável intenção era fornecer modelos de santidade extraídos de todas as culturas e estados de vida, ele tendeu a divorciar canonização de seu objetivo original e fundamental. Era pra ter um reconhecimento oficial, público e formal de um culto existente dos fiéis cristãos, que havia sido confirmado pelo testemunho divino dos milagres. Culto precede canonização; não era pra ser o contrário. Estamos em risco de usar a canonização como uma ferramenta para promover interesses e movimentos, em vez de ser um reconhecimento e aprovação de um culto existente. É um caso similar com doutrinas de fé e moral. Por exemplo, Beato Pio IX não tirou o dogma da Imaculada Conceição do nada. Sua definição de 1854 foi um reconhecimento da fé imemorial do povo cristão, lentamente desenvolvida e desdobrada pelos teólogos ao longo dos séculos.
Dito isto, talvez seja compreensível de onde as críticas do Professor de Mattei fluem. O problema é que suas críticas o afastam da mesma tradição teológica que ele está tentando defender. Em primeiro lugar, ele afirma que uma canonização é uma certificação da santidade pessoal apresentada pela Igreja aos fiéis. Ele ignora de imediato a posição tradicional de que o que a Igreja realmente declara é que a pessoa assim proclamada atualmente desfruta da Visão Beatífica. Santidade pessoal e milagres válidos são meramente as precondições de tal definição. Como Santo Tomás diz na Quodlibet 9, q. 16: “a honra que rendemos aos santos é de certa forma uma profissão de fé, i.e., uma crença na glória dos Santos”. Quando o Papa solenemente canoniza um santo, ele certifica que um homem ou uma mulher está no céu. Embora esta definição é certamente enraizada na santidade e nos milagres, esses não são o objeto da definição.
Como resultado de sua posição, de Mattei propõe que quando a Igreja venera um Bispo ou um Papa, ela proclama que tal indivíduo foi um “pastor perfeito” ou que seu período de ministério foi de uma prosperidade incalculável para a Igreja. Não é bem assim. Para santidade, não é requerido que se encontre um sucesso mundano, ou produção ilimitada de bons frutos espirituais nos outros. Santidade não se baseia em tal sucesso. Um sem-número de santos falharam em suas tarefas, algumas vezes miseravelmente, e ainda assim eles perseveraram na virtude heroica até o fim, que é o que o torna um santo. Além disso, existem muitos bispos e papas santos cuja posse danificou partes da Igreja. São Pedro Celestino foi um papa horrível, mas era um homem excepcionalmente santo. Seu papado foi um desastre (ele é o Papa da “Grande Rejeição” de Dante), ainda assim, ele foi canonizado por sua santidade poucas décadas após sua morte. Igualmente, existiram muitos papas cujos papados foram um sucesso incalculável para o fortalecimento da Igreja de Deus, que não receberam o reconhecimento da canonização, homens como Alexandre III, Inocêncio III e Leão XIII.
Feito isso, de Mattei passa a minar o consenso teológico pela infalibilidade do Papa na canonização, uma opinião muito comum desde Tomás e Boaventura que constitui unanimidade. No seu clássico estudo Die Unfehlbarkeit des Papstes in der Heiligsprechung, Max Schenk traça essa unanimidade até 1965, um período que pareceria que de Mattei respeitaria. Entre o final dos anos 1300 e 1600, existem apenas quatro intelectuais que divergiram desse ensino. Depois da definitiva obra de 7 volumes do Papa Bento XIV (1740-1758) sobre canonização, houve total unanimidade. Embora de Mattei esteja correto que Bento XIV ensinou como um teólogo privado nessa questão, não obstante ele é a maior autoridade na história sobre o assunto (de fato, poderia ser chamado de “Tomás de Aquino” da canonização). Sua opinião obteve universalidade.
Além disso, a cuidadosa investigação dos candidatos e a afirmação da infalibilidade prevaleceram por quase meio milênio antes de Bento XIV, tendo suas origens nos primórdios dos anos 1200. Os princípios estabelecidos na prática medieval de canonização lançaram as bases para a doutrina da infalibilidade pessoal do Papa (como eu demonstro no próximo livro da Cornell University Press). A linguagem usada, por exemplo, no decreto dogmático Unam Sanctam de Bonifácio VIII (1302), na Benedictus Deus de Bento XII (1336), ou Ineffabilis Deus de Pio IX (1854) são tiradas das bulas de canonização do final do século XII e início do século XIII. Canonizações, poder-se-ia dizer, são os locais onde os teólogos primeiro discerniram a infalibilidade pessoal do Romano Pontífice.
É o ato da canonização que é o ato infalível do papa uma vez que, como demonstra Tomás, não é mera decisão disciplinar, mas a quase-profissão de fé na glória de um santo. Não é a investigação, mas a inspiração do Espírito Santo que atesta esta realidade para nós (Quod. 9, q. 16, ad 1). Papas não são infalíveis por causa da qualidade da investigação que precede a definição, eles são infalíveis precisamente por causa do ato que eles realizam na cerimônia litúrgica da canonização. De Mattei está interpretando equivocadamente Tomás aqui (como o historiador liberal Brian Tierney tentou fazer nos anos 1970), primeiro atribuindo a infalibilidade apenas à Igreja e não ao Papa mesmo, mas também admitindo a possibilidade de exceções.
Se os atos infalíveis admitissem exceções, então como os fiéis cristãos saberiam se uma declaração dogmática era verdadeira? Sabemos que Francisco e Domingos estão no céu, porque este fato é dogmaticamente afirmado pela Igreja no ato infalível de canonização. Tomás novamente fornece o raciocínio: (Quod 9, q. 1, contra 1) “Na Igreja não é possível haver um erro condenável. Mas seria um erro condenável se ela venerasse um santo que foi um pecador, porque alguém que conhecesse seu pecado, poderia pensar que a Igreja é falsa; e se isso acontecem, ele poderia ser levado ao erro. Portanto, a Igreja não é capaz de errar em tais coisas”. No ano de 1300, era claro para todo mundo que negar a santidade de um santo canonizado na Igreja era uma heresia. Ainda que seja verdade que a oposição a esse ou àquele santo é possível e aberta ao debate antes de uma canonização formal, depois de tal ato, a dúvida é excluída e deve ser recebida com submissão religiosa do intelecto e vontade.
Desde o início do anos 1300 os próprios papas têm entendido seus atos de canonização como infalíveis. Alguns, como Sisto IV, Sisto V, e Clemente VIII citaram explicitamente essa infalibilidade nos contextos de seus próprios atos de canonização. Não se pode descartar esse consenso teológico simplesmente porque procedimentos desenvolvem e ênfases mudam. Em 27 de abril, em uma fórmula litúrgica estabelecida desde as canonizações de João XXII no início dos anos 1300 (e muito provavelmente antes, esses são nossos primeiros registros) três súplicas serão feitas. A primeira será suplicar a ajuda de Maria e dos santos no “ato solene que empreendemos”. A segunda será invocar o Espírito Santo “para que Ele não permita que a Igreja erre em uma questão de tamanha importância”. Então o Veni Creator será cantado (como antes de qualquer definição solene, papal ou conciliar). A terceira implorará ao Papa para inscrever os santos, em nome do Espírito “que em todas as épocas preserva o magistério supremo de qualquer erro”. O papa proferirá as antigas palavras da canonização, o protótipo de todas as definições dogmáticas:
Para honra da Santíssima Trindade, para exaltação da fé Católica, e para aumento da vida cristã, pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e a Nossa própria, após devida deliberação e tendo implorado a Assistência Divina pela oração, e pelo conselho de muitos de nossos irmãos, nós declaramos e definimos os Beatos João XXIII e João Paulo II como santos, e nós os inscrevemos no catálogo dos santos, ordenando que eles sejam mantidos entre os santos da Igreja universal, e para ser invocados como tal por piedosa devoção. Em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo.
Essa não é um linguagem obscura; em ato e em intenção os papas definem essas coisas para ser apoiadas por todos os fiéis. Nós não podemos simplesmente desprezar quase 1000 anos de desenvolvimento teológico neste assunto, particularmente para se adequar ao próprio desconforto com certos acontecimentos recentes. Ser católico é sustentar obstinadamente, como fez Santo Tomás, que na Igreja nunca pode haver um “erro condenável”.
*Tradução gentilmente enviada pelo tradutor. Traduzido do original em inglês “Are Canonizations Based on Papal Infallibility?” disponível em https://www.crisismagazine.com/2014/are-canonizations-based-on-papal-infallibility.