Front National

Escreveu-me um simpatizante do Front National, organização fascistóide francesa. Eis sua mensagem (em negrito sublinhado) e minha resposta (em texto normal):

Um grande número de membros da Frente Nacional combateram os nazistas durante a II Guerra. Portanto,os seus membros,logicamente, não podem ser fascistas nem muito menos nazistas!

Este raciocínio é falacioso. Se eu disser que o Iraque combateu o Irã muçulmano, não posso tirar daí a conclusão de que por isso o Iraque não é um país muçulmano!!!

O Front National é um partido ultra-nacionalista, um dos estertores reacionários (em senso estrito: que surge como reação contrária a algo) da modernidade diante do fim dos Estado-Nação (que, aliás, já vão tarde). É interessante perceber que estes estertores estão provocando convulsões sociais por toda parte, já que se esvaziaram as ilusões de diálogo da modernidade (uma das premissas básicas dos revolucionários franceses era de que toda diferença é causada por má compreensão, o que os levou a buscar construir línguas artificiais ultra-lógicas que comunicassem perfetamente os pensamentos, etc.). O fenômeno Le Pen não tem muita diferença das convulsões causadas pela luta entre o nacionalismo israelense e o palestino, mais patética e trágica ainda quando pensamos que todo este sangue é derramado para obter para o palestinos e manter par os israelenses seus Estados-Nação… em um momento histórico que marca o fim dos Estados-Nação. Em menos de duas gerações esta luta não fará mais sentido algum.

Voltando ao FN e a Segunda Guerra: como ultra-nacionalistas, alguns de seus membros e/ou simpatizantes defenderam heroicamente seu país contra as tropas invasoras nazistas. Se fossem alemães, teriam reprimido com igual ardor a Resistência, como o próprio Le Pen fez na Argélia. A diferença ideológica entre o lepenismo e o nazi-fascismo, entretanto, é ínfima. Basta ter o trabalho de ir à página do FN na Internet e ler o programa de governo deles para constatá-lo. O nacional-socialismo não prosperou como seu irmão gêmeo, o socialismo internacionalista, precisamente por colocar o obstáculo do nacionalismo a uma união maior entre os Estados-membros. É este obstáculo que fez com que houvesse lutas entre nacional-socialistas franceses e alemães.

Note que não estou condenando em bloco o pensamento do Sr. Le Pen, que tem coisas boas e coisas más; não o vejo como muito pior que Chirac ou como pior que Jospin. É, porém, no mínimo realista não tampar o sol com a peneira e perceber que é uma ressurgência nacional-socialista, tão contrária à Doutrina Social da Igreja quanto o proposto pelo Jospin.

Quem leva os membros da FN à violência – como instrumento legítimo de defesa – são os militantes de esquerda que tentam agredir Le Pen e seus seguidores!

Já isso é interessante. Causou-me espécie ver como a resposta dos franceses anti-lepenistas mostra, tanto qto o resultado da eleição, que a população não aceita mais as premissas básicas da modernidade democrática. “J’ai honte”, “non”, etc., são expressões que mostram não um ardor combativo democrático que respeita o vencedor de uma eleição (no caso a eleição por uma vaga no segundo lugar no segundo turno), sim uma negação de seu resultado. É a contestação de um resultado (que entretanto não foi impugnado, não foi acusado de manipulado, etc.) inesperado que leva os manifestantes a desancarem Le Pen sem dó nem piedade, de modo absolutamente antidemocrático (não considero a democracia um valor em si nem estou julgando se fazem bem ou mal; estou apenas constatando com interesse o distanciamento do processo democrático que teoricamente seria amado pelos manifestantes, que justificam seu ódio a Le Pen ao pintá-o de “inimigo da democracia”).Ora, são os manifestantes o mesmo que não votaram nas eleições. a eleição não é mais vista por eles como uma real participação na vida política, ou sequer como fonte de legitimidade de uma plataforma. Um do principais mitos da modernidade (a expressão da vontade popular, etc.) implode diante de nossos olhos.

A imigração irresponsável constitui uma grave ameaça inclusive para a própria cristandade , tendo em vista o fato de viverem na França , aproximadamente cinco milhões de muçulmanos!

Este é um dos pontos acertados do discurso lepenista. Realmente, a migração islâmica está desfigurando a Europa e é extremamente perigosa.

O povo francês está inquieto e quer mudanças!

Sem dúvida. O interessante, porém, é perceber que em mesmo eles sabem quai são as mudanças, ou sequer uem eles são. Le Pen oferece aos oitenta por cento que não descendem de imigrntes (sim, um francês em quatro é filho ou neto de imigrantes) uma “identidade” francesa instantânea, uma espécie de “nescafé” identitário. Misture isso com água e vc tem um francês. Esta “identidade, como estranha forma substancial artificial sobreposta a uma matéria-prima puramente potencial e amorfa, cria um sentimento de união onde já não há união, de pertença em um momento em que não há pertenças reais, e faz com que sua tentativa de ordenar o caos de forma cartesiana (ou seja, partir de uma noção subjetiva, que tem o primado sobre a realidade objetiva) tenha enorme apelo para estes “citoyens”. Sua mistura particular de integrismo e laicismo, então, é fantástica. O sujeito é um gênio. Ele conseguiu pegar as duas identidades que se contrapõem e combatem uma à outra (com enorme vantagem para a laicista…) desde 1789 e fazer das duas um só “nescafé-cappucino”, uma só forma substancial do ente francês do terceiro milênio. Fiquei embasbacado ao ver tão bem entremeados elementos aparentmente irreconciliáveis destas duas tendências da modernidade (o catolicismo-como-idéia-conservadora e a Revolução-laicista-como idéia-progressista) em seu programa.

É também interessante que – como sempre – o povão das ruas percebe muito antes dos políticos de gabinete de ue lado o vento sopra. isto é ao mesmo tempo fonte de força e de instabilidade para Le Pen. Ao mesmo tempo que muitos adotam, in pectore, a sua identidade-nescafé, outros negam a ele e à sua legitimidade no processo eleitoral (ergo, negam o próprio processo, negando uma das premissas do moderno). Por outro lado, os mesmos que adotam esta identidade, com raras exceções, não a adotam em público. Na década de trinta o nacionlismo não tinha vergonha de mostrar sua cara. Hoje, sabendo em seu íntimo que está fadado ao fracasso a médio e longo prazo, ele se esconde. Não me surpreenderia se Le Pen tivesse novamente, nas eleições de segundo turno, uma votação absolutamente inesperada. Certamente muitos votam nele sem ter a coragem de assumir-se “franceses-nescafé”, sem dar o “salto da fé” que os possibilitaria assumir integralmente esta identidade de laboratório, em um momento de fragmentação identitária geral.

Sem dúvida o povo percebe que modernidade já deu o que tinha para dar. Ninguém sabe, porém, o que vem por aí. Certamente, a médio e longo prazo, não é um estertor reacionário da modernidade agonizante, como Le Pen, Sharon ou Arafat. O que é, porém, ninguém sabe. Temo sinceramente que seja Paulo Coelho no poder. 🙂

Afinal a França, desde a Revolução (1789) está profundamente dividida em dois grupos, os laicistas (que incluem os comunistas, socialistas e algumas formas da chamada “direita”) e os integristas, teoricamente católicos. Estes mesmos integristas já tentaram fazer uma Igreja francesa separada de Roma, a chamada Igreja Galicana.

O discurso do Le Pen tem componentes que são “chavões” dos laicistas, como a proibição do uso de símbolos religiosos em sala de aula. Ele dá como exemplo o chador e o quipá; a última defesa desta proibição que eu havia ouvido saíra da boca de um socialista, que botava “no saco” um crucifixo para fora da camisa, *como o faria qualquer francês*; não passaria pela cabeça de nenhum francês que seja permitido o crucifixo mas não o quipá ou o chador, a não ser que isso seja explicitamente afirmado, o que Le Pen não faz.

Ao mesmo tempo, as freqüentes referências a Santa Joana d’Arc, à catolicidade da França, etc., fazem parte do discurso integrista padrão.

É interessante notar que tanto o integrismo quanto o laicismo são formas da modernidade, ou seja, modos de pensar e conceber o mundo que partem de um visão cartesiana, subjetivista e autocêntrica. O que eu vejo de interessante no discurso de Le Pen (e nas reações de seus adversários; vc viu a confusão em Bruxelas? É a própria negação do espírito democrático moderno que eles afirmam, da boca para fora, defender!!!) é que, apesar de todas as referências à modernidade, elas não mais se processam dentro de um quadro moderno. Há quarenta anos atrás seria necessário ser integrista ou laicista, jamais os dois ao mesmo tempo. Um integrista pularia no pescoço de quem viesse com a parte laicista do discurso de Le Pen, e um laicista faria o mesmo ao ouvir a parte integrista.

Para nós, brasileiros, é fácil jogar isso para o lado, dizendo que é só “papo de político”. A diferença é que – graças a Deus – a modernidade nunca chegou aqui. Só o que há de modernidade por essas bandas é o PT (já houve tbm o Integralismo, mas já acabou), e não levamos muito a sério os discurso dos políticos. Isso é diferente na França. Lá, normalmente, até agora, um político aderiria plena e firmemente a um discurso moderno (integrista ou laicista, mas moderno), e só veria o mundo por este prisma.

Eu vejo com muito interesse a ascensão do Le Pen por ser ao mesmo tempo uma reação extremada e quase caricatural da modernidade e sua dissolução. Seu discurso, apesar de ser completamente baseado em padrões modernos, não tem mais a coerência que só o completo oblívio da realidade podia dar-lhes. Ele vê a realidade e tenta dar a ela uma resposta no padrão moderno, conseguindo apenas uma salada de frutas, uma “nacionalidade” inventada que não seria reconhecida por nenhum francês antes do final do século XX, que já marca que a modernidade não funciona mais.

A França é a pátria do moderno, a pátria do Terror, dos Comitês de Salvação Pública, da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” que a tantos mataram. É interessantíssimo ver como mesmo lá o moderno já está se esvaindo, no país em que ele calou mais fundo e mais influenciou a formação psicológica de todos os “cidadãos”.

Explico: o que mais fortemente caracteriza o moderno é o primado da Idéia. A modernidade é uma forma de platonismo em que se crê alcançar o hiperurânio pela Razão, e só por ela. O moderno vê tudo através de uma idéia, e não vê nada que não faça parte dela. Assim, o comunista ou o nacional-socialista (epítomes do moderno) não vê jamais “seu Quinzinho da Quitanda”, mas o Cidadão Brasileiro que por conrato tem empregados (igualmente impessoais “cidadãos”) e faz trocas contratuais com outros cidadãos em um “mercado” que na verdade é a legislação comercial e tributária. Seu Quinzinho passa longe.

Hoje no correio havia uma senhora tentando pegar uma carta para seu marido, e não conseguia. Não conseguia porque para administração *moderna* dos Correios, aquela “cidadã” só poderia pegar a carta para aquele “cidadão” se tivesse uma procuração dele (como a que minha mulher levou para o banco hoje) ou uma outra declaração formal bem cheia de carimbos de que ela pode sim pegar as cartas.

Um francês de quarenta anos atrás jamais ficaria indignado com a situação como aquela senhora ficou. Isso ocorre pq ele pensaria em padrões modernos, ele seria cartesiano.

Ora, o que Le Pen propõe é uma reviravolta neste processo. Ele apareceu com uma outra definição de “francesidade”, de nacionalidade francesa, radicalmente oposta às noções modernas (apesar de ser baseada em uma mistura delas e ser expressa em termos modernos). Para ele é mais importante que o Ahmed Ibn-Nassaoui tem uma identidade cultural diferente (o que, mal que bem, chega bem mais perto de ver o Seu Quinzinho como Seu Quinzinho, ainda que haja uma amalgamação modernosa de todos os Seus Quinzinhos imigrantes ou filhos de imigrantes sob o rótulo de “diferente”, “métèque”, “immigrant”, “arabe”, etc.) do que o fato do Ahmed ter nascido na França ou ter um passaporte francês.

Ele troca a noção moderna francesa de nacionalidade por nascimento e adesão às regras de vida por uma noção de nacionalidade identitária, um pouco cultural, um pouco racial. Note que a modernidade produziu dois tipos de nacionalidade: a que vem pelo nascimento em um lugar e a que vem pelo sangue. As duas são idéias aplicáveis (por bem ou por mal) a pessoas (que não interessam senão como depositárias de papéis, fazedoras de contratos, etc.). A noção do Le Pen não é nem a de solo (a tradicional francesa) nem a de sangue (a alemã), mas uma diferente, cultural-racial, mutcho loca. Ela leva em consideração coisas que a modernidade não quer ver que existem.

O discurso dele, porém, é em um padrão moderno (“A celui qui laisse une fois encore le désordre s’installer dans notre pays […] répondez leur, dans l’urne” – a “desordem”, ou seja, a realidade que não se qdequa às idéias, “respondam na urna”, ou seja, através de relações impessoais… tudo isso é discurso moderno).

Ele disfarça a diferença entre *pessoas*, seres humanos, que ele (e só ele, dentre os políticos franceses) vê, usando termos modernos. Na verdade, porém, ele é o único que percebe a diferença real entre Seu Quinzinho Ibn-Nassaoui e Seu Quinzinho Dupont. Aliás, ele e os pafúncios que estão protestando depois de não terem votado. Eles querem é matar o Le Pen (aquele coroa de óculos, não o “cidadão’ que contratualmente fundou uma sociedade jurídica de natureza partidário-política, etc.) porque ele quer expulsar o seu amigo pessoal Saïd Ibn-Lissa, não “votar contra o arbítrio”, “defender pelo voto ou pelas armas a igualdade dos cidadãos”, ou qualquer outra noção moderna.

Ele é o único que entendeu isso. O problema é que as “soluções” que ele defende são propostas como modernas, em um contexto moderno, e levantando a bandeira da modernidade. Se ele – como a TFP – as propusesse em termos românticos (o romantismo foi uma forma de anti-modernidade que estava para a mdoernidade como reação, aproximadamente como o Le Penismo se coloca diante do “pluralismo” pós-moderno) talvez tivesse alguma chance a médio prazo. Assim, não tem. Ele até pode chegar ao poder e reinar por uma ou duas décadas, mas não vai deixar uma escola que dure mais que uma geração.

O que poderia durar mais, e é o que eu temo, é algo bem pior que o Le Pen: é uma proposta “política” puramente emocional, sem apelos à modernidade e sem um discurso moderno (o que eu chamei de Paulo Coelho no poder). Isso corre o risco de chegar para ficar. Al Gore, nos EUA, tinha uma proposta dessas, e graças a Deus perdeu para o Dubya, um burraldão moderno menos perigoso.

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