Reflexões de d. Eugênio Araújo Sales (Parte 1/3)

Frei Galvão e os Mártires do Rio Grande do Norte

4/12/1998

Frei Galvão

A recente elevação de Frei Antonio de Sant?Anna Galvão à honra dos altares trouxe à Igreja no Brasil um sopro de espiritualidade. Sobre ele, assim se expressam em documento dirigido ao Provincial dos Franciscanos, no ano de 1798, o Bispo Dom Mateus de Abreu Pereira e o Senado da Câmara de São Paulo: “Este homem é preciosíssimo a toda esta Cidade e Vilas da Capitania de São Paulo; é homem religiosíssimo e de prudente conselho; todos acodem a pedir-lho; é o homem da paz e da caridade”.

Hoje, no término do século XX e às vésperas do 3º Milênio do Nascimento de Jesus, do Grande Jubileu, Frei Galvão vem iluminar, apontar caminhos, amparar necessitados em São Paulo e em todo o Brasil. A mesma missão de séculos atrás, ele a exerce em nossos dias, agora elevado à honra dos altares, como Bem-aventurado. Um longo itinerário, desde 1739, quando nasceu em Guaratinguetá, então Diocese do Rio de Janeiro. Esta tinha por limites ao norte o Rio Jequitinhonha, Capitania de Porto Seguro, Bahia, e ao sul, o Estuário do Prata; a leste o Oceano Atlântico e a oeste, “terras desconhecidas”, como rezava a Bula “Romani Pontificis pastoralis sollicitudo”.

No ocaso de uma civilização onde se mesclam valores extraordinários simbolizados por esta personalidade providencial que é o Papa João Paulo II, ao lado da decomposição que lembra, em alguns aspectos, outros períodos da História da Humanidade, faz-se mister insistir na proeminência do exemplo sobre as palavras. O homem moderno, sedento de Justiça e à procura de Deus envereda, com freqüência, por caminhos que levam a ídolos e não à Verdade. Ele exige o comprovante de atos, do sinal. No interior da própria Igreja, o Senhor, entre os excepcionais frutos do Concílio, assinala o “homo inimicus”, na expressão de São Mateus (13,25.28), que fez penetrar a “fumaça do demônio”, como advertiu Paulo VI.

Por isso, as Beatificações e Canonizações assumem, em nossa época, um lugar especial na evangelização. Mais do que a exaltação de quem serviu com heroísmo, elas demonstram ao mundo que o ensinamento da Igreja é viável, compensador. Exortam a vivê-lo e a defendê-lo com coragem. A vida de Frei Galvão está repleta de testemunhos que falam mais do que suas palavras. Frei Galvão, como presbítero, tem muito a nos dizer. Ordenado sacerdote a 19 de julho de 1792, no Rio de Janeiro, por Dom Frei Antonio do Desterro, OSB, viveu fiel e intensamente sua consagração como padre e franciscano. O primeiro Bem-aventurado elevado aos altares, no Brasil, foi um sacerdote.

Frei Galvão, defensor dos direitos humanos, emerge de maneira fulgurante no episódio da condenação à morte ? por motivo fútil ? do soldado Caetano José da Costa. A atitude firme do Bem-aventurado custou-lhe a chamada “pena do degredo”, a ser executada em 24 horas. Mesmo injusta e absurda a decisão, ele se dispôs a cumpri-la imediatamente. No entanto, a reação do Bispo Dom Manuel da Ressurreição, de autoridades e do povo, conseguiu a revogação da sentença do exílio. E ele, que partira em direção ao Rio de Janeiro, a pé, pôde retornar.

Como este, toda a existência de Frei Galvão está cheia de fatos que, no âmbito estritamente religioso, servem de alicerce essencial à atuação no campo social. Nosso Bem-aventurado nos dá um rumo e nos ajuda.

O aumento da devoção após a cerimônia da Beatificação, no dia 25 de outubro último, deve ser orientado para os testemunhos a serem imitados mais do que para a simples procura de soluções de ordem material. O Santo é, acima de tudo, uma prova da possibilidade de um cristão seguir em seus atos os passos de Jesus.

As solenidades por motivo da elevação aos altares de Frei Galvão nos levam a mais profunda reflexão sobre essa nota essencial ao fiel: a santidade. A consideração da essência da Igreja nos ensina que característica não é, em primeiro lugar, o distintivo heróico

 

11/12/1998

Mártires Brasileiros

Ainda repercutem os ecos dos aplausos pela elevação à honra dos altares do Bem-aventurado Frei Galvão. Eis que chega ao fim, na Congregação para a Causa dos Santos, o processo oriundo da Arquidiocese de Natal, de “Beatificação ou declaração do martírio dos servos de Deus André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, sacerdotes diocesanos e seus companheiros, mortos “in odium fidei” ( por ódio à fé ) em 1645. Serão os proto-mártires brasileiros. O Pe. André de Soveral veio ao mundo em São Vicente em 1572. Muitos outros também nasceram em nossa Pátria. O último de um grupo de jovens companheiro de João Martins que então perderam a vida, responde com ânimo alegre à proposta de renunciar à Fé, dizendo: “Deus não me abandona”. Crianças, com suas mães, foram cruelmente massacradas. Famílias martirizadas!

Com a invasão holandesa, embora fosse afirmada haver liberdade de culto, ocorria uma crescente perseguição religiosa aos católicos. Os invasores eram, em parte ponderável, calvinistas. O período de 1637 a 1644, com Maurício de Nassau, vigorou uma tolerância, apesar dos protestos do Sínodo da Igreja reformada .

Os fatos aqui narrados sucederam na capitania do Rio Grande, tomada pelos bátavos em dezembro de 1633. Na localidade de Cunhaú havia uma capela, hoje restaurada. Funcionava importante engenho de açúcar. A quinze de julho de 1645 chega o enviado do governo holandês, o alemão Jacó Rabi. Vinha acompanhado de soldados e índios. Trazia ordens para serem comunicadas no dia seguinte, festividade de Nossa Senhora do Carmo. Por ocasião da consagração, fechadas as portas da igreja cuja patrona é Nossa Senhora da Candelária, começou a carnificina. Não houve resistência por parte dos fiéis, exortados pelo pároco, Padre Antônio Ferro. Esse sacerdote entrara na Companhia de Jesus a seis de agosto de 1593 na Bahia, exercia seu ministério junto aos índios (conhecia profundamente sua língua), no território que dependia do Colégio de Olinda. De janeiro de 1600 até fins de 1607, integrou o elenco dos padres e irmãos da província da Companhia de Jesus no Brasil. Deduz-se que depois passou ao clero secular, pois na época de sua morte exercia função de pároco em Cunhaú. Ao ser martirizado devia ter 73 anos. Na igreja calculam que estivessem 69 pessoas. Outros permaneceram em um imóvel vizinho, mas foram em grande número também massacrados. O processo de Beatificação não os inclui. Eles lutaram, embora, o fizessem em defesa da própria vida. Uma forte chuva e o receio do aparato militar levaram-nos a não participar da Missa. Resistiram, muitos conseguiram fugir, mas a maioria foi trucidada .

Os cronistas holandeses e portugueses divergem quanto ao número de vítimas entre 39 e 69.

Espalhou-se a dolorosa notícia. Em Natal alguns se refugiaram na Fortaleza dos Reis Magos, que tivera o nome substituído por Van Ceulen. Eram pessoas influentes na Província. Não foi possível abrigar maior número. Um outro grupo subiu o Rio Potengi e construiu precária defesa no lugar denominado ainda hoje de Uruaçu. No interior da paliçada estavam recolhidas cerca de 70 pessoas. Reagiram ao assédio dos bátavos e índios mas terminaram por capitular. Uma comissão foi conduzida ao Forte e depois levados rio Potengi acima até o porto de Uruaçu. Esperavam-nos duzentos índios tapuias comandados pelo terrível Antonio Paraupeba, convertido ao calvinismo. Foram mutilados e mortos. Após o trucidamento trouxeram da paliçada 52 homens e um número impreciso de mulheres e filhos. Depararam-se com os corpos dos cinco que haviam sido enviados como prisioneiros ao Forte. Todos haviam sido assassinados com extrema ferocidade. Aceitaram, no entanto, piamente o sofrimento e a morte. A crueldade levou Diogo Lopes Santiago a comparar os carrascos aos “tigres e leões ferozes”.

Há fatos curiosos: “Uma jovem foi poupada por algozes que já haviam sacrificado suas duas irmãs pois era uma donzela elegante e a negociaram com os índios em troca de um cão de caça”.

O mais emocionante nesse martírio ocorreu com Matias (ou Mateus) Moreira. Cortaram-lhe braços, pernas, perfuraram os olhos, retaliaram o corpo. Ao lhe arrancarem o coração pelas costas, suas últimas palavras foram “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”. O documento mais antigo que relata esse massacre, hoje ainda tão pouco conhecido, é a relação de Lupo Curado Garro, capitão e governador militar da Paraíba, redigido vinte dias após os acontecimentos. No século XVII Frei Manuel Calado do Salvador, religioso da Ordem de São Paulo Eremita, escreveu “O Valeroso Lucideno”. A “História da Guerra de Pernambuco”, foi elaborado entre 1661 e 1675 por Diogo Lopes Santiago, testemunha ocular da guerra contra os holandeses. Em 1675 é publicada, em Lisboa, pelo beneditino Rafael de Jesus, “O Castrioto Lusitano”. Mais recentemente veio a lume, em 1904, um documento de 1757, redigido pelo também beneditino Dom Domingos Loureto Couto intitulado “Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco”. O historiador Francisco Adorno de Varnhagem em 1872 editou “A História das lutas contra os holandeses no Brasil”. Em nossos dias diversas obras têm sido publicadas. O Padre Arlindo Rubert em “A Igreja no Brasil”, volume II, (págs. 121-125), trata das “vicissitudes da Igreja na invasão holandesa e perseguições religiosas”. Na realidade, Cunhaú e Uruaçu não são casos isolados.

Em Natal, por ocasião do XII Congresso Eucarístico Nacional, o Papa João Paulo II, na homilia de Encerramento, a 13 de outubro de 1991 assim se expressou sobre Matias Moreira: “Quando insultado e ferido pelos hereges por sua recusa a renegar a fé na Eucaristia e fidelidade à Igreja do Papa, exclama enquanto lhe abriam o peito para lhe arrancar o coração “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”.

 

17/12/1999

Mártires beatificados

O martírio é de grande importância na Igreja. Ele apresenta ao mundo alguém que testemunha a Fé católica, com a imolação da própria vida. Esse termo começou a assumir o significado usual em nossos dias, a partir do ano 155, com o “Martyrium Policarpi”. Ele “não somente foi mestre insigne mas também mártir excelso (…) cujo martírio todos aspiram a imitar, porque aconteceu à semelhança de Cristo, como narrado no Evangelho”. Indubitavelmente, esse sinal da credibilidade à revelação cristã diante de um mundo incrédulo anuncia a vivência dos valores evangélicos até o sacrifício do maior dom, que é a nossa existência. Em uma humanidade que busca a qualquer preço o bem-estar pessoal, o lucro, o gozo, ouve-se a expressão do Mestre: “Eu ofereço minha vida para depois retomá-la de novo” (Jo 10,7 e 18). Hoje registra-se um enriquecimento do conceito. Santo Tomás (in Epistola ad Romanos, 8,7)amplia, mas também marca limites ao uso da expressão: “Constitui o martírio, não só a proclamação da Fé mas toda e qualquer outra virtude não política, de inspiração sobrenatural, que tenha Cristo como objetivo”.

No próximo dia 5 de março, na Praça de São `Pedro, em Roma, serão oficialmente reconhecidos como mártires um grupo de brasileiros massacrados no Rio Grande do Norte, em 16 de julho e 3 de outubro de 1645. A Arquidiocese do Rio de Janeiro far-se-á presente pelo seu Pastor e duas peregrinações: a oficial e a das religiosas.

O mais antigo relato dessas ocorrências foi feito vinte dias após o morticínio de Uruaçu, na “Breve, Verdadeira e Autêntica Relação das Últimas Tiranias e Crueldades que os Pérfidos Holandeses Usaram com os Moradores do Rio Grande” no “O Valeroso Lucideno” (1679) pags 277-280. O autor: Lopo Curado Garro. Inúmeros outros documentos foram consultados pelo Postulador da Causa, Monsenhor Francisco de Assis Pereira, em diversos arquivos de Natal, Recife, Roma, Holanda e Lisboa. Alguns nomes falam por si, da importância: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Secreto do Vaticano, Arquivo Geral do Reino, Antiga Companhia das Índias Ocidentais, especialmente “Nótulas Diárias” e “Cartas e Papéis do Brasil” (em Haia).

A memória desses acontecimentos chegou a nossos dias. Quando eu exercia o ministério eclesiástico na Arquidiocese de Natal, cuidei de preservar a memória dos fatos junto aos fiéis, dando seguidamente o nome desses heróis da Fé às obras sociais que iam surgindo, fruto do trabalho pastoral. Assim, foram criados juridicamente e funcionam ainda hoje a Escola Ambulatório Matias Moreira, o Centro Social Padre Ambrósio Ferro, o Instituto João Loustau Navarro.

Das ocorrências até nossos dias, a lembrança do martírio se manteve viva. Uma frase do General Fernando Távora, em artigo no “Diário de Natal” a 30 de agosto de 1950, resume essa constância: “Sem embargo, há mais de 300 anos as almas de Cunhaú atraem e acendem a devoção persistente da gente do agreste potiguar, que ali vão, em romaria, acendendo velas e rezando de joelhos por sobre ruínas que o tempo envelheceu”.

A palavra do Santo Padre na manhã de 3 de outubro de 1991 em Natal, na homilia da Missa de encerramento do XII Congresso Eucarístico Nacional é um coroamento do período que vai da ocorrência dos fatos até à beatificação: “É uma circunstância feliz que o Congresso esteja sendo realizado em Natal. Precisamente aqui, em 1645, um homem simples, profundamente religioso, Matias Moreira, deu com os seus companheiros na região conhecida por Cunhaú e Uruaçu, um belo exemplo, que lembra o dos mártires da Igreja. Quando insultado – ferido pelos hereges, por sua recusa em renegar a Fé na Eucaristia e a fidelidade à Igreja do Papa, – exclamou, quando lhe abriam o peito para arrancar-lhe o coração: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento!”.

O processo diocesano teve início a 7 de maio de 1989 (Ascensão do Senhor), por Decreto do então Arcebispo, Dom Alair Vilar Fernandes de Melo e o “Nihil obstat” da Santa Sé foi outorgado a 16 de junho do mesmo ano. A última etapa da investigação em nível local foi a instauração, pelo novo Arcebispo, Dom ?Heitor de Araujo Sales, do Tribunal Arquidiocesano para a Causa dos Mártires. O processo diocesano foi concluído a 31 de maio de 1994 e a 14 de junho do mesmo ano, foi feita a entrega da documentação à Congregação das Causas dos Santos.

Em 21 de dezembro de 1998, o Papa João Paulo II assinou o Decreto reconhecendo o martírio dos que puderam ser identificados entre os cruelmente assassinados em Cunhaú, sacrificados na Matriz de Nossa Senhora das Candeias, a 70 Km de Natal; e em Uruaçu, nas imediações do Porto do Flamengo, distante 50 Km do Forte dos Reis Magos, também em Natal; dois sacerdotes e vinte e oito leigos – casais, crianças, jovens, adultos.

Às vésperas do Grande Jubileu do Nascimento de Jesus e dos 500 anos da Descoberta do Brasil, se insere essa extraordinária solenidade da beatificação dos primeiros mártires brasileiros. O Prefeito da Congregação das Causas dos Santos , Dom José Saraiva Martins, chamou-os de Protomártires do Brasil. Será a 5 de março, na Praça de São Pedro, em Roma.

Neste período que nos resta para a glorificação desses heróis da Fé diante do mundo, pensemos em suas lições, tão importantes para a vida cristã, na atualidade: a fidelidade à Igreja e à sua Cabeça visível, o Vigário de Cristo, o Santo Padre. Uma viva consciência de estar no mundo sem ser do mundo e cumprir o dever de levar a todos os quadrantes do universo a mensagem de nosso Salvador, o Cristo Jesus.

VOZ DO PASTOR D. Eugênio de Araújo Sales

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