Testemunho de Edith Stein (ex-judia)

Edith Stein nasceu em 1891. O fato de ter nascido mulher, coloca-a, nesta data, bem dentro do torvelinho da luta das mulheres pelos seus direitos, como pessoas autônomas e livres, luta que iria prolongar-se por todo o séc. XX. Nasceu assim no tempo das ?sufragistas?, essas ridicularizadas senhoras que apenas queriam ter o direito de votar. Podemos ver aqui a primeira difícil circunstância da sua vida com que se irá confrontar mais tarde, quando lhe foi negada uma cátedra de filosofia. Não era só o fato de ser judia mas também o de ser mulher que a impedia de ser professora universitária. Na Alemanha dos anos vinte assim acontecia. Esta linha de força da sociedade do tempo irá atravessar Edith Stein.

Nasceu em Breslau, na Alemanha, cidade que hoje se chama Wroclaw e fica na Polônia. Esta outra linha circunstancial insere-a na angustiante fonte de guerras e disputas sangrentas que foi e tem sido a definição das fronteiras das nações da Europa. No seu curriculum , Edith Stein dizia-se prussiana. Hoje a Prússia Oriental não existe. Königsberg, a cidade onde nasceu Emmanuel Kant, filósofo bem alemão, agora chama-se Kaliningrado e situa-se na Rússia.

Edith Stein considerava-se prussiana e patrioticamente prussiana. Quando se declarou a I Guerra Mundial que iria redesenhar o mapa da Europa, deixou-se levar pelo entusiasmo do intenso patriotismo que reinava então, em ambos os lados dos beligerantes, e que tornou essa guerra tão heróica, tão feroz, tão estúpida e brutalmente assassina. Edith interrompeu os estudos para servir como enfermeira num hospital militar, durante dois anos.

A sua língua era a alemã, a sua cultura era a alemã, a sua pátria era a Alemanha. Por ela estava disposta a correr riscos e a fazer sacrifícios. Estes nacionalismos exacerbados não desapareceram com o fim da I Guerra, antes desencadearam a segunda? E hoje? Os Bálcãs, o País Basco, a Irlanda do Norte, a Tchechénia? O militantismo patriótico de ontem, chame-se agora terrorismo, é a linha de violência que atravessou a Europa e ainda agora a fere. Ela também toca em Edith Stein porque lhe viria a roubar a sua terra natal, a província da Silésia.

Contudo não era só prussiana. Era também judia. Prussiana e judia, como ela a si própria se declarava. Hoje sabemos como estas duas identidades assim juntas, foram sinônimo lúgubre de perseguição, de tortura, de tragédia, de extermínio. Uma das grandes dores da Europa do séc. XX atinge em cheio Edith Stein e será causa da sua morte. Esta linha de força, tão tristemente típica da Europa do seu tempo, irá trespassá-la.

Nasceu numa família judia e numerosa, a mais nova de sete irmãos. A morte súbita do pai, quando ela contava apenas quatro anos, deixou a família em condições precárias mas a mãe, mulher enérgica e corajosa, tomou conta do negócio do marido, a empresa prosperou e proporcionou à família confortável nível de vida. Estamos em 1910.

Muito piedosa, a senhora Stein, embora tivesse instruído os seus filhos na religião judaica e sempre, em casa, se rezasse e se celebrassem todos os ritos, viu alguns dos seus filhos, entre eles a jovem Edith, abandonarem qualquer espécie de prática religiosa. Eram judeus assimilados, como então se dizia, eram alemães que não queriam ser judeus? Este problema de identidade ainda hoje subsiste. O que é ser judeu? O que é o Estado de Israel? Edith Stein viveu intensamente esta confusa identidade e fez a sua escolha. Aos catorze anos era completamente ateia, como ela própria confessa, na biografia que escreveu, a pedido da Superiora do Carmelo de Colônia antes de o abandonar, a caminho da Holanda. É uma declaração muito forte que teremos tendência para amenizar, contrapondo-lhe o indiferentismo religioso. Aqui temos mais uma linha que atravessa o coração de Edith Stein e o coração da Europa. O ateísmo, esse ateísmo que tornando-se militante iria instalar-se politicamente, estrangulando as nações européias, quer sob a forma de nazismo, quer sob a forma de comunismo. Sob a forma de indiferença religiosa, o ateísmo, nos nossos dias, enxarca a cultura européia, num divórcio instalado, ?politicamente correto?, um laicismo larvar, uma apostasia das velhas nações cristãs serenamente aceite. Esta linha do ateísmo conheceu-a Edith na sua juventude.

Uma vez acabados os estudos secundários, ingressou na Universidade de Breslau, inscrevendo-se no curso de psicologia. O que pretendia Edith Stein da universidade? Gostava de estudar história e línguas para as quais possuía especial talento. Além do alemão, aprendeu francês, inglês, espanhol, latim, grego e hebraico e iria aprender facilmente o holandês quando esteve no Carmelo de Echt. Mas as línguas eram apenas uma diversão útil. Desde sempre que a devorava enorme vontade de saber, não o saber pelo saber mas saber a verdade. Esta paixão obsessiva, íntima, radical irá nortear não só o seu percurso universitário mas a sua própria vida. A filologia e a psicologia não levavam a sítio nenhum. Eram estudos meramente práticos. Com a filosofia era diferente. Aquela busca incessante vinha ao encontro das suas aspirações. Mas se já era exceção, para uma mulher, a carreira universitária, o que dizer da filosofia, domínio reservado aos homens. A publicação na imprensa da notícia de um fremiu de filosofia ganho por uma jovem filósofa, Hedwige Martius, ajudou-a a decidir-se pela filosofia. Mal imaginava que Hedwige Martius iria ser sua grande amiga.

O meio universitário de Breslau era muito provinciano, longe dos grandes centros culturais da Alemanha. Um colega de Edith emprestou-lhe o segundo volume das ?Investigações Lógicas?, obra recente do filósofo Edmund Husserl, ?o pai da fenomenologia?, que estava a ensinar em Göttingen. A leitura e o estudo desse livro foram para Edith uma iluminação. Era aquilo mesmo que ela queria, a investigação da verdade. Tinha de ir para Göttingen, urgentemente. Contra a vontade da mãe que temia pela filha na vida estudantil fora da vigilância familiar, Edith consegue alojamento através de parentes. A saída para Göttingen sentiu-a como uma libertação.

A fenomenologia de Husserl que era, no fundo, mais um método do que um sistema filosófico, apontava no entanto para o ?regresso às coisas mesmas?, cortando com o cepticismo e o relativismo então dominantes. Cansados do idealismo que fechava o homem em si mesmo, isolando-o do mundo real e dos outros homens, da noção da verdade objetiva das coisas, os estudantes de filosofia viam, em Husserl, alguém que, a partir da lógica e da consciência, lhes abria caminho para nova indagação do real.

Em Abril de 1913, apresentou-se na Universidade de Göttingen para freqüentar o curso de Husserl. Naquela altura, era assistente dele o jovem filósofo Adolf Reinach que recebia e entrevistava os futuros alunos. Quando chegou a vez de Edith, ficou maravilhado. Enviou-a imediatamente a Husserl.

– O professor Reinach falou-me de si, disse-lhe o Mestre. Já leu alguma coisa das minhas obras?

– Li todo segundo volume das ?Investigações Lógicas?, respondeu Edith, placidamente.

– O volume inteiro? Mas isso é um feito heróico!

Foi logo aceite como aluna. Tinha 22 anos. ?Estava cheia de esperança, diz-nos ela. Em Breslau, a psicologia tinha-me desiludido e chegara à conclusão que a esta ciência ainda lhe faltavam fundamentos objetivo. O método objetivo da fenomenologia encantava-me?.

Como era Edith como aluna? De estatura mediana, quase passava desapercebida senão estivesse sempre na fila da frente da sala de aula, numa atenção fixa, imperturbável. Vestia de modo muito simples, sem garridice, com os cabelos lisos, apartados ao meio e apanhados atrás. Figura modesta, de rosto muito pálido, com grandes olhos negros, profundos e inquiridores. Apesar da sua grande inteligência não era arrogante nem exuberante. Era calma e sorridente. Mas professores e colegas não se deixavam iludir por este exterior discreto. Edith passou a pertencer a um pequeno círculo de jovens filósofos que discorriam horas sem fim sobre fenomenologia e de que faziam parte, entre outros, a laureada Hedwige Martius e Alexandre Koyré, colega de Edith e seu grande admirador. Iria depois visitá-la ao Carmelo. ?Ela era uma pessoa excepcional? afirmou depois.

Alguns dos alunos de Husserl, como os deste grupo, a certa altura, sentiram que o Mestre em quem tinham posto tanta esperança e que os tinha libertado dos laços do kantismo, conduzindo-os até à percepção da realidade, parecia que estava novamente a confinar-se ao idealismo. Começaram a afastar-se. Husserl sentiu esta desafetação mas era a lógica do seu próprio pensar que o levava a identificar sempre a existência como um processo de auto-manifestação da consciência. Tornava assim impossível encontrar uma realidade livre de toda a relatividade subjetiva. O próprio Deus seria relativizado. Max Scheler e depois Heidegger, embora não renegando o ponto de partida fenomenológico, seguiam para outras experiências filosóficas, os valores ou o encontro do ser.

Na efervescência cultural acadêmica, algo estava também a acontecer, paralelo à menor adesão ao ensino de Husserl. Um surto religioso, contagiante, entusiasmante, que levava professores e alunos, muitos deles de origem judaica, a aderirem ao cristianismo, criava uma atmosfera quase religiosa que contrastava com o positivismo até ali em voga. Começava a despontar essa chusma de conversões de intelectuais, tão característica dos anos vinte (e até um pouco antes) e que tanto acontecia na Alemanha, como em outros países, sobretudo em França, onde o apelo dos Papas Leão XIII e Pio XI para se retomar o estudo de S. Tomás de Aquino não ecoara só nos seminários mas atingira também os meios universitários. Era o celebrado neo-tomismo de que Jacques Maritain foi a figura principal. Este movimento irritava Husserl que nele via uma espécie de escolástica serôdia.

– Dizem que eu não gosto de S. Tomás, desabafava depois. Eu até gosto bastante de S. Tomás. Ele não é neo-escolástico.

Para ele, a filosofia só era competente em matéria de falso ou verdadeiro e o sentimento religioso, como tinha por objeto o irracional, não podia fazer sombra à hegemonia da filosofia. Achava que só a fenomenologia servia o cristianismo e que só ela era a única filosofia que a Igreja poderia utilizar. O neo-tomismo, na sua opinião, seria ultrapassado. E diria do novo ambiente na Universidade:

– Um grande número dos meus alunos voltaram-se radicalmente para a religião de modo notável. Uns tornaram-se cristãos evangélicos profundamente crentes, outros converteram-se à Igreja Católica. Mas nas relações comigo nada mudou.

O que era verdade.

Mas esses alunos assistiam agora às aulas de Max Scheler. Heidegger, já doutorado, ensinava em Marburgo. Max Scheler era agora o professor preferido e os alunos amontoavam-se na sala. Assim como Husserl era soturno, Scheler era brilhante. Edith disse dele: ?Era extremamente sedutor. Nunca, com ninguém, me senti tão perto do fenômeno do gênio?. As tertúlias de Max Scheler no café eram famosas. Aliás, as suas teorias sobre a ?simpatia? vinham ao encontro da própria investigação de Edith para a sua tese de doutoramento, em que, através da projeção intuitiva, da fusão afetiva projetiva, procurava completar a fenomenologia de Husserl, introduzindo-lhe a noção fenomenológica dos outros.

No entanto, a influência de Max Scheler, segundo ela própria confessou, ia para além da filosofia. Ele era católico e isso transparecia no seu ensino.

Husserl gostava muito de Edith e tinha por ela grande consideração. Quando, em 1916, foi nomeado para a Universidade de Friburgo-Brisgau, levou-a com ele, como assistente e colaboradora. Edith tinha 25 anos.

A uma sua antiga aluna, a irmã Aldegundes, Oblata beneditina, e que o acompanhou nos últimos anos da sua vida, Husserl confidenciou que sentia escrúpulos por ter proposto aos seus alunos, demasiado jovens e com falta de maturidade, noções indecifráveis para a sua inteligência. Edith Stein já há muito que tinha percebido esta dificuldade. Organizou, em Friburgo, cursos sobre fenomenologia para esses alunos recém-chegados, antes de assistirem, com mais proveito, às aulas de Husserl. Alguém lhe perguntou um dia :

– Está então a ensinar filosofia em Friburgo?

– Não. O que eu lá tenho é um ?jardim-de-infância? para aprendizes de filosofia! respondeu, não sem certa malícia.

Foi neste ?jardim-de-infância? que a futura irmã Aldegundes a conheceu. ?Tinha o dom do ensino e formava-nos com paciência ilimitada, bondade atenta e silenciosa?, testemunhou. ?Sempre afável, respondia às nossas perguntas disparatadas sem ironia. Encorajava-nos incansavelmente a progredir no caminho austero do conhecimento intelectual. A chama que a devorava incendiava-nos os corações. Estávamos também contagiados pela alegria de conhecer e deixávamo-nos conduzir por ela, enquanto o pressentimento de uma felicidade única nos fazia estremecer?. Não é qualquer pessoa que é capaz de irradiar assim. Edith tinha qualidades pedagógicas excepcionais, amava profundamente o que ensinava e a quem ensinava.

?Não se deve ter medo de ir até ao fundo das coisas, até à sua última realidade? gostava de repetir o professor Adolf Reinach. Era judeu e cumpriu em si essa máxima. Chegou a Cristo.

Em 1916, quando Edith já estava em Friburgo, ele estava na guerra. Aproveitou uma licença, veio a casa e batizou-se com a mulher, ato para o qual já se vinham preparando havia algum tempo. Quando voltou para guerra, morreu na Flandres, em 1917. Anna Reinach pediu então a Edith Stein que a viesse ajudar a ordenar os papéis do marido para futuras publicações. Edith acedeu imediatamente. Deixou, por um tempo, Husserl e a Universidade de Friburgo e voltou a Göttingen para a ajudar. Tinha sido amiga do casal, testemunha a sua felicidade e do amor que os unia. Temia encontrar Anna esmagada pela dor mas ela apareceu-lhe transformada pela provação. Magoada, sim, por grande sofrimento, nela habitava, no entanto a força de Cristo. A Cruz tinha penetrado no mais íntimo do seu ser, ferida e salva ao mesmo tempo. O sacrifício, sustentado pelo amor, unia aquela alma ao Salvador crucificado e da sua pessoa emanava uma irradiação nova, fato que impressionou vivamente a ateia Edith Stein.

Fez esta confidência: ?Foi o meu primeiro encontro com a Cruz, com essa força divina que ela dá aos que aceitam levá-la. Abanou a minha incredulidade e a luz de Cristo começou a acender-se no meu coração, essa luz que vinha através do mistério da Cruz. É essa a razão pela qual, quando tomei o hábito do Carmelo, quis acrescentar a Cruz ao meu nome.? Este encontro foi decisivo.

Entretanto, Hedwige Martius e o marido tinham comprado uma quinta em Bergzabern, no Palatinado, onde viviam dentro de um ideal cristão de simplicidade e de trabalho, embora mantendo a casa aberta para os amigos, sobretudo para os filósofos do velho clube de Göttingen. Depois de voltar para Friburgo, para Husserl e para a Universidade, Edith tornou-se visita frequente daquela casa onde, nas férias, se gastava a trabalhar na horta, o que irritava Alexandre Koyré, também hóspede da casa, porque o cansaço físico prejudicava as discussões filosóficas!

No Verão de 1921, durante uma ausência do casal Conrad-Martius, Edith Stein encontrou-se sozinha em casa. Foi buscar um livro á biblioteca dos amigos. Calhou ser a vida de Santa Teresa d’Ávila. Começou lê-lo e interessou–a tanto que não o largou mais. Leu-o pela noite fora e, de madrugada, quando acabou, disse: ?Isto é a verdade?. Chegara ao fim da sua incessante procura, do seu caminho trabalhoso e exigente. No dia seguinte comprou um Missal e um catecismo que estudou minuciosamente. Depois foi à Missa. Já várias vezes tinha acompanhado Hedwige ao Templo mas nunca tinha entrado numa igreja católica. Nada lhe foi estranho, nem o ambiente nem a celebração a que assistiu, devotamente, pela primeira vez. Percebeu tudo. Depois da Missa foi à sacristia e pediu ao velho pároco que a batizasse. Aflito, este explicou-lhe que teria primeiro de receber alguma instrução. ?Pergunte-me,? pediu, simplesmente.

Depois de longa conversa, o padre percebeu que a doutora Stein estava perfeitamente preparada para receber o Batismo, que ficou marcado para Janeiro, naquela mesma igreja de Bergzabern. Foi sua madrinha Hedwige Martius que, por ser protestante, obteve licença especial. Edith estava aliviada e extremamente feliz. Tinha 30 anos. Fez a primeira comunhão, comunhão que se tornou prática quotidiana. O Bispo de Speyer crismou-a na sua capela particular, a 2 de Fevereiro, festa da Purificação. Foi então que Edith conheceu o cônego Schwind, o seu primeiro diretor espiritual.

O que se teria passado na alma de Edith? Interrogada sobre as razões da sua conversão respondia: ?Isso é comigo?. Nem Hedwige Martius dera pela transformação espiritual da amiga. Existe, no entanto, um estranho testemunho. Em 1922, na revista de Husserl, Anais de filosofia e de pesquisas fenomenológicas para onde ela costumava escrever, publicou um artigo intitulado ?Causalidade psíquica?, onde se pode ler o seguinte: ?Faço planos para o futuro e organizo em conseqüência a minha vida presente. Mas, no fundo, estou convencida que vai dar-se um acontecimento que deitará abaixo todos os meus projeto. É a fé autêntica e viva, a que ainda recuso dar o meu consentimento, essa fé que eu impeço de se tornar ativa em mim. Existe um estado de repouso em Deus, de total suspensão de toda atividade do espírito, no qual não se podem conceber planos, nem tomar decisões, nem fazer nada mas onde, tendo-se colocado todo o futuro na vontade divina nos abandonamos ao nosso destino. Experimentei um pouco esse estado, a seguir a uma experiência que ultrapassando as minhas próprias forças, consumiu totalmente as minhas energias espirituais e me subtraiu toda a possibilidade de ação. Comparado com a paragem da atividade por falta de força vital, o repouso em Deus é qualquer coisa de novo e de irredutível. Primeiro é o silêncio da morte, depois nasce um sentimento íntimo de segurança, de libertação de tudo o que é preocupação e responsabilidade em relação ao agir. E enquanto eu me abandono a este sentimento, eis que começa pouco a pouco a encher-me uma vida nova que ? sem nenhuma pressão sobre a minha vontade ? me vai empurrar para novas realizações. Este afluxo vital parece emanar de uma Atividade e de uma Força que não são minhas e que, sem me violentar, torna-se ativo em mim. O único pressuposto necessário para tal renascimento espiritual parece ser essa capacidade passiva de acolhimento que reside no fundo da estrutura da pessoa?. Foi escrito pouco antes do seu batismo.

Faltava ainda por fazer algo de muito difícil. Comunicar à mãe a sua conversão. Foi a Breslau, a casa da família, e disse-lho, de joelhos diante dela : ? Mãe, eu sou católica?.?Foi a primeira vez que vi a minha mãe chorar? conta Edith na sua biografia. Ficou seis meses em Breslau. Acompanhava a mãe à sinagoga, e esta, ao vê-la rezar os mesmos salmos no Breviário, não a entendia. Quando se entoou o ?Shemah Israel?, sussurrou-lhe:

– Ouves? O nosso é o único Deus.

–  É o mesmo?

–  Então porque é que tu?

Não havia entendimento possível mas a evidente piedade da filha serenou-a. Quando Edith voltou para Friburgo já não sentiu gosto na Universidade. Embora alguns anos atrás não tivesse posto de parte a idéia de se casar, de ter filhos, de constituir família, agora era a vocação religiosa que despontava como deu a entender ao cônego Schwind. Mas este nem quis ouvir tal coisa. Era preciso ?aproveitar? aquela inteligência. Aconselhou-a a fazer retiro e indicou-lhe as dominicanas de Speyer que tinham um colégio junto do convento. Quando transpôs a entrada, viu com certeza o que por cima dela estava escrito: ?Veritas? que é um dos lemas da Ordem dominicana.

As religiosas receberam-na com alegria e como havia falta de uma professora de alemão, Edith tomou logo o cargo de ensinar alemão às meninas do secundário. Partilhava com as religiosas a vida conventual e todo o tempo disponível gastava-o na capela em contemplação silenciosa. Todos os testemunhos das religiosas e das antigas alunas são unânimes na descrição das suas qualidades pedagógicas mas quando questionadas sobre o que mais as impressionara em Edith Stein as respostas também são unânimes: o silêncio. A doutora Stein entrara no silêncio da contemplação.

Os seus amigos filósofos do grupo de Göttingen tinham-se dispersado mas outro grupo, desta vez de católicos, tinha-se formado entretanto e tomou contacto com Edith. O padre jesuíta Eric Przywara, que pertencia ao grupo, pediu-lhe que traduzisse para alemão uma recolha de textos de Newman a que ela acedeu. A seguir publicou um estudo Da fenomenologia de Husserl à fenomenologia de S.Tomás (1929). Para uma filósofa acabada de chegar à fé católica, o Santo Doutor era agora um caminho. Também a pedido do padre Przywara que era especialista em ?Analogia entis?, conceito fundamental para se entender S.Tomás, começou a tradução do De veritate , tratado importante do mesmo autor. O seu novo director espiritual era agora o Abade da Abadia de Beuron, Dom Rafael Walzer. A abadia era muito conhecida como centro de renovação litúrgica e Edith costumava freqüentá-la na Semana Santa. Embora gostasse das belas celebrações da abadia, a oração de Edith era outra. Certa vez, ficou na igreja, em Sexta-Feira Santa, desde as quatro da manhã até ao fim da tarde, em completo jejum. Quando a amiga com quem tinha vindo lho fez notar, Edith respondeu-lhe: ?A minha mãe judia e já idosa, com oitenta e quatro anos, é capaz de jejuar um dia inteiro e eu não o posso fazer no dia da morte do Senhor??

Dom Walzer aconselhou-a a deixar o convento de Speyer para acabar a tradução do ?De veritate?. Acolheu-se então ao mosteiro das beneditinas de Santa Lioba, onde estava a sua antiga aluna, a irmã Aldegundes. Acabou o trabalho, que foi publicado, e retomou a carreira de conferencista que já tinha iniciado em Speyer. O seu nome começava a ser conhecido e foi solicitada para fazer conferências em vários lados, como Friburgo, Munique, Colônia, Zurique, Heidelberg, Praga. Em 1930, em Salzburgo, na Semana Internacional Universitária, a sua conferência foi um triunfo. Em Juvisy, onde a Société Thomiste organizou um colóquio sobre ?Fenomenologia?, Edith, a única oradora convidada, explicitou os ensinamentos de Husserl, intervenção que ficou memorável. Aí conheceu Jacques Maritain que dela disse depois: ?Como se poderá descrever a pureza, a luz que irradiava de Edith Stein? A generosidade total que nela se adivinhava e que daria frutos no martírio? escreveria ele, mais tarde.

Foi por esta altura que Edith voltou a casa, onde foi recebida com frieza. Soube então do segredo da sua irmã mais velha, Rosa, que se queria batizar mas que não o fazia para não desgostar a mãe. Mas o acolhimento do resto da família foi desagradável e ressentido.

Edith tentou então obter uma cátedra de filosofia. Voltou a Friburgo-Brisgau onde teve a grande alegria de reencontrar o seu velho professor Husserl. Este, tendo depois pedido emprestado alguns livros de Santa Teresa para tentar perceber a conversão da sua melhor aluna, exclamava; ?Como é que, tendo Edith aprendido a claridade de espírito, coerente e comedido, da escolástica, nada disso transparece em Santa Teresa?? De fato, há muitas coisas que a filosofia não explica.

Em Friburgo era já reitor Heidegger. Edith conhecia-o e falou-lhe sobre os seus projetos. Ele achou-a perfeitamente apta para ser ali professora. Prometeu-lhe uma resposta. Enquanto esperava, Edith recebeu um inesperado convite para ensinar no recém-fundado Instituto Pedagógico de Munster, instituição católica que se destinava a preparar professores. Edith trabalhou lá dois anos. Quando chegou de férias da Páscoa, vinda de Beuron, em Abril de 1933, foi-lhe significado que a sua presença não era mais desejada no Instituto que, aliás, foi extinto pouco depois. Os nazis estavam a proibir o ensino a todos os professores de origem judaica. Em Friburgo, o reitor Heidegger, que aderira ao partido nazi, expulsou da Universidade todos os professores judeus. Tinha começado a terrível perseguição. Edith já não tinha para onde ir. ?Agora que lhe cortaram todos os laços, pensou Dom Walzer, vai voar para o Carmelo?. Foi isso que aconteceu. Edith tinha 42 anos, era judia e não tinha dote. Do lado da família não podia contar com nada, naturalmente, e não tinha fortuna pessoal. Mas o Carmelo de Nossa Senhora da Paz, em Colónia, recebia-a de bom grado.

Edith foi despedir-se da família.

– Que vais fazer a Colónia junto das irmãs? perguntou-lhe a mãe.

– Partilhar a vida que levam.

A reação da mãe foi terrível. Chorava, tinha ataques de fúria ou caía em desespero silencioso. Rosa sofria em silêncio. Erna, outra das irmãs, chorava. O ambiente era opressivo e doloroso. A 12 de Outubro, aniversário de Edith, era a festa dos Tabernáculos. Edith foi com a mãe à sinagoga. Na volta esta perguntou-lhe:

– Gostaste do sermão? Não foi bonito?

– Sim, foi.

– Então pode-se ser piedoso continuando a ser-se judeu?

–  Com certeza, se não se conhece outra coisa.

– Porque é que tu aprendeste outra coisa? disse a mãe, com desespero. E acrescentou:

– Não tenho nada contra ele? Até pode ter sido um homem muito bom. Mas porque é que ele se quis fazer igual a Deus?

O cunhado, marido de Elsa, acusava-a de estar a fugir para o Carmelo justamente quando os judeus estavam a ser perseguidos. Era uma traição completa. Se Rosa permanecia silenciosa, Elsa revoltava-se. ?É uma catástrofe!?

Nesse próprio dia, Edith entrou no Carmelo. Bastaram algumas semanas e já parecia ter rejuvenescido. Comia bem, dormia melhor e irradiava alegria. Segundo Santa Teresa, são estes os sinais de uma vocação autêntica.

A 13 de Abril de 1934, recebeu, com o hábito, o nome de Teresa Benedita da Cruz. Foi uma linda festa, com o Provincial, o Abade Dom Walzer, seu director espiritual e muitos dos seus amigos, colegas e antigos alunos de Munster, Friburgo e Speyer.

–  ?Nela tudo é verdadeiro? sentenciou Husserl, definitivamente.

Como era a vida de Edith Stein no noviciado? A sua incapacidade total para os trabalhos domésticos não lhe tirava a boa disposição. Poucas religiosas sabiam quem ela era, nem Edith estava disposta a dizer fosse o que fosse sobre si própria. Era uma igual às outras. Falava da família e da sua preocupação por não ter notícias no meio da perseguição aos judeus que se mostrava cada vez mais feroz. Fez os votos a 20 de Abril de 1935. ?Esperei doze anos por isto? disse. O Provincial pediu então à Superiora que libertasse Edith dos trabalhos domésticos (ela nem sequer sabia coser?) e lhe desse, por obediência, o encargo de escrever. Além de escrever alguns textos a propósito de festas religiosas, Edith retomou um estudo sobre S.Tomás, ?Acto e potência?, que deixara incompleto. Desenvolveu-o e acrescentou-o, compondo uma outra obra a que chamou ?Ser finito e ser eterno?, um ensaio sobre o sentido do ser. É a sua obra mais importante e uma súmula do caminho do seu filosófico. Não abdicando da sua formação fenomenológica, Edith Stein parte da experiência da finitude para o Ser eterno. Depois, não recorre só a S.Tomás, mas também a Aristóteles, a Platão, a Santo Agostinho, a Dinis, o Pseudo-Areopagita, aos filósofos do seu tempo Husserl, Scheler, Heidegger (cuja ontologia critica), aos da sua fé, Maritain, Gilson, Przywara, Hedwige Martius e a alguns professores de escolástica. Confessa, no prefácio, que não tem preparação escolástica suficiente mas não se coíbe de dar a sua opinião, mesmo que seja contrária à deste ou daquele, mesmo que seja S.Tomás?Não faz teologia mas filosofia cristã.

O manuscrito correu várias casas editoras, sempre recusado, até que em Breslau o aceitaram. A impressão, porém, teve de ser interrompida porque um decreto do governo nazi proibia os judeus de publicarem fosse o que fosse. Só foi publicado depois da morte de Edith Stein e depois da guerra.

Entretanto morreu a mãe. Rosa, a sua irmã mais velha, batizou-se e veio ter com ela ao Carmelo onde ficou como porteira. A morte de Husserl em 1938 não a preocupou. Edith tinha escrito pouco antes à irmã Aldegundes: ?Quanto ao meu velho mestre, não me inquieta. Deus é a verdade. Quem procura a verdade procura Deus, esteja ou não consciente disso?.

Os muros do Carmelo não são impermeáveis. Sabia-se o que se passava. Até porque Edith tinha muitos amigos que a vinham visitar. Alexandre Koyré, o seu colega, que ia partir para Paris. Peter Wust, que a conhecera em Munster, judeu convertido como ela e que diria depois: ?Ao pé da contemplação, a filosofia não é nada?. Gertrude von Le Fort, grande amiga de Edith, também a foi visitar e pediu à Superiora que lhe deixasse ver o rosto. Edith pôde descobri-lo e a escritora viu um rosto rejuvenescido e resplandecente que a deixou muito impressionada.

A perseguição aos judeus tinha-se acentuado, sobretudo a partir da Noite de Cristal, em Setembro de 1938, com prisões, deportações e confisco de bens. A guerra tinha-se então declarado e as tropas alemãs invadiram quase toda a Europa, instaurando em todo o lado a mesma feroz e completa perseguição aos judeus. Consciente do perigo que não só ela corria mas que corria todo o Carmelo por causa dela, Edith pede para ser transferida para outro lado. Depois de várias consultas, o Carmelo de Echt concordou em recebê-la. Um médico amigo das carmelitas de Colônia levou Edith de automóvel para a sua nova morada. Estamos em 1941 e os Países-Baixos estão sob o domínio nazi. Rosa, que não tinha seguido com a irmã porque não era religiosa, acabou por meter-se a caminho sozinha, perdeu toda a bagagem mas chegou a Echt, sã e salva, onde assumiu o mesmo lugar de porteira.

No meio desta grande tempestade, foi comunicado à Superiora de Echt que um Carmelo suíço estava disposto a receber as duas irmãs. Era preciso que o consulado suíço lhes desse vistos. Sabia-se que com aqueles vistos se podia sair da Holanda. Pedidos os vistos, estava-se à espera. Nesta espera, a Superiora pediu a Edith Stein que escrevesse, para a Comunidade, a vida de S. João da Cruz. Ela começou a escrever, pondo nessa tarefa todo o cuidado acadêmico, cotejando as várias versões das poesias do Santo. Ele tinha-as modificado para escapar à Inquisição. Esta biografia não difere muito de outras biografias do Santo. É bem feita, bem documentada, abundante em citações do Santo e de outras fontes. Cita seis biografias? É curioso verificar o cuidado com que Edith Stein explica a sofreguidão do Santo pelo sofrimento que nos pode parecer algo mórbida ou masoquista. Para entrar na ?noite escura dos sentidos?, é necessário ?renegar-se a si mesmo?, aceitar todo o sofrimento com amor e alegria, esse sofrimento causado não só pelas tribulações exteriores mas também pelo dominar-se a si próprio, afim de alcançar um vazio na alma que só Deus pode preencher. Apóia também a opinião do próprio Santo, de que, se o chamamento do ?renegue-se a si mesmo, tome a sua Cruz e siga-me? (Mt. 16, 24) se dirige a todos, nem a todos Deus escolhe para este caminho de total contemplação, de aceitação amorosa da Cruz, de qualquer cruz que Deus mande. Edith, colocando-se atrás do Santo, explica que a Cruz de Cristo pode ser simplesmente a cruz que decorre da vida de cada um.

É também interessante a explicação que dá sobre a diferença entre meditação e contemplação . A meditação, que ela aproxima da espiritualidade inaciana, é como que um treino das qualidades humanas ao serviço da maior glória de Deus, ao passo que a contemplação, pede o vazio total da alma, mesmo que para isso seja preciso muito sofrimento, uma ascese interior radical, praticada com amor ? todo o amor é sofrimento, diz o Poeta.

Admirável neste livro são as condições angustiosas e trágicas em que foi escrito, e que não transparecem na obra. Edith Stein empenhou-se nesta encomenda com serenidade e aplicação, bem características do seu jeito acadêmico. É comovente o cuidado minucioso com que, depois de descrever a morte de S. João da Cruz, faz um chamamento de pé de página, em que esclarece que foi escrito segundo testemunhas oculares. A morte de Edith não terá testemunhas oculares. É escuridão completa.

No dia seguinte ao ter entregue à Superiora o manuscrito das duas primeiras partes (a terceira não a escreverá?), a Gestapo bateu à porta do Carmelo, exigindo, em cinco minutos, as duas irmãs Stein.

Em dez minutos concedidos, levou-as. ?Anda, Rosa, disse Edith para a irmã, vamos dar a vida pelo nosso povo?. Dar a vida. ?Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos seus amigos? (Jo. 15, 13). As religiosas contemplativas são, às vezes, vistas como inúteis. Estão ali guardadinhas, não fazem nada a ninguém, enquanto outras religiosas se gastam nas missões ou nos bairros de lata. Deus deu a Edith Stein, no momento em que tomava a sua Cruz, a Cruz da sua Paixão, que iria sofrer unida à Paixão do Senhor, uma ocasião de dar prova do amor maior pelo próximo. Dar a vida pelos seus irmãos. Era o dia 6 de Agosto de 1942.

Até ali, na Holanda, os judeus batizados não tinham sido perseguidos, nem presos, nem deportados. Mas no dia 25 de Julho, os Bispos católicos holandeses e alguns protestantes, tinham publicado uma Carta Pastoral conjunta, em que se insurgiam contra as perseguições e deportações para trabalhos forçados (não se falava em extermínio) de famílias inteiras de judeus e do confisco dos seus bens.

Nos dias seguintes, por retaliação do Gauleiter da Holanda, o sinistro Seyss-Inquart, foram feitas rusgas em todo o país e presos 1.200 católicos de origem judia entre os quais uma vintena de religiosas, religiosos e padres. Era a vingança dos nazis contra a ousadia dos Bispos.

Estes católicos, que incluíam as irmãs Stein, foram descarregados num campo de concentração de passagem, em Westerbrok, ainda na Holanda, para se fazer a triagem daqueles que iriam para o Leste.

É deste campo que se têm as últimas notícias de Edith Stein e da irmã. Com outras religiosas, algumas trapistas, uma clarissa e uma dominicana, as duas carmelitas juntaram-se numa pequena comunidade para rezarem juntas, sob a orientação de Edith Stein. Esta, devotava-se, sempre serena, a acalmar as pessoas que gritavam e choravam desesperadas. Era como um Anjo no meio do Inferno, segundo o testemunho de uma senhora que escapou à deportação com os seus dois filhos, um dos quais veio a ser frade dominicano.

Muitos judeus estavam acantonados no mesmo campo do que os católicos, mas tinham melhor tratamento. Para os católicos, os vexames e a fome. Nem todos os internados foram escolhidos para a morte, mas no primeiro comboio de vagões de gado, iam, apertadas no meio dos outros, as irmãs Stein, a caminho de Auschwitz.

Na véspera da sua prisão, Edith Stein tinha acabado de descrever a morte de S. João da Cruz, rodeado pelos seus irmãos descalços, da sua Reforma, que cantavam os salmos penitenciais, tendo aos pés da cama o Prior, que o recebera mal, já arrependido, debulhado em lágrimas. Um dos seus grandes amigos leigos também estava presente. À hora de Matinas, o Senhor levou-o.

Também Teresa de Jesus assim morreu, rodeada pelas suas filhas, num dos seus conventos reformados. Do mesmo modo, Teresa de Lisieux ou Isabel da Trindade, em grande sofrimento, é certo, mas no possível conforto das enfermarias do Carmelo, ao cuidado da irmã enfermeira e sempre apoiadas pelas orações das outras religiosas.

Não assim, Edith Stein. A não ser a incompreensão e a hostilidade de quase toda a família ou o machismo prevalecente na sociedade do tempo, não se pode dizer que, visivelmente, a vida de Edith Stein tenha sido de grande sofrimento. Festejada por mestres, colegas e alunos, amada pelos seus amigos, levara uma vida simples, dedicada ao estudo ou ao ensino. Depois da conversão, teve tempo para a contemplação feliz do Senhor da verdade que tão incansavelmente tinha buscado através da filosofia. ?A procura da verdade era a minha única oração? dizia. Às vezes, perguntava a si própria, qual seria a Cruz que o Senhor lhe reservava, que a unisse à sua Paixão.

Há testemunhos de como se processava a execução na câmara de gás. Escolhido o grupo, homens, mulheres, velhos e crianças eram obrigados a despirem-se completamente e, assim nús, eram metidos à força para dentro da câmara e apertados brutalmente uns contra os outros. Também o Senhor foi despido antes de ser crucificado. Romanos e gregos, educados em ginásios, estavam habituados à nudez. Para os judeus crentes, era uma humilhação. Para uma carmelita, também.

Quando acabavam os gritos e os choros, se dissipava o gás e se instalava o silêncio da morte, a porta era aberta. Os corpos estavam de tal modo enclavinhados uns nos outros, numa amálgama quase informe, colados pelas lágrimas, pelo suor, pelo sangue, pela urina, pelos excrementos, que era preciso separá-los à força, para poderem ser largados na vala comum. Morte horrível, por asfixia, como a crucificação. Os ossos da irmã Teresa Benedita da Cruz, são ossos perdidos entre milhões de outros ossos. Cinzas. Nada. É uma aniquilação. Foi esta a Cruz pela qual esperava com ânsia e amor. Tinha cinqüenta anos.

Houve outro despojamento na vida de Edith Stein, prévio a este, que é muito significativo. Refiro-me ao despojamento intelectual ou seja o despojamento da sua maior e mais óbvia qualidade humana, a inteligência. Nada ficou de uma possível brilhantíssima carreira filosófica na Universidade como prometiam o êxito nos estudos e o apreço dos professores, colegas e alunos. Depois da sua conversão, Edith Stein já não escrevia, não ensinava nem fazia conferências se lhe não fosse pedido expressamente de modo a ela o entender como útil para os outros, como escritos sobre pedagogia e sobre o papel da mulher na sociedade. A filosofia já não pertencia ao seu caminho espiritual. A sua corrida atrás da verdade acabara, o resto é silêncio.

A isto se junta o fato de como tem sido difícil fazê-la conhecer. Uma intelectual quase sem obras, uma vida quase invisível, documentos desaparecidos, correspondência queimada, arquivos fechados. Havia, sobretudo, o testemunho das pessoas.

O Papa João Paulo II não se demorou com estas dificuldades. Depois da beatificação (1997) foi declarada mártir, o que dispensa mais formalidades como pedem os processos, e canonizou-a no ano seguinte. A reação dos judeus ou pelo menos de porta-vozes encartados foi algo com que o Papa não esperava. ?Não. Edith Stein foi assassinada porque era judia não porque fosse católica. É uma vítima da ?Shoah?. Não é uma mártir cristã. Ela é nossa. Não é vossa?.

A cruz é um sinal de contradição, ?escândalo para os judeus, loucura para os pagãos? (1 Cor 1, 23) e aqui, na sua expressão de extrema caridade que é dar a vida pelos irmãos, sejam eles quais forem, sofreu uma entorse, que quase despojava Edith Stein da prova tangível do seu amor ?louco?, da sua ?escandalosa? paixão pela cruz do Senhor, traduzidos assim no amor do próximo mais próximo, os judeus perseguidos e massacrados.? Senti que a Cruz de Cristo se tinha abatido sobre o meu povo? disse ela, a respeito destas perseguições.

João Paulo II não deixou que se acendesse mais a discussão e proclamou–a, juntamente com Santa Catarina de Sena e Santa Brígida da Suécia, padroeira da Europa (1999). Deu-lhe uma dimensão que ultrapassa a confinada e limitada identidade judaica. Será ela um elo ligação, um gesto de paz para com o povo eleito? Não sei. E padroeira da Europa?

Se voltarmos às linhas de força com que caracterizamos as circunstâncias da sua vida, vemos que se enrolam à sua volta como uma teia, ficando assim enredada nas misérias e lutas do séc. XX europeu.

A luta interminável pelos direitos das mulheres, o gravíssimo problema, ainda prevalecente, das fronteiras dos países europeus, o nacionalismo e a xenofobia que hoje se chamam terrorismo, a tragédia do destino dos judeus, o ateísmo crescente. Edith Stein está bem no coração da Europa.

E o que tem para dar à Europa?

Face ao hedonismo, ao comodismo individualista, ao materialismo, ela oferece-lhe a ascese, o despojamento, a humildade.

Face ao relativismo moral, à ocupação do espaço pelo simulacro e pelo espetáculo, Edith Stein fala-lhe da esperançada e incessante busca da verdade.

Face ao indiferentismo religioso, ao ateísmo prático, à idolatria da técnica e da ciência, mostra-lhe a fé alicerçada na filosofia.

Face à idolatria do dinheiro, do poder, corrupto e corruptor, à ânsia de qualquer protagonismo, mesmo oco, em que o parecer substitui o ser, ela aponta-lhe o amor de Deus e do próximo que se exprime na loucura da Cruz.

Face à sociedade do ruído, ao impudor, à escravização ao êxito, Edith Stein dá o exemplo, exigente e salvador, do silêncio e da contemplação do Ser infinito.

Face à ignorância arrogante, à violência prepotente e gratuita, à falta de respeito e de educação, inconscientes e assassinas, lembra-lhe a paciência, o cuidado na pedagogia, a atenção ao crescimento interior dos outros.

Edith Stein, padroeira da Europa? Certamente.

Então, dentro desse maravilhoso dogma que é a comunicação dos santos, podemos agora dizer:
Santa Catarina de Sena,
Santa Brígida da Suécia,
Santa Teresa Benedita da Cruz rogai por nós, pobres europeus.

Teresa Maria Martins de Carvalho
Margalha, Festa de Santa Catarina de Sena, 29 de Abril de 2000

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.