Está encerrada na Igreja a questão se um papa pode ou não ser herege?

Por Alessandro Lima

Os sedevacantistas que são muito dados às fábulas, inventaram um novo dogma: um papa não pode cair em heresia jamais, mesmo interna. Segundo eles, este dogma foi proclamado no Concílio Vaticano I! Argumentam que o Capítulo IV da Constituição Dogmática Pastor Aeternus, que define a infalibilidade papal, definiu também a incapacidade de um papa de ser herege [1].

Dizem que a Pastor Aeternus, em seu Capítulo IV, define que um papa não pode cair em heresia (não pode perder a virtude da fé). Alegam que o Concílio Vaticano I elevou ao nível do dogma a opinião de São Belarmino e Alberto Pighius (ambos sustentavam a opinião minoritária de que um Papa não pode perder a sua fé pessoal) e que, consequentemente, a opinião contrária não pode mais ser defendida. 

Não precisamos apresentar os malabarismos sedevacantistas e sua posterior refutação para provar que tal tese é falsa. Basta que apresentemos diretamente a interpretação dada pelo próprio Concílio a respeito.

No seu famoso discurso de quatro horas, proferido durante o Vaticano I, o Bispo Vincent Gasser, o Relator oficial (porta-voz) da Deputação da Fé, afirmou que a opinião de Pighius/Belarmino não era precisamente o que o documento pretendia ensinar. Durante o discurso, que forneceu aos Padres Conciliares a interpretação oficial do documento pela Igreja, Dom Gasser respondeu ao que chamou de “uma objeção gravíssima que foi feita deste púlpito, a saber, que desejamos fazer com que a opinião extrema de um certa escola de teologia um dogma da fé católica. Na verdade, esta é uma objeção muito grave e, quando a ouvi da boca de um orador notável e muito estimado, baixei a cabeça com tristeza e ponderei bem antes de falar. Meu Deus, você confundiu tanto nossas mentes e nossas línguas que somos mal interpretados como promotores da elevação da opinião extrema de uma determinada escola à dignidade de dogma…?” [2].

Qual foi essa opinião extrema da qual o bispo Grasser falou? Ele continua explicando:

“No que diz respeito à doutrina exposta no Esquema, a Deputação é injustamente acusada de querer elevar uma opinião extremada, nomeadamente a de Albert Pighius, à dignidade de um dogma. Pois a opinião de Albert Pighius, que Belarmino de fato chama de ‘piedoso e provável’, era que o Papa, como pessoa privada ou doutor particular, foi capaz de errar por um tipo de ignorância, mas nunca foi capaz de cair ou ensinar heresia.” [ibidem].

Depois de citar o texto em que São Belarmino concorda com a opinião de Albert Pighius, o Bispo Gasser concluiu dizendo “é evidente que a doutrina no Capítulo proposto [do Pastor Aeternus] não é a de Albert Pighius ou a opinião extrema de qualquer escola…” [ibidem]

O Cardeal Camilo Mazzella (1833-1900), que serviu como Prefeito das Congregações do Índice, dos Estudos e dos Ritos, abordou diretamente o mesmo ponto. Ele escreveu:

“(…) uma coisa é que o Romano Pontífice não pode ensinar uma heresia ao falar ex cathedra (o que definiu o concílio do Vaticano); e outra coisa é que ele não pode cair em heresia, isto é, tornar-se um herege como pessoa privada. Sobre esta última questão o Concílio nada disse, e os teólogos e canonistas não estão de acordo entre si a respeito dela”. [3]

Isto explica porque o manual dogmático de Mons. Van Noort, que foi publicado muitas décadas depois do Concílio, observou que “alguns teólogos competentes admitem que o Papa, quando não fala ex cathedra, poderia cair em heresia formal.” [4] Claramente, nem Mons. Van Noort, nem os outros “teólogos competentes” aos quais ele se refere, consideraram este ensino em desacordo com o Capítulo IV da Pastor Aeternus.

Também o Cardeal Billot [5] e o Pe. Garrigou-Lagrange [6] disputaram sobre a tese do papa herético. Isso ocorreu em pleno século XX, muito depois da promulgação da Pastor Aeternus. Não faria sentido algum ambos terem considerado a hipótese teológica de um papa ser ou não herege, se o assunto já tivesse sido encerrado no Concílio Vaticano I.

 

NOTAS

 

[1] Site Católicos Sempre. 308ª Nota – O Papa é aquele cuja Fé não pode falhar. Disponível em 

https://diario-de-um-catolico.blogspot.com/2017/07/308-nota-o-papa-e-aquele-cuja-fe-nao.html. Último acesso em 28/11/2023.

 

Veja também: James Larson. The Sifting: The Never-Failing Faith of Peter. Disponível em http://waragainstbeing.com/parti/article21/. Último acesso em 28/11/2023.  

 

[2] Rev. James T. O’Connor, The Gift of Infallibility (San Francisco, California: Ignatius Press, 1986), p. 58.  

 

[3] Card. C. Mazzella, De religione et Ecclesia, Sixth Edition, (Prati: Giachetti, filii et soc., 1905), p. 817, n. 1045.  

 

[4] Van Noort, Gerard – Christ’s Church – Westminster, Maryland: Newman Press, 1961, p. 294.  

 

[5] Tractatus de Ecclesia Christi, 1909, tomus I, pp. 617-618, apud SILVEIRA, 2022, pp. 37-39.

 

[6] LAGRANGE, Garrigou. De Christo Salvatore. Disponível em https://archive.org/details/GarrigouLagrangeLatin/De%20Christo%20Salvatore%20-%20Garrigou-Lagrange%2C%20Reginald%2C%20O.P_/page/231/mode/2up. Último acesso em 10/11/2023. 



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