Nem sempre a Igreja exerce o seu Magistério solene ou ordinário universal, e por conseguinte, nem sempre assiste-lhe garantia absoluta de não errar. O Papa raramente fala ex cathe-dra; entretanto ensina diariamente, já por exortação ou cartas a indivíduos, grupos, nações, já por documentos destinados à Igreja universal: encíclicas, decisões doutrinais das Congregações romanas (Como a fala ex cathedra é denominada magistério extraordinário, chama-se a fala não ex cathedra de magistério ordinário cf. Humani Generis, n. 19. Donde certa ambiguidade, pois este magistério ordinário – o Papa falando isoladamente, sem intenção de definir – é falível; enquanto o magistério ordinário universal-(o Papa falando conjuntamente com os Bispos não reunidos em concílio- é tão infalível quanto o magistério extraordinário).
Quanto a estas últimas, é de notar que são infalíveis, logo irreformáveis, quando o Papa rara vez as faz pessoalmente suas (Assim Pio X avalizou por motu próprio o decreto Lamentabili do Santo Ofício cf. Denz. 2065a, 2114). Aprovadas porém, na forma comum, não são absolutamente isentas de erro, logo, podem vir a ser reformadas. (Pelo que, combatem contra moinhos de vento, os que opõem à infalibilidade papal, a condenação de Galileu).
Comporta assim o tesouro da doutrina católica enorme acervo de verdades que não são objeto de fé divina. Umas delas poderão vir a ser definidas e por isso sói-se dizer de algumas, que estão próximas da fé; por ex.: Maria é medianeira de todas as graças outras jamais poderão sê-lo; por ex.: as aparições de Lourdes.
Como é sabido, a Igreja, além do dogma, ensina também a moral. Cabe aqui igualmente a distinção entre magistério infalível (por ex.: a Igreja pregando o decálogo, definindo que o celibato religioso é mais perfeito do que o estado conjugal cf. Denz. 981) ; e o magistério não infalível; por ex.: nas grandes Encíclicas dos últimos Papas, sobre a questão social ou contra os totalitarismos, temos grande número de verdades morais ou sociais, ou de erros condenados, sem intenção de definir irrevogàvelmente.
O fato de não ser este ensino absolutamente garantido contra o erro, não significa que esteja eivado de falsidade. Muita vez pode até ser considerado praticamente infalível, por ex.: a condenação do aborto médico, da esterilização, da inseminação artificial.
A diferença entre os dois tipos infalível ou não de Magistério provém da autoridade em virtude da qual ensina. No primeiro caso, é a autoridade imediata de Deus; a Igreja age apenas como porta-voz, transmite-nos fielmente a palavra revelada (2 Cor 5, 20). No segundo, é a autoridade imediata da Igreja, em virtude de seu poder pastoral sobre seus filhos. Sem dúvida, tal poder, a Igreja recebeu-o de Deus, porém a autoridade divina intervém apenas relativamente, como fonte e guia da autoridade da Igreja.
À primeira doutrinação deve corresponder, de nossa parte, a obediência da fé cristã (2 Cor 10, 5); ao segundo, o assentimento interno, fruto de uma submissão religiosamente filial.
Com efeito, o ensinamento não infalível da Igreja é também assistido pelo Espírito Santo, embora não de maneira absoluta. Muito se enganaria, pois, quem cuidasse que ele nos deixa intei-lamente livres de assentir ou de discordar.
Não obrigar sob pena de heresia, está longe de equivaler a não obrigar de todo, conforme ensina o Concílio do Vaticano: Não bastaria evitar a perversão da heresia, se não fugíssemos ainda diligentemente os erros que dela se aproximam mais ou menos (cf. Denz., n. 1820; Código de Direito Canônico de 1917, n. 1324; Pio XII, Humani Generis, n.17). Pio X condenou os que pretendiam eximir de qualquer culpa moral quem não levasse em conta as censuras decretadas pelas Congregações romanas (cf. Denz., n. 2008; cf.1684, 1698, 1722). Cabe à Igreja não só propor a verdade revelada, como ainda mostrar o que direta ou indiretamente a ela leva ou dela afasta.
Nem basta acolher este ensinamento com um silêncio respeitoso; impõe-se uma adesão intelectual (cf. Denz. 1350, 2007). Dando-a, nossa piedade filial se curva a Cristo, que conferiu autoridade sobre nós a sua Esposa.
Assim, embora esta modalidade de ensino não esteja garantida, de maneira absoluta, contra o erro, sempre acertamos, aceitando-a com docilidade, porque rendemos homenagem ao Senhor Jesus, nosso Mestre.
À primeira vista, parece estranha essa adesão interna a uma doutrina, afinal de contas, passível de reforma. Guarde-se silêncio: é questão de disciplina; mas, que se dê assentimento verdadeiro, espanta.
Atentemos todavia em que, frequentes vezes, um sábio admite, como cientificamente certas, doutrinas que, mais tarde, novas descobertas obrigá-lo-ão a abandonar. Nem essa atitude se lhe afigura incoerente. Com efeito, ao assentir, o sábio subentendia uma condição: certa no estado atual da ciência. De modo semelhante, quando o Santo Ofício ou a Comissão bíblica publicam um decreto com sanção pontifícia, devemos admitir-lhe a doutrina como certa no estado atual da teologia, ou da exegese católicas. Com o progredir da meditação, é possível que ela apareça não apenas certa senão divinamente revelada; possível também que venha a ser abandonada. Tais possibilidades remotas não tornam o nosso assentimento atual imprudente ou ilógico, porque não é incondicional. E não é incondicional porque a Igreja não propõe toda verdade como de fé.
O silêncio respeitoso liga somente a língua e a pena; rompê-lo implica malícia da vontade que se não submete; a adesão interna liga também a inteligência conquanto não absolutamente; negá-la implica temeridade intelectual. Todavia, como a decisão romana, no caso, não é irreformável, será lícito ao teólogo ou ao exegeta que encontrassem porventura novos e fortíssimos argumentos, propô-los com a devida reverência. O que já sucedeu, sobretudo em matéria de interpretação bíblica.
Maior ou menor será a obrigação de aderir, segundo a Igreja urgirá mais ou menos a aceitação da verdade, a repulsa ao erro. As decisões doutrinais das Congregações Romanas, válidas para o orbe católico, obrigam muito mais, por exemplo, do que as exortações papais a grupos de peregrinos.
Por vezes, não se trata, propriamente, de docilidade, mas antes de prudência. Ao terminar a Encíclica Pascendi, Pio X adverte no que toca ao culto de relíquias ou à crença em aparições, que, da permissão eclesiástica ainda não segue que a Igreja tenha o fato por verdadeiro, mas apenas não proíbe que se lhe dê crédito, uma vez que para isto não faltem argumentos humanos. Foi isso precisamente o que, há trinta anos, a Sagrada Congregação dos Ritos declarou: Essas aparições ou revelações não foram aprovadas ou condenadas pela Santa Sé, foram apenas aceitas como merecedoras de piedosa crença, com fé puramente humana, em vista da tradição de que gozam, também confirmada por testemunhas e documentos idóneos (cf. Enc. Pascendi, 57).
Mas então terá cada fiel que se improvisar historiador, arqueólogo, médico ou psicólogo, para criticar a aparição, ou discutir a autenticidade da relíquia? De todo. Vale aqui, proporcionalmente, o que mais alto dizíamos das decisões doutrinais não infalíveis: aceitando-as, o fiel sempre acerta sobrenaturalmente. O culto de uma aparição ou relíquia se dirige, primordialmente, às mesmas pessoas dos Santos a quem honramos, e estas não podem ser nem ilusórias, nem falsas.
PENIDO, Pe. Dr. Maurílio Teixeira-Leite. O Mistério da Igreja. Petrópolis: Ed. Vozes, 1956. Pg 293-297.