- Autor: Cardeal Jorge Urosa Savino, Arcebispo Emérito de Caracas
- Fonte: https://www.infocatolica.com/?t=ic&cod=35934
- Tradução: Carlos Martins Nabeto
Esta terceira [e última] parte dos comentários sobre o Instrumentum Laboris do Sínodo Pan-Amazônico estuda a Terceira Parte do texto, ou seja, “A Igreja profética na Amazônia: desafios e esperanças”. E especialmente algumas das propostas pastorais.
Uma observação importante: é surpreendente que as respostas e indicações das consultas feitas aos fiéis da Amazônia falem pouco da situação especificamente religiosa, pastoral e eclesial das missões amazônicas. Da mesma forma, é surpreendente que a maioria dos comentários sobre o Sínodo feitos recentemente pelos eclesiásticos ligados à sua preparação atinja apenas ou principalmente o aspecto ecológico e os problemas de ordem social e econômica dos povos da Amazônia. Essa parece ser a coisa mais importante para a Igreja. Eles tocam pouco o aspecto religioso e espiritual da missão da Igreja para anunciar a Palavra e comunicar os dons de Cristo à humanidade. O Instrumentum Laboris também dá essa impressão. No próprio Sínodo, isso deverá ser corrigido e a centralidade da ação evangelizadora e pastoral para a revitalização da Igreja no Amazonas deve ser destacada.
Outra observação interessante: o Instrumentum Laboris parece pensar que toda a população da Amazônia é indígena, originária. Isso é verdade? Não, pelo menos na Venezuela. Nas dioceses já estabelecidas em nossa região amazônica – não nos vicariatos – há uma maioria de crioulos, venezuelanos de raça branca ou mulata e afrovenezuelanos que não possuem essa cultura indígena. O mesmo acontece com Manaus e Belém, no Brasil.
OPÇÃO PELOS POBRES E INCULTURAÇÃO
O documento recorda, com razão, a opção pelos pobres como linha de ação e demanda da Igreja da América Latina e da Amazônia. Bento XVI disse em Aparecida que “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós para nos enriquecer com sua pobreza” (discurso de Sua Santidade na inauguração da V Conferência Geral da Episcopado da América Latina e do Caribe 3).
Por outro lado, o texto sublinha a missão evangelizadora da Igreja como algo realizado ao longo dos séculos e que é atual e premente (IL 115). E para realizá-lo hoje na Amazônia, o IL propõe uma conversão pastoral e missionária (IL 119). Isso, entre outras coisas, implicaria “capturar o que o Espírito do Senhor ensinou a esses povos… fé no Deus Pai-Mãe Criador… o relacionamento vivo com a natureza e a Mãe Terra (fazendo uma distinção entre essas duas ideias?, ritos e expressões religiosas, e o sagrado senso de território…” (IL 121). Ele também propõe reconhecer a espiritualidade indígena como fonte de riqueza para a experiência cristã (IL 123/b). São expressões que, para quem não conhece seu significado, parecem muito estranhas e alheias à fé católica sobre a realidade criada e sua relação com o ser humano. E parecem evocar um tipo de sincretismo cristão-animista. Isso seria inaceitável. Nesse sentido, esperamos que os Padres Sinodais esclareçam isso e discernam as propostas que realmente se enquadram na fé católica na criação e na natureza. Na mesma linha de conversão pastoral, fala-se da inculturação da fé, mas dando valor quase absoluto às culturas originárias e não valorizando ou propondo a evangelização da cultura. Esta é a transformação necessária da existência humana e da vida religiosa, social, cultural e familiar dos povos através do Evangelho de Cristo e da moral bíblica, cristã e católica. É um ponto que precisa ser revisto e aprimorado.
Estas propostas do IL se juntam à sugestão de uma liturgia inculturada, isto é, adaptada à mentalidade e tradições dos povos, conforme sugerido pelo documento “Sacrosanctum Concilium” do Concílio Vaticano II (37-40). Neste campo, teremos que ver em concreto durante o Sínodo o que se pode sugerir em termos de uma “descentralização saudável da Igreja” (IL 126/d). E claro, sempre preservando a integridade da fé, a natureza de cada sacramento e as condições e requisitos para uma participação viva e frutuosa na sagrada liturgia.
ORGANIZAÇÃO, SERVIÇOS PASTORAIS E SACERDÓCIO
Na busca de novos caminhos para a vida da Igreja, o Instrumentum Laboris está interessado na organização da comunidade e nos serviços pastorais (IL 127). Nesse sentido, ele propõe reconsiderar a ideia de que o exercício da jurisdição (poder de governo) deva estar vinculado em todas as esferas – sacramental, judicial, administrativa – e de maneira permanente ao sacramento da ordem. Em outras palavras, parece propor que essas funções possam ser exercidas nas comunidades indígenas por pessoas diversas, não-ordenadas sacramentalmente.
Aqui, novamente, teremos que ver exatamente o que essa proposta significa, porque as faculdades religiosas, espirituais e pastorais dos bispos e presbíteros não são funções diversas de um operador pastoral, de um “funcionário”. Elas são a expressão do Ministério e Ofício (Munus) sacerdotal do bispo e presbítero, configurados estes a Cristo Sumo e Eterno Sacerdote pelo sacramento da ordem. São ações de Cristo, que está presente no bispo e presbítero com ordenação sacramental. São poderes conferidos e concedidos no sacramento da ordem. Esses poderes não são atividades cumulativas ou separadas atribuídas a uma pessoa por um documento ou ato jurídico ou administrativo, uma nomeação… ou o que for. Essas faculdades pastorais, sacramentais, judiciais e magisteriais são a atuação do representante sacramental de Cristo sacerdote, profeta e rei. O sacerdote é sacramento-pessoa de Jesus, um homem configurado pela ordenação sacerdotal a Cristo, bom pastor e sumo e eterno sacerdote, a serviço e benefício do santo povo de Deus. Essas faculdades – exceto a administração material, não o governo pastoral – não são funções que possam ser delegadas isoladamente. São conferidos apenas com a ordenação sacramental. Portanto, uma concepção funcionalista do sacerdócio não está correta; não corresponde à concepção do sacerdócio como participação nos três “Munera Christi”: sacerdote, profeta e rei.
ORDENAÇÃO DE ANCIÃOS CASADOS
Na aspiração muito necessária e desejável de uma maior presença pastoral, isto é, de uma presença pastoral e não de uma visita (IL 128), também é proposta a ordenação sacerdotal de idosos (IL 129/a/2). Um detalhe: o texto não usa o conhecido e popular termo “viri probati – homens de virtude comprovada”; utiliza a expressão “anciãos” e deixa em aberto a possibilidade da ordenação sacerdotal das mulheres. Não vamos considerar esta segunda possibilidade, já abertamente descartada repetidamente por São Paulo VI e São João Paulo II e ainda recentemente pelo Papa Francisco. Vamos ouvir diretamente São João Paulo II:
– “4. Embora a doutrina da ordenação sacerdotal, reservada apenas aos homens, seja preservada pela constante e universal Tradição da Igreja, e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, contudo, em nossos dias e em vários lugares, é considerado discutível, ou mesmo um valor puramente disciplinar é atribuído à decisão da Igreja de não admitir mulheres para tal ordenação. Portanto, para tirar qualquer dúvida sobre uma questão de grande importância, que diz respeito à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar na fé os irmãos (cf. Lucas 22,32), declaro que a Igreja não tem poder para conferir ordenação sacerdotal às mulheres e que essa opinião deve ser considerada definitiva por todos os fiéis da Igreja” (São João Paulo II, Carta Apostólica “Ordinatio Sacerdotalis”, 1994).
É por isso que nos limitaremos aqui a refletir sobre a possibilidade de conferir o presbiterato a homens idosos casados.
O texto afirma claramente a validade da disciplina do celibato sacerdotal como um presente para a Igreja. Muito bem: de fato, imitando Cristo, celibatário e esposo da Igreja, os sacerdotes do rito latino e muitos também das igrejas orientais, escolhemos livremente consagrar nossas vidas a Deus e à Igreja; por isso, renunciamos ao casamento e nos comprometemos religiosamente a Deus para a experiência de perfeita castidade. Algo que se enquadra perfeitamente com a natureza do sacerdócio, que é a configuração a Cristo, sumo e eterno sacerdote e bom pastor.
É claro que a questão de ordenar idosos casados é uma questão de disciplina, conveniência religiosa e pastoral, e exige pesar prós e contras. Não é um dogma de fé. Sem dúvida, poderiam ser ordenados. Mas seria necessário pensar que tipo de sacerdotes seriam: de segunda classe? Semelhantes aos famosos “curas simplex” do passado [=sacerdotes que podem consagrar a Missa e dar de comer aos pobres, mas não pode ouvir confissões]? Como eles se preparariam? Os diáconos permanentes requerem uma preparação séria, geralmente no mínimo 4 anos; e depois não andam sozinhos, agindo geralmente em colaboração com um bispo ou padre. Como seria essa preparação? E qual seria o seu ministério? Apenas celebrar os sacramentos? De quem eles dependeriam, ou seja, quem seria seu superior imediato? Não haveria conflitos entre esses padres sacramentalistas mais velhos e os padres ou vigários da paróquia episcopal? Como seria seu regime econômico ou administrativo, ou seja, quem os sustentaria em dioceses ou vicariatos de extrema pobreza?
Por outro lado, a ordenação de padres casados em comunidades indígenas não os coloca em uma espécie de terreno fechado. As terras da missão são vizinhas de Dioceses já estabelecidas. E os padres casados idosos não deixariam de mudar para outros lugares. Como combinar padres casados em Missões com celibatários na diocese vizinha? E depois: essa abertura disciplinar estaria limitada apenas à Amazônia? Isso não enfraqueceria o sacerdócio celibatário no resto do mundo? Há muitas perguntas sérias sobre a ordenação desses bons anciãos casados. E talvez não resolveria os problemas atuais. Eu não acho [essa proposta] conveniente ou útil.
Acredito que a solução para a atenção das comunidades reside numa maior atividade evangelizadora e santificadora, para fortalecer a vida de fé nessas comunidades cristãs sem padres. O ministério de evangelização e vocação trabalha a médio e longo prazos. Já vimos isso na Venezuela. Não há dúvida de que o trabalho de nossos queridos missionários foi e é magnífico, sacrificado, digno de todo respeito, reconhecimento e louvável. É por isso que devemos estudar por que razão a pregação evangélica e o trabalho missionário não produziram mais frutos nas comunidades indígenas, incluindo as vocações indígenas ao sacerdócio ou à vida consagrada. Ora, ordenar sacerdotes a bons anciãos de função meramente litúrgica dará o impulso necessário à vida da Igreja? Há muitas perguntas que devem ser respondidas. Além disso, a questão dos anciãos casados chamados ao sacerdócio é importante e séria demais para um Sínodo regional resolver para a Igreja universal.
OUTROS MINISTÉRIOS
Outra proposta do texto para fortalecer o trabalho pastoral na Amazônia é também um ministério oficial para as mulheres (129/a/3). Atualmente, em toda a Igreja, as mulheres já têm vários ministérios: leitoras, servas do altar da Eucaristia, ministras extraordinárias da Comunhão, catequistas. E também exercem outras funções diversas de grande importância nas escolas, na administração diocesana ou paroquial, na mídia eclesial e nos centros de saúde da Igreja, como assistentes sociais, etc. Teremos que ver o que aqueles que propõem este novo ministério oficial têm em mente. E o Papa Francisco já se pronunciou contra o diaconato feminino. Vamos ver o que acontece no Sínodo…
A vida consagrada é com justiça bem apresentada no Instrumentum Laboris (IL 129/d). Com muita entrega e dedicação, as irmãs e irmãos de vida consagrada estão fazendo um belo trabalho na Amazônia. Que eles continuem e reforcem o aspecto especificamente evangelizador e religioso de seu trabalho, para promover e revitalizar a vida da Igreja naquele território.
CONCLUSÃO
Às vésperas do Sínodo, levantamos nossas orações ao Senhor, porque ele derrama seu Espírito Santo abundantemente sobre os Padres sinodais. Eles terão a tarefa de indicar as novas maneiras de revitalizar a Igreja, bem como proteger os povos da Amazônia e seu território, e para uma correta conversão ecológica. Tudo isso é muito importante.
Para isso, este Sínodo deve abraçar os pontos fortes do Instrumentum Laboris e necessariamente superar suas falhas e omissões, para promover um trabalho cada vez mais evangelizador e revitalizante da Igreja, não apenas na Amazônia, mas em todo o mundo.
Que a Santíssima Virgem Maria, mãe de Deus e nossa mãe, abençoe e anime todos os amados e esforçados missionários da Amazônia: Bispos e sacerdotes, diáconos, consagrados e apóstolos leigos, elas e eles. Muitíssimo obrigado por este trabalho tão belo e sacrificado! Que eles continuem na bela missão apostólica da Igreja de anunciar com força e entusiasmo a Jesus Cristo a todos os habitantes da Amazônia. Ele é o único em cujo nome temos redenção e perdão dos pecados (cf. Colossenses 1,14). Amém.
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NOTA DE ESCLARECIMENTO DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR
O Sínodo dos Bispos é uma assembleia de Bispos que, escolhidos das diversas regiões do mundo, reúnem-se em determinados tempos para promover a estreita união entre o Romano Pontífice e o Episcopado, para auxiliar o Romano Pontífice com seu conselho, na preservação e crescimento da fé e dos costumes, na observância e consolidação da disciplina eclesiástica e, ainda, para examinar questões que se referem à ação da Igreja no mundo (CDC 342).
A Constituição Dogmática “Episcopalis Comunio”, do Santo Padre, o Papa Francisco, no art. 1º define os tipos de assembleia possíveis. Mais precisamente no parágrado 2º, o item 3º diz que o Sínodo pode consistir “em Assembleia Especial, se se tratam de assuntos concernentes principalmente a uma ou mais áreas geográficas concretas” (CDC 345): este é exatamente o caso do Sínodo dos Bispos para a Amazônia.
O Sínodo é antecedido, porém, por um documento preparatório e um Instrumento de Trabalho (Instrumentum Laboris), ambos preparados pela Secretaria do Sínodo dos Bispos, um órgão da Santa Sé. Embora sejam documentos oriundos dos órgãos vaticanos, não fazem parte do Magistério Eclesial, seja Ordinário ou Extratordinário; são apenas documentos que pretendem orientar as Sessões do Sínodo e podem até mesmo ser desprezados total ou parcialmente pelo Romando Pontífice, como ocorreu por ocasião da realização do Concílio Vaticano II.
Desta forma, quando criticamos respeitosamente o conteúdo desses documentos anteriores à realização do Sínodo, não estamos agindo como juízes do Sagrado Magistério e, muito menos, do Santo Padre o Papa; estamos apenas exercendo o nosso DEVER de fiéis em zelar pela Fé Católica, exortando-nos mutualmente para o Bem de toda a Santa Igreja (cf. Hebreus 3,13-15).