Os manuscritos do Mar Morto

– “Os manuscritos recém descobertos junto ao Mar Morto parecem indicar que a figura do Divino Mensageiro existiu entre os essênios muito antes do nascimento de Jesus. Os principais acontecimentos da vida de Cristo se terão desenrolado, por conseguinte, antes do advento do Cristianismo…” (M.P.C. – Rio de Janeiro-RJ).
– “Os manuscritos do Mar Morto trouxeram alguma luz sobre a vida de Jesus, dos doze aos trinta anos?” (A.A.M.L. – Recife-PE).

Para se responder devidamente a estas questões, deve-se primeiramente recordar:

1. A procedência e o conteúdo dos manuscritos

A partir de 1947 estão sendo descobertas e exploradas a Noroeste e Oeste do Mar Morto (Palestina) grutas que, em profusão surpreendente, contêm manuscritos da Sagrada Escritura e de obras de piedade inspiradas pela mentalidade judaica antiga. Encontraram-se também em localidade nomeada Qumran (na mesma região) os destroços de vasta habitação humana, autêntico mosteiro judaico, no qual se identificaram uma ampla sala de leitura, um escritório comum, um refeitório, uma dispensa, cozinha, aquedutos etc., e um cemitério, onde jazem cerca de 1100 cadáveres, na maioria de varões (poucas mulheres e crianças — o que é indício da vida geralmente celibatária dos habitantes da região).

Depois de haver lido e analisado cuidadosamente os principais documentos achados em Qumran (manuscritos, moedas, cerâmica), os arqueólogos podem hoje, com certa segurança, reconstituir nos seguintes termos a história que os concerne:

No séc. II a.C. (sob o chefe judeu Jônatas Macabeu (160-142?) ou sob João Hircano (134-104?) ou sob Alexandre Janeu (103-76?), um grupo de sacerdotes e fiéis israelitas se retiraram para o deserto de Qumran, a fim de levar uma vida toda dedicada à oração e ao trabalho; julgavam não poder coexistir com seus correligionários em Jerusalém, pois a fé dos dirigentes de Israel lhes parecia contaminada pelo espírito mundano helenista. Queriam preparar na solidão o reino de Deus, o qual devia irromper chefiado por dois Cabeças: o “Messias de Aarão” que, representando o sacerdócio, estaria encarregado de ensinar a Palavra de Deus e promulgar a Nova Lei, e o “Messias de Israel”, ao qual tocaria o poder régio de Davi.

Esse grupo de homens piedosos (que os eruditos geralmente identificam com os Essênios, dos quais falam historiadores judaicos antigos) era inicialmente dirigido por um sacerdote intitulado o “Mestre de Justiça”, intérprete das Escrituras Sagradas, o qual ensinava aos seus discípulos que se afastassem da vida pagã e renovassem sua fidelidade à Lei de Moisés. O Mestre de Justiça tinha por antagonista um personagem de Jerusalém, chamado nos manuscritos de Qumran “o Sacerdote Ímpio”, o qual se esquecera da Lei de Deus; o malvado chegou a ir a Qumran, tentando vencer a resistência passiva dos dissidentes. Seus esforços, porém, foram baldados; ele, o tirano (e não o Mestre de Justiça), foi aprisionado pelos gentios, que o condenaram à morte.

Os essênios de Qumran, para nutrir sua piedade, dispunham, como se entende, de boa biblioteca, integrada pelos livros da Sagrada Escritura, comentários dos mesmos (entre os quais se distingue o “Comentário ao Profeta Habacuc”), uma Regra de vida comunitária ou “Manual de Disciplina”, textos de cânticos, hinos a Deus, livros apócrifos… Em suma, cerca de seiscentos manuscritos foram até hoje encontrados na região do Mar Morto (e crê-se com razão que ainda há novo material por descobrir), dos quais uma quarta parte apresenta textos bíblicos. Os principais desses documentos foram escritos ou copiados na época em que os essênios se estabeleceram no mosteiro de Qumran, ou seja, nos séc. II/I a.C.; em consequência, o mundo possui hoje manuscritos bíblicos mil anos mais velhos do que os mais antigos até há pouco conhecidos (o confronto entre uns e outros evidencia fidelidade surpreendente na transmissão do texto sagrado).

Aconteceu, porém, que em 68 d.C., quando os exércitos romanos assolavam a Palestina, apressando-se a tomar Jerusalém, os monges essênios julgaram oportuno abandonar o mosteiro. Então, para pôr os livros a salvo, ocultaram-nos nas grutas dos arredores, esperando poder retirá-los logo depois de passada a borrasca. Não conseguiram, porém, voltar, de sorte que a partir de 68 d.C. a região de Qumran foi habitada por tropas militares, romanas ou judaicas, e desde 135 está praticamente abandonada. Quanto aos manuscritos, permaneceram até 1947 inexplorados nas suas cavernas.

Eis o histórico do importante material de Qumran. Interessa-nos agora considerar:

2. O significado dos manuscritos para a interpretação do Novo Testamento

Antes do mais, qual seria a espiritualidade que se exprime nos documentos do Mar Morto ?

Como indica o histórico dos essênios, é uma espiritualidade religiosa muito férvida. Os habitantes de Qumran viviam na expectativa ardente da vinda do Reino de Deus; julgavam ser eles os únicos israelitas incontaminados, os filhos da luz em meio aos filhos das trevas. O seu isolamento topográfico no deserto significava também isolamento de espírito; em virtude de sua mentalidade estreita, particularista, não queriam intercâmbio com os moradores das cidades (neste ponto iam, pois, muito mais longe do que os fariseus). Ao lado disto, porém, nutriam concepções religiosas bastante elevadas, estimando os bens invisíveis, a vida eterna e afastando-se do ideal de um messianismo político; os maus, para eles, não coincidiam propriamente com os romanos ou pagãos, mas com os seus compatriotas representantes da religião oficial de Israel, os quais lhes pareciam pactuar com os costumes pagãos.

Este fundo de ideias já nos dá a ver que entre os essênios e os cristãos há pontos de contato como há pontos de divergência.

2.1. Comecemos por analisar estes últimos.

a) A mentalidade essênia ou a mentalidade apregoada pelo Mestre de Justiça parte de um pressuposto bem diferente do que Cristo apregoa. Ao passo que o Mestre de Justiça se sequestrava no deserto com seu grupo de discípulos para evitar o contato com os homens imundos, Jesus fazia questão de comer com os pecadores, de dizer que viera salvar as ovelhas perdidas (que não são os sadios, mas os doentes, que precisam de médico; cf. Marcos 2,16; Lucas 5,30). Fazendo isto, destoava dos fariseus e os escandalizava; muito mais teria escandalizado os essênios, cuja Regra mandava “odiar todos os filhos das trevas” (I. 10); Cristo pregava o amor extensivo até mesmo aos inimigos (cf. Mateus 5,44; 22,40). Por conseguinte, já se vê que vão seria querer fazer de Jesus uma “segunda edição” do Mestre de Justiça ou um discípulo dos essênios, um continuador da mentalidade destes.

Outros tópicos concorrem para realçar as diferenças:

b) Ao passo que o Mestre de Justiça aguardava o fim dos tempos e a instauração do Reino de Deus, por obra de dois Messias, Jesus tinha consciência de ser o Messias pelo qual estas realidades se iniciaram no mundo: “Eu sou o Messias, que te falo” (João 4,26); “É agora o julgamento do mundo” (João 12,31); “O Reino de Deus está em meio a vós” (Lucas 17,21).

c) Além disto, o Mestre de Justiça afirmava repetidamente sua distância em relação a Deus, confessando-se indigno pecador; Jesus, ao contrário, não manifestava em absoluto a consciência de pecado (cf. João 8,46). Ele mesmo perdoava as culpas com desassombro, provocando voluntariamente a admiração dos fariseus, que exclamavam: “Quem pode perdoar os pecados se não Deus?” (Marcos 2,7). Se a consciência do pecado é a marca dos Santos, a falta desta consciência em Jesus, que não obstante possuía uma alma profundamente religiosa, constitui um enigma para quem O observa à luz da mera razão.

d) Em Jesus não se encontram vestígios do esoterismo ou ocultismo que caracterizava os Essênios em geral. Nada há de mais oposto à ideologia de Cristo do que uma iniciação reservada a poucos; Ele mesmo pregou às claras, em público, e mandou aos discípulos anunciassem sobre os telhados o que tivessem ouvido em cubículos (cf. Mateus 10,26-27; João 18,20).

2.2. Apesar de todas estas divergências de mentalidade, há quem diga que Jesus foi discípulo dos essênios no período que vai dos doze aos trinta anos de idade; teria então vivido no deserto ou no monte Carmelo, iniciando-se no esoterismo… Sem dúvida, os manuscritos do Mar Morto não somente não oferecem base para esta hipótese, mas, como se depreende das comparações acima, levam a rejeitá-la. Por seu lado, o texto do Evangelho é contrário a tal suposição, pois refere que, quando Jesus começou a pregar em Nazaré, sua pátria, os seus concidadãos exclamavam:

– “Qual é essa sabedoria que lhe foi dada e que grandes milagres são esses que se fazem por suas mãos? Não é esse o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E suas irmãs não habitam conosco?” (Marcos 6,2-3).

Como se vê, os conterrâneos de Jesus conheciam perfeitamente sua identidade; sabiam o que fizera até se manifestar em público: fora carpinteiro, bem notório a eles; daí a surpresa que experimentaram, quando de seus lábios ouviram uma sabedoria não adquirida em escola humana.

Contudo, os fautores da identidade entre Jesus e o Mestre de Justiça (nomeadamente Wilson e Allegro) julgam, poder apelar para analogias, que eis aqui:

a) O Mestre de Justiça pregava como Doutor inspirado, reagindo contra o falso espírito religioso de seu povo; em consequência, sofreu perseguição por parte dos dirigentes da nação. Nestes pontos coincide com Jesus Cristo.

– Não consta, porém, que haja sido condenado à morte; ao contrário, os textos de Qumran dizem que “se reuniu a seus pais” — expressão que designa a morte tranquila dos Patriarcas. Em parte alguma é anunciada a sua ressurreição. Quanto à sua volta no fim dos tempos para julgar o mundo, só pode ser defendida na base de contestáveis interpretações dos textos. Numa reflexão serena, verifica-se que os traços característicos do Mestre de Justiça coincidem com os que os israelitas atribuíam a Elias e aos Profetas; só o assemelham a Jesus na medida em que Jesus se assemelhou aos Profetas.

b) Os monges de Qumran, distanciando-se um tanto do judaísmo oficial, celebravam uma ceia sagrada à noitinha, em que consumiam pão e vinho bentos. Essa refeição era considerada a antecipação do banquete a que o Messias de Aarão havia de presidir no fim dos tempos. Ora, Jesus – dizem – celebrou ceia análoga com seus discípulos e mandou repeti-la em seu nome…

– Para avaliar o significado de tal analogia, tenha-se em vista que ceias sagradas são rito muito frequente no culto religioso como tal. Além disto, note-se que, apesar da semelhança de ritual, Cristo deu à Ceia cristã (eucarística) um sentido novo: sentido de consumação em relação à ceia essênia; afirmou, sim, que o pão e o vinho são a sua própria carne e o seu sangue imolados em sacrifício para selar uma nova e definitiva Aliança de Deus com os homens, em substituição da Aliança travada por intermédio de Moisés; os essênios em absoluto não tinham a ideia de um sacrifício redentor do Messias, muito menos a ideia de participar desse sacrifício mediante uma ceia sacramental. Sendo assim, reconhecer-se-á que o gesto de Cristo na última ceia podia ter uma força de evocação muito particular para os seus discípulos, pois não era inédito em seu aspecto exterior; era, porém, portador de realidade totalmente nova…

Consequentemente a tais observações, não há em nossos dias exegeta de autoridade que, com base nos manuscritos de Qumran, queira identificar Jesus com o Mestre de Justiça ou com um essênio. O autor que é tido como protagonista desta tese, A. Dupont-Sommer, apenas fez insinuá-la de longe, nunca, porém, a propôs como tal. Eis o que ele mesmo declarava em uma de suas últimas obras (“Nouveaux aperçus sur les manuscrits de la Mer Morte”, Paris, 1956, pp.206-207):

– “Eu esboçara um ligeiro paralelismo que visava despertar a curiosidade do leitor, sem pretender de modo algum solucionar, por meio de simplificação excessiva, um problema dos mais complexos (…) Seja-me lícito lembrar o inicio: ‘O Mestre Galileu, tal como no-lo apresentam os escritos do Novo Testamento, aparece sob mais de um aspecto como surpreendente reencarnação do Mestre de Justiça’. Ao passo que eu me exprimia com cautelas intencionais, os meus leitores suprimiram as palavras essenciais, atribuindo me a seguinte frase: ‘Jesus não é mais do que surpreendente reencarnação do Mestre de Justiça!’ Isto implica confundir ‘ser’ e ‘parecer’; implica deixar de lado uma precisão importante; quem diz ‘sob mais de um aspecto’ não dá a entender que a semelhança não é total?”.

c) Passando agora aos escritos do Novo Testamento, verificaremos que entre eles e os documentos de Qumran há expressões e vocábulos paralelos; chama a atenção principalmente a metáfora de “luz e trevas” para designar a Verdade (ou a Vida) e o erro (ou a morte); cf. Lucas 16,8; João 3,19-21; 12,35-36; 2Coríntios 6,14-17; Colossenses 1,12.

– Até o início do nosso século sustentavam alguns eruditos que o Evangelho de São João e as epístolas de São Paulo adulteraram a mensagem de Jesus, estritamente vasada nos moldes do Antigo Testamento, pois ousaram mesclar-lhe ideias e expressões oriundas do mundo helenista pagão; alguns, por isto, chegavam a denegar ao Apóstolo São João a autoria do quarto Evangelho, julgando que um judeu nunca teria podido escrever em moldes tão helenistas. Ora, o conhecimento dos textos de Qumran permite hoje dizer que precisamente os escritos joaneus e paulinos são os que mais afinidade de temas e vocabulário apresentam com o Judaísmo. Todavia, semelhança não implica necessariamente dependência; pode-se mesmo dizer que não há tema ou vocábulo comum aos documentos do Mar Morto e do Novo Testamento que não esteja germinalmente contido em algum dos escritos mais antigos da literatura bíblica.

O estudioso, por conseguinte, não se deixará transviar pelas semelhanças que se apontem entre Essenismo e Cristianismo. Antes, voltará sua atenção para a mensagem positiva e valiosa dos manuscritos do Mar Morto: revelam-nos uma face nova do Judaísmo contemporâneo a Cristo. Ao passo que até estes últimos anos nos era conhecida quase exclusivamente a mentalidade legalista, formalista da facção farisaica, aparece-nos agora o aspecto de um Judaísmo interiorizado, profundamente religioso e místico, aspecto que muito melhor concorda com a mensagem do Cristianismo. Os documentos de Qumran, no que eles têm de sadio, nos permitem acompanhar a transição lenta e orgânica da espiritualidade do Antigo Testamento para a do Evangelho. Constituem o fundo imediato (fundo que nunca pudéramos reconstituir com tanta precisão como agora) sobre o qual se realça com mais clareza e pujança a mensagem de Jesus Cristo. Esta se mostra, de fato, correspondente às sãs expectativas do Judaísmo; é o cumprimento das promessas feitas aos Patriarcas de Israel, deixando de lado, porém, todo particularismo e nacionalismo.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 4 – abr/1958
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