Um papa herege: a questão de fato e a questão de direito

Por Alessandro Lima

 

Introdução

 

Se um clérigo é acusado de cometer um delito canônico (por exemplo, ter se casado no civil) duas questões estão envolvidas: 1) a questão de direito: se o ato de um clérigo casar-se no civil é um delito e qual é autoridade competente para julgar o seu caso 2) a questão de fato: se ele realmente cometeu o delito.

 

Uma coisa decorre da outra, ou seja, a questão de fato depende da questão de direito. Em outras palavras, ninguém pode ser punido por um crime que não existe e nem por uma autoridade incompetente ou ilegítima.

 

Os sedevacantistas totalistas afirmam que os papas conciliares ou perderam seu cargo por declarar heresias ou porque já eram hereges antes de serem eleitos, o que invalidaria sua eleição. Embora haja uma diferença entre o primeiro caso (perda da jurisdição universal) e o segundo (invalidade da eleição), ambos casos passam pelas questões já mencionadas: questão de direito e de fato.

 

O caso de um papa suspeito de heresia

 

Pe. Anthony Cekada é o inventor do juízo da questão de fato sem a questão de direito. Uma amostra da sua invenção é o artigo “A Cadeira ainda está vazia” [1] defendendo a tese de que o papa herege perde o seu pontificado pelo pecado de heresia e não delito de heresia: “o caso sedevacantista é baseado no pecado da heresia, não no delito canônico”.

 

Então, com base nesta premissa errônea, um sedevacantista totalista imagina que se ele pessoalmente “discerne” que o Papa cometeu um “pecado de heresia”, o seu julgamento privado realizado no quintal de sua casa constitui um “fato”, que então lhe dá o direito de declarar publicamente o homem reconhecido como Papa pela Igreja, não é, de fato, um verdadeiro Papa! Desta forma, se conclui que a defesa do sedevacantismo é apenas uma “questão de fato” (discernida por julgamento privado), e não uma questão de direito da Igreja (conforme julgado pelas autoridades competentes). 

 

Mario Desken, um discípulo fiel das teses do Pe. Cekada o afirma em resposta ao apologeta católico John Salsa:

 

“A razão pela qual Salza acredita que os sedevacantistas estão ‘resolvendo o problema com as próprias mãos’, alegadamente ‘usurpando’ a autoridade eclesiástica legítima, é que ele não consegue distinguir a ordem da lei da ordem dos fatos. Este é um erro crucial.” [2] 

 

Ainda:

 

“A falha de Salza em distinguir adequadamente a lei do fato é o erro mais fundamental de todo o seu artigo. Ele transforma tudo numa questão de direito da Igreja, quando a posição sedevacantista se baseia na ordem dos fatos e não na ordem da lei .” [ibidem. Sublinhados meus.]

 

O sofisma desta argumentação começa com uma petição de princípio, pois o julgamento dos fatos (o papa ser herege na ordem dos fatos) está sujeita à Autoridade Legítima (ordem da lei). Em outras palavras, se o Papa é um herege é de fato uma “questão de fato”, mas quem está autorizado a julgar os fatos é uma “questão de direito” que deve primeiro ser resolvida, como manda a boa ordem lógica. O que fazem é “colocar o carro na frente dos bois”.

 

Os membros individuais de uma sociedade (a Igreja é uma sociedade visível e hierárquica) podem ter uma opinião pessoal, mas um julgamento público deve partir da autoridade pública, como explica São Tomás na Summa:

 

“O juízo, devendo ser pronunciado de acordo com as leis escritas, quem o pronuncia interpreta, de certo modo, a letra da lei, aplicando-a a um caso particular. Ora, pertencendo à mesma autoridade interpretar e fazer as leis, assim como ela não pode fazê-las, senão como autoridade pública, assim também, só nessa mesma qualidade é que pode pronunciar um juízo, estendendo se essa autoridade aos membros da comunidade que lhe serão sujeitos. Portanto, assim como seria injusto obrigarmos alguém a observar uma lei não sancionada pela autoridade pública, assim também sê-lo-ia o compelíssimos a pronunciar um juízo não fundado nessa autoridade.” (ST IIa-IIae, q. 60, a.6, solução).

 

Segundo o que Santo Tomás explica acima, não cabe a católicos individuais que não possuem autoridade alguma na Igreja (ordem da lei) decidir se um Papa é ou não legítimo (ordem dos fatos). 

 

Pergunte a um sedevacantista totalista se ele achar que o síndico de seu condomínio ou o prefeito de sua cidade é um corrupto, se essa autoridade perderá seu cargo em função de seu juízo privado… Independente do que passe pela cabeça do sujeito, o síndico ou o prefeito só perderá o seu cargo, se a suposta corrupção da autoridade (ordem os fatos) for verificada e julgada pela Autoridade Componente – Assembleia Geral do Condomínio ou a Câmara dos Vereadores – (ordem da lei). Se a mesma lógica explicada por Santo Tomás se aplica a sociedades mais simples, como um condomínio ou um município, por que seria diferente na Igreja que é uma Sociedade muito mais complexa? Em outras palavras, se um sedevacantista não define em função de seu juízo privado a legitimidade do síndico de seu condomínio ou o prefeito de sua cidade, por que definirá a legitimidade de um Papa? Ou seja, ele não decide se a autoridade perdeu seu cargo (ordem dos fatos) sem que isso seja decidido pela autoridade competente (ordem da lei).

 

Embora os teólogos que abordaram a hipótese teológica de um Papa se tornar herege, tenham concordado que em caso afirmativo, tal caso deveria ser julgado ou declarado pela Igreja (ordem da lei), não houve consenso entre eles sobre quando um Papa poderia ser considerado herege e como perderia o seu pontificado.

 

São Roberto era da opinião de que o Papa perderia o seu cargo automaticamente se fosse pertinaz diante de uma admoestação da Igreja, que poderia então declarar a Sé Vacante [3]. Já o Cardeal Caetano e João de Santo Tomás defendiam que a Igreja ao admoestar o Papa e verificar a sua pertinácia, poderia declarar a Sé Vacante e esta decisão seria confirmada por Cristo. Muitos teólogos de autoridade ficaram divididos entre essas duas opiniões (Por exemplo, Card. Billot seguia a opinião de São Roberto, enquanto o Card. Journet a opinião de Caetano). O Magistério da Igreja não se pronunciou sobre o assunto, deixando a questão de direito em aberto.

 

Conclusão

 

Embora esteja em aberto como um Papa perderia o seu pontificado, caso se desvie da Fé, e isso realmente ter reflexo na vida da Igreja; o que não está em aberto é que apenas a Igreja (provavelmente através de um Concílio Ecumênico Imperfeito) poderá definir se um Papa é ou não legítimo. O mesmo se aplica à validade da eleição de um pontífice. E relacionado a este assunto, é doutrina comum entre os teólogos que toda a Igreja não pode aceitar como legítimo um Papa inválido [4].

 

Não são católicos individuais ou em seus grupos de whatsapp, que não têm autoridade alguma, quem decide a legitimidade da maior Autoridade da Terra, o Papa.

 

Notas

 

[1] “Sedevacantism Refuted?”, encontrado em https://traditionalmass.org/images/articles/SedevacRefuted.pdf.

 

[2]  “A cadeira ainda está vazia”, encontrado em http://www.novusordowatch.org/the_chair _is_still_empty.htm.

 

[3] Mostramos nisso no artigo https://www.veritatis.com.br/o-ipso-facto-de-sao-roberto-belarmino-e-os-sedevacantistas-totalistas/

[4] Sobre este assunto consulte os links abaixo

 

https://www.veritatis.com.br/a-aceitacao-de-um-papa-pela-igreja-universal-a-pedra-de-tropeco-dos-sedevacantistas/

 

https://unamsanctam.great-site.net/aceitacao-pacifica-e-universal-do-papa-citacoes-do-seculo-15-ao-21.html

 

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