O Cânon 188, §4 do CIC 1917 e a perda da jurisdição ipso facto

Por Alessandro Lima

 

Introdução

 

Publicamos recentemente um artigo [1] sobre a distorção que os sedevacantistas totalistas fazem do ensino de São Roberto Belarmino quando este disse que um papa manifestamente herético perderia o seu cargo ipso facto, e por isso poderia ser julgado e punido pela Igreja.

 

Alegam que o Cânon 188,  §4 do Código de 1917 prova o seguinte princípio: que um herege manifesto perde a sua jurisdição ipso facto, sem a necessidade de qualquer declaração de seu superior hierárquico.

 

Contudo, pretendemos demonstrar que eles estão redondamente enganados.

 

O Cânon 188, §4 do Código de 1917

 

O Cânon 188, §4 do Código de 1917 fornece o seguinte:

 

“Existem certas causas que provocam a renúncia tácita a um cargo, renúncia essa que é aceita antecipadamente por força da lei e, portanto, é efetiva sem qualquer declaração. Estas causas são… §4 se ele desertou publicamente da fé.”

 

O que exatamente o cânon quer dizer com “se ele desertou publicamente da Fé”? Os sedevacantistas entendem que um papa conciliar (qualquer um deles: de Paulo VI a Francisco) é um herege manifesto [2], e com isso que ele desertou publicamente da Fé, e consequentemente perdeu o seu pontificado.

 

Pe. Brian Harrison especialista em direito canônico nos diz o seguinte:

 

“O Cânon 188, §4 afirma que entre as ações que automaticamente (ipso facto) fazem com que qualquer clérigo perca o seu cargo, mesmo sem qualquer declaração por parte de um superior, está a de ‘desertar publicamente da fé católica’ (‘A fide catholica publice defecerit’). Contudo, “desertar publicamente” da fé, neste contexto, significa claramente algo muito mais drástico do que fazer declarações heréticas (ou alegadamente heréticas) no decurso de discursos ou documentos públicos. Esta causa específica de perder um cargo eclesiástico é encontrada na seção do Código que trata da renúncia a tal cargo (cc. 184-191) e faz parte de um cânone que lista oito tipos de ações que a lei trata como ‘renúncias tácitas’. Por outras palavras, são o tipo de ações que podem ser tomadas com segurança como prova de que o clérigo em questão nem sequer deseja continuar no cargo que ocupava até então, mesmo que nunca se tenha preocupado em apresentar a sua demissão ou abdicação por escrito.” ( Harrison, A Heretical Pope Would Govern the Church Illicitly but Validly, Living Tradition, No. 87 (maio de 2000) apud John Salsa and Roberto Siscoe em True or False Pope?, Cap 9).

 

Uma simples revisão da explicação deste cânon, tal como se encontra nos manuais canônicos, explica precisamente o que a Igreja quer dizer com “deserção pública da fé”. A afirmação não se aplica, como Pe. Harrison observa corretamente, para uma pessoa que apenas faz uma declaração herética. A deserção pública da fé refere-se a um prelado que adere publicamente a uma religião falsa, formal ou informalmente.

 

Pe. Agostine também explica detalhadamente o ponto:

 

“As penas vingativas tornam-se mais severas em dois casos, que podem ser distintos, mas também podem ocorrer por um mesmo ato: sectae acatholicae nomen dare [formalmente] ou publice adhaerere [informalmente].

 

Uma seita significa uma sociedade religiosa estabelecida em oposição à Igreja, quer seja constituída por infiéis, pagãos, judeus, muçulmanos, não católicos ou cismáticos. Tornar-se membro de tal sociedade (nomen dare) significa inscrever o próprio nome em sua lista. É claro que se presume que o novo membro sabe que se trata de uma sociedade não católica, caso contrário não incorreria na censura. Se ele souber da censura depois de se tornar membro e cortar imediatamente sua conexão, a penalidade não será incorrida.

 

O texto também prevê casos de adesão informal. Publice adhaerere significa pertencer publicamente a uma seita não católica. Isto pode ser feito frequentando os seus serviços sem qualquer causa ou motivo especial, ou vangloriando-se de ser membro, embora não inscrito, usando um distintivo ou emblema indicativo de membro, etc. tornam-se infames (infâmia iuris latae sententiae) e, consequentemente, podem. 2.294, deve ser aplicado a eles. Além disso, um clérigo deve ser degradado [A degradação é a sentença do Direito Eclesiástico, pela qual o ministro é deposto inteiramente do ministério, e não de uma Ordem superior para uma Ordem inferior]. se, depois de ter sido devidamente avisado, persistir em ser membro de tal sociedade. Todos os cargos que venha a ocupar ficam vagos, ipso facto, sem qualquer declaração adicional.

 

Esta é uma renúncia tácita reconhecida por lei (Cânon 188.4) e, portanto, a vaga é de facto et iure [de fato e de direito].” (Augustine, A Commentary on the New Code of Canon Law, vol. 8, bk. 5, pp. 279-280).

 

Pe. Augustine está dizendo que a renúncia tácita por deserção pública da fé ocorre quando um prelado se junta a uma seita não-católica, e não quando ele simplesmente faz uma declaração herética (julgada assim por julgamento privado).

 

O Cânone 2314, §3 confirma isso quando dispõe:

 

“Cânon 2314: (3) se eles aderiram a uma seita não católica (Si sectae acatholicae nomen dederint) ou a ela aderiram publicamente (vel publice adhaeserint), são ipso facto infames, e clérigos, além de serem considerados como tendo renunciado tacitamente a qualquer cargo que possam ocupar, de acordo com o cânon 188.4, serão, se o aviso prévio se mostrar infrutífero, serão degradados.”

 

Como observado acima no Cânone 2314, §3 e na citação do Pe. Agostine, mesmo neste caso extremo em que um clérigo publicamente defecciona da fé ao aderir a uma seita não católica, o prelado deve ser devidamente avisado antes de ser degradado ou “deposto”. Assim, mesmo quando um clérigo abandona abertamente a Igreja (aderindo a outra religião), abandonando assim o seu cargo (que se encontra de fato vago devido à sua “renúncia tácita”), deve primeiro ser avisado pela autoridade eclesiástica antes de ser formalmente deposto ( ou degradado) pela Igreja.

 

Isto também é confirmado pelo Comentário do Pe. Ayrinhac ao Código de 1917, onde observa que um clérigo que “se afilia formalmente a uma seita não católica, ou a ela adere publicamente” só é deposto após ser avisado. Escreveu Pe. Ayrinhac:

 

“Se tiverem sido formalmente afiliados a uma seita não católica, ou a ela aderirem publicamente, incorrem ipso facto na nota de infâmia; os clérigos perdem todos os cargos eclesiásticos que possam ocupar (Cânon 188.4) e, após uma advertência infrutífera, devem ser depostos.” (Ayrinhac, Penal Legislation in the New Code of Canon Law, p. 193. Nota: “A deposição é uma pena eclesiástica vingativa pela qual o clérigo fica privado para sempre do seu cargo ou benefício e do direito de exercer as funções das suas ordens.” Enciclopédia Católica (1913), vol. IV, pág. 737, apud John Salsa and Robert Siscoe, True or False Pope? Cap 9.)

 

Como se vê, a excomunhão prevista no Cânon 188, §4 não é pelos motivos imaginados pelos sedevacantistas. Contudo ainda falta-nos verificar se esta excomunhão automática faz perder também automaticamente a jurisdição no caso de um clérigo.

 

A censura de excomunhão no CIC 1917

 

No direito canônico, existem duas penalidades distintas para a heresia: uma censura e uma pena vingativa. Uma censura canônica pode ocorrer de duas maneiras: ou ferendae sententiae (imposta como resultado da intervenção da autoridade da Igreja), ou latae sententiae (isto é, ipso facto, ou automaticamente, por força da própria lei), quando uma lei é violada.

 

Na censura de excomunhão (latae sententiae) incorre automaticamente quem comete conscientemente qualquer delito que acarrete a pena. Tais excomunhões podem ser públicas ou ocultas (secretas) e não requerem aviso ou declaração, por si só. No entanto, embora a censura da excomunhão não exija, por si só, uma declaração, o direito canônico exige uma declaração quando o bem público a exige, para que tenha qualquer efeito canônico no foro externo. 

 

O Cânon 2223, §4 estabelece as regras para quando são exigidas sentenças declaratórias:

 

“Em geral, a declaração da pena latae sententiae fica à prudência do superior; mas seja por instância/pedido de uma das partes envolvidas, seja porque o bem comum assim o exija, deve ser proferida uma sentença declaratória.”

 

Como prevê o cânon 2223, §4 do Código de 1917, quando o suspeito envolvido é um clérigo, o bem público assim o exige. Isso significa que não se considera que um clérigo tenha incorrido em censura de excomunhão, a menos que tenha sido declarada pela Igreja.

 

No seu comentário popular sobre o Código de Direito Canônico de 1917, Pe. Augustine escreveu:

 

“A censura infligida é a excomunhão incorrida ipso facto, o que por si só não requer sequer uma sentença declaratória. Somente se, no prudente julgamento do superior, o bem público exigir tal sentença, ela deverá ser pronunciada. O bonum publicum (bem público) certamente o exige no caso dos clérigos.” (A Commentary on the New Code of Canon Law, vol. 8, bk. 5., pp. 278-279. Grifos meus).

 

Antes de tal sentença declaratória da Igreja, mesmo que um clérigo incorra em excomunhão oculta no foro interno, ele manterá os direitos e privilégios de um católico em boa situação no foro externo. Isto significa que um clérigo não perderá o poder de jurisdição como resultado de incorrer na censura (oculta) de excomunhão, a menos e até que uma declaração seja emitida pela Igreja. 

 

A Enciclopédia Católica Original explica a diferença, no nível prático, entre um clérigo que incorreu em um ato oculto ou secreto, excomunhão (ou seja, uma que não tenha sido declarada) e um clérigo que tenha incorrido na excomunhão pública (ou seja, uma que tenha sido declarada e, portanto, tenha um efeito canônico no foro externo):

 

“A diferença prática é muito importante. Aquele que tiver incorrido na excomunhão oculta deverá tratar-se como excomungado e ser absolvido o mais rapidamente possível, submetendo-se a quaisquer condições que lhe sejam impostas, mas isto apenas no tribunal de consciência; não é obrigado a denunciar-se a um juiz nem a abster-se de atos externos ligados ao exercício da jurisdição (…) Segundo o ensinamento de Bento XIV, «a sentença declaratória do delito é sempre necessária no foro externo, pois neste tribunal, ninguém se presume excomungado, a menos que seja condenado por um crime que implique tal pena.’” (Catholic Encyclopedia (1913), vol. V, p. 680, apud John Salsa e Robert Siscoe, True or False Pope?, cap 9. Grifos meus.)

 

O que isto mostra é que é possível que um clérigo incorra na censura oculta de excomunhão no foro interno (por ser secretamente membro da seita maçônica, por exemplo), e ainda assim ser capaz de “atos externos válidos relacionados com o exercício de jurisdição”, no foro eclesiástico, conforme dispõe o Cânon 2264. O mesmo ainda vale para o foro externo, isto é, caso o clérigo incorra na censura pública de excomunhão. Isso mostra que há uma diferença substancial entre ser excomungado ipso facto e perder a jurisdição.

 

O CIC de 1917, estabelece então que mesmo aqueles clérigos que incorreram em excomunhão ipso facto [cf. cânon 2314, no. 1,1], só perdem a sua jurisdição ordinária, se houver contra eles “sentença condenatória ou declaratória”, ou seja, não perdem ipso facto a sua jurisdição. Que todos “os atos de jurisdição, tanto internos como externos”, “antes da sentença [condenatória ou declaratória] são válidos, e até lícitos”. 

 

Conclusão

 

Claramente, o cânon 188, §4 não apoia de forma alguma a posição sedevacantista, uma vez que: 1) nenhum dos Papas conciliares desertou publicamente da fé ao aderir a uma seita não-católica; 2) eles não foram avisados (o que o cânon exige antes da deposição ou da “degradação”); 3) Não receberam nenhuma “sentença condenatória ou declaratória” da autoridade competente (que como já vimos em artigos anteriores [1], só poderia ser dada por um Concílio Ecumênico).

 

A Lei Canônica é uma expressão de como a Igreja entende e aplica os princípios católicos. Recorrer a teólogos medievais que escreveram num tempo em que muitos assuntos ainda não estavam clarificados pela Igreja em detrimento à tradição canônica da Igreja, especialmente a mais recente é um ato no mínimo inconsequente.

 

Se um clérigo não perde seu cargo ipso facto por heresia ou apostasia, o que se dirá de um papa? Vale também aqui o princípio aristotélico/tomista de que “o maior inclui o menor”, ou seja, os princípios que se aplicam aos bispos e demais clérigos, certamente devem ser considerados em relação ao papa.

 

Notas

 

[1] LIMA, Alessandro. O ipso facto de São Roberto Belarmino e os sedevacantistas totalistas. Disponível em https://www.veritatis.com.br/o-ipso-facto-de-sao-roberto-belarmino-e-os-sedevacantistas-totalistas/.

 

[2] No artigo referido na nota 1 também tratamos de como eles entendem este termo erroneamente.

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